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Eu Negro

quarta-feira, 21 de abril de 2021

UM DIA TE PERDOAREI POR TE TRAIR


 


UM DIA TE PERDOAREI POR TE TRAIR

“O amor, no meu entender, devia surgir de repente,  com ruídos e fulgurações,
tempestade dos céus que cai sobre a vida e a revolve, 
arranca as vontades como folhas
e arrebata para o abismo o coração inteiro.” (Gustave Flaubert).

Clara é casada há 25 anos. Ela enfatiza que vive em harmonia conjugal e afirma amar o marido profundamente. Mesmo assim, eventualmente, costuma sair e fazer amor fora do casamento. Sente-se dividida entre o que considera ser certo e o que conclama ser justo. O certo, ela diz, seria ser fiel ao marido, independente da situação. O justo, sentencia, é ser feliz e dar vazão à sua necessidade de ser valorizada e querida, mas além de tudo, cortejada e desejada.
Ela diz que sempre teve uma vida tranqüila, talvez rotineira demais, mesmo no período de adolescência. Poucos envolvimentos, cidade pequena, namorado amigo de infância, flertes na pracinha, noivado, casamento, filhos, pão de queijo e missa. Tudo muito tradicional.
Ela conta que a partir do segundo filho as coisas começaram a mudar de rumo em sua vida. O marido invariavelmente a deixava só com os filhos nos finais de semana para ficar com os amigos no dogmático futebol e na essencialidade do boteco. Ela, filha de família tradicional, cumpria religiosamente o papel que a sociedade lhe destinou: cuidar da casa, dos filhos e do marido. A vaidade e a auto-estima desvaneceram-se nas brumas do tempo. O brilho do olhar tornou-se difuso e sem vida. No papel de esposa amante, nada de alegria, nada de harmonia, nada de fantasia. Somente o sexo invariavelmente obrigado, insuficiente, geralmente nauseabundo, cheirando à álcool e à atmosfera de botequim.
Viveu assim durante duas décadas, forçando o sorriso para a sociedade, fingindo orgasmos e criando os filhos. Vivia como uma sombra, aliás, era a sua própria sombra, um estranho fantasma que assombrava. 
Um certo dia, enquanto flanava absorta pela cidade, fazendo compras,  percebeu que alguém lhe olhava de maneira insistente. Era um amigo dos tempos de ginasial, agora com alguns fios grisalhos nas têmporas. Maduro mas muito bonito, mantinha o mesmo sorriso cativante de outrora. Encontraram-se no hortifruti e entre alfaces e rúculas um raio de fatalidade caiu sobre os dois. Foi como uma explosão atômica, um vigoroso vulcão jorrando sua lava incandescente para os céus, um tsunami emocional, o rompimento de um casulo escuro e úmido, onde uma larva amorfa esteve presa por longo tempo em hibernação, despertando então travestida em uma multicolorida e esvoaçante borboleta, abrindo suas asas à luz do sol e ao calor da vida. Willian Shakespeare disse que quando o ancoradouro se torna inseguro a felicidade vai aportar em outro lugar. E assim aconteceu.
Clara então passa a viver um conflito interno entre seu recém descoberto amor entremeado de emoção e desejo e um enorme sentimento de culpa. Sentada á mesa com à família, às vezes sentia-se suja e indigna de sua família, por estar se entregando de corpo e alma ao seu amante. Tentava esconder suas mudanças de comportamento e sua felicidade, sem falar da onda de ternura e amor que sentia pelo homem que a resgatou de volta para a luz. Embriagou-se com o vinho do amor, para o qual não existe antídoto. Para não morrer, dizia Toulouse-Lautrec, devemos sorvê-lo até a última gota.
A vida de Clara segue normal e seu marido de nada desconfia. Envolvido com o futebol e a turma do boteco, aliado ao sentimento de posse e domínio que sempre nutriu pela esposa, jamais imaginaria que ela ama outro homem e que é uma chama viva quando a ele se entrega. Sim, entrega total e verdadeira. Talvez por isso tenha-se originado o termo traição: do latim traditione, que quer dizer, entrega. Clara, nossa Madame Bovary dos trópicos não se sente forte o suficiente como mulher, nem confiante o bastante como amante para dar fim ao seu casamento. Segue em sua vida dupla: entediando-se em casa e realizando seus mais profundos desejos através das maravilhosas e sofisticadas fantasias com seu amante. Quem ousa atirar a primeira pedra?


O Livreiro de Cabul e as Invisíveis Burcas Brasilianas

No excelente livro “O Livreiro de Cabul” da norueguesa Asne Seierstad, vive-se a dura realidade da vida cotidiana do Afeganistão, país devastado por sucessivas e intermináveis guerras. As contradições afegãs e um complexo e tolhido universo feminino, nos faz refletir sobre a distância cultural entre nossas sociedades enquanto que, ao mesmo tempo, nos remete para situações muito próximas em famílias brasileiras.
Em certa passagem do livro, o jovem Karim, Jornalista e órfão de pai e mãe se apaixona por Leila, filha caçula de Bibi Gul, matriarca e mãe de 13 filhos. Bibi Gul, por ser viúva, vive com seu irmão, Sultan Khan o patriarca da família que é casado com duas esposas. As ordens despóticas de Sultan são indiscutíveis e Leila, que funciona como empregada doméstica de todo o clã, sonha em se casar e ter sua própria família.
O Afeganistão tem uma cultura muito particular, o conservadorismo afegão vai além do uso da ‘burca’ pelas mulheres. Passa pela submissão existencial onde se inclui as tarefas domésticas diárias e extenuantes, transita pela exclusão institucional em relação ao mercado de trabalho, por não poder possuir amigos do sexo masculino e ao menos estudar ou conversar com eles. As afegãs acostumaram-se a ver o mundo através das rendas das ‘burcas’, onde o calor e o desconforto extinguem toda a beleza e frescor do existencial do feminino. Portanto, um bom casamento que a liberte da pesada escravidão familiar é tudo que uma mulher afegã pode sonhar. Karim e Leila amam-se desesperadamente sem nunca terem ao menos conversado um com o outro. Sonham sonhos secretos de viverem juntos por toda a vida. Mas para isso as famílias precisam autorizar o enlace, é assim na sociedade afegã. Numa rara oportunidade que têm de se aproximar um do outro, Karim e Leila travam um diálogo surreal numa repartição pública de Cabul:

- Qual é sua resposta?

- Você sabe que eu não posso te responder -, ela diz.

- Mas o que você quer?

- Você sabe que eu não posso querer nada.

- Mas você gosta de mim?

- Você sabe que eu não posso ter opinião sobre isto.

- Você vai aceitar se eu pedir a sua mão?

- Você sabe que não sou eu quem decide.

- Você quer me encontrar de novo?

- Não posso.

- Por que não pode ser um pouco mais gentil? Você não gosta de mim?

- A minha família é quem decide se eu gosto de você ou não.

Karim e Leila jamais se viram novamente. Decepcionado com o ocorrido, o jovem decide seguir a carreira religiosa e se tornar um Mulá. Leila continuou em sua vida de doméstica da família e o livro não avança mais do que isso sobre os dois.
Piores que as ‘burcas’ afegãs são as ‘burcas brasileiras’, onde, mulheres são tolhidas de enxergar o mundo com seus próprios olhos para serem obrigadas a olhar com o olhar da família ou do marido. É fato corriqueiro hoje em dia, que a mulher primeiro avalie no que pensará a sociedade, para depois tomar alguma decisão.
Nas coisas do amor é ela quem mais sofre. Muitas vezes, como as afegãs, casam para deixar uma família exploradora e sem amor. Melhor sofrer em sua própria casa que na de outrem. Passará a vida (geralmente) por trás de uma ‘burca invisível’, sem atitude própria, sem opinião, fingindo orgasmos e erotismo, sem direito ao trabalho e assentir calada ao cheiro de álcool e do perfume barato que ele trás impregnado das outras mulheres.
Como no Afeganistão, as mulheres brasileiras que envergam uma burca invisível, usufruem de raros momentos de alegria. Na maioria dos casos quando visitam a família e a mãe, matriarca sempre tão generosa e acolhedora.
Gustav Klimt, pintor simbolista austríaco nascido no século XIX emoldurou de maneira magnífica em sua tela “O Beijo”, a posição da mulher que aceita o beijo do homem que a subjuga sem porém se entregar. No quadro, que encerra a ‘art noveau’ vienense para dar lugar ao expressionismo, se sente a atmosfera do prazer atingido, sem expressar porém qualquer tipo de sublimação do amor por parte da mulher.
O universo da mulher é infinitamente mais rico e complexo que o masculino. Então, quando o homem enfrenta algo desconhecido e grandioso, como a alma feminina, geralmente rejeita, recua ou agride. Sendo assim, torna-se mais fácil e seguro para os homens, pô-las a vestir a burca invisível do autoritarismo, do que procurar entendê-las, humildemente, no poder e plenitude do maravilhoso universo que elas possuem.

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