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O Espelho

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

HOMO HOMINI LUPUS

Homo Homini Lupus

Em seu livro Leviatã, Thomas Hobbes tornou célebre a frase do dramaturgo romano Platus, que disse “homo homini lupus”, ou seja, “o lobo é o lobo do homem”. Hobbes tem no cerne de sua doutrina a afirmação de que o homem (ou sociedade) vivem em constante estado de guerra ou, levado a ela devido ao seu estado de natureza, ou estado natural. Para que consiga viver em sociedade, preferencialmente em paz, longe das ameaças cotidianas de confronto, o homem criou o estado de guerra.
Baruch Spinoza, o filósofo racionalista holandês de origem íbero/judaica que viveu no século XVII, apesar de seu extremo sofrimento pessoal, fez uma elegia à vida através de seu pensamento panteísta. Em sua obra preconizava que a imanência de Deus estava representada pela natureza, ou seja, Deus era a própria natureza e podia ser visto nas coisas como elas são. E assim como um Ser não julgador, Deus também estaria Contido no estado de guerra. O determinismo de Spinoza se exprime através do que ele designou de Conatus, nossa vontade de viver, a potência de viver ( o super homem de Nietzsche?) através de nossa própria natureza.
Thomas Hobbes apresenta em Leviatã a ideia de contrato social, onde a sociedade para poder abandonar o “estado de guerra” estabelece regras comuns de convivência. O contrato social cumpre o papel de gênese do estado moderno, um pacto de associação, mas nunca de submissão, como disse Rosseau. Porém, o estado em sua constituição através dos séculos, adquiriu fortes contornos do liberalismo, principalmente fundamentado na doutrina de John Locke, opositor ferrenho da ideia do direito divino, embutido no absolutismo, posição defendida por Hobbes.
 A doutrina de Locke influenciou fortemente o movimento iluminista, que influenciou a Revolução Francesa Independência dos Estados Unidos e a Primavera dos Povos com seu ápice em 1848.
O pensamento iluminista influenciou diversos movimentos no Brasil. Podemos citar alguns importantes como a Inconfidência Mineira, a Revolta do Malês na Bahia e a própria proclamação da república, esta própria porém, envelopada em grande parte pelo pensamento positivista de Augusto Conte.
Se misturarmos todas essas doutrinas em um caldeirão brasileiro, vamos desaguar em uma feijoada de feijão branco, sem os principais petiscos que são as guerras escravas por libertação, a força imperiosa da cultura africana enquanto patamar civilizatório, o esforço do abolicionismo, além da constatação de que o liberalismo não foi feito por e nem dedicado para gerar riqueza e bem estar para o povo negro.
O papel da população negra diante desses fatos históricos, não foi somente como coadjuvante, mas também e principalmente como  vítimas diretas do colonialismo e da escravidão, pilares fundamentais para a consolidação do liberalismo e consequentemente o capitalismo.
Franz Fanon intelectual negro africano, também médico psiquiatra, apoiou durante décadas as guerras de libertação africanas, sendo membro da Frente de Libertação Nacional da Argélia, na época submetida a pesado jugo da França. 
Fanon aprofundou os estudos acerca da psicopatologia da colonização, desenvolvendo a psicologia da comunidade ou comunitária, que nada mais é do que o movimento antimanicomial de hoje. Processo que prega o fim da internação e a integração do doente à família e à comunidade. Em seu livro “Os Condenados da Terra”, Fanon discorre sobre a violência como modo de remover dos países africanos a figura do colonizador racista.
Achile Mbembé é um filósofo camaronês que apresentou para a comunidade internacional seus estudos sobre a Necropolítica. A Necropolítica é um mosaico institucional, onde o estado, autoritário e despótico como preconizava Hobbes, adquire o poder de eliminar cidadãos em territórios específicos, resguardados sob a égide de um poder legitimado pela sociedade. Esse movimento evidencia o estado de “guerra” de Hobbes, o Conatus de Spinoza e a defesa do liberalismo de Locke.
Onde e como no Brasil se aplica a máxima de Platus, de que o homem é o lobo do homem? Certamente na atualidade. O Brasil se tonou o paraíso da distopia. Um país distópico, onde é de certa forma normaliza-se a figura da “ignorância ostentação”.  Vivemos em uma sociedade lastreada pelas políticas liberais que condenam à pobreza a maioria de sua população, dentro desse espectro, grande parte de pobres e miseráveis é de população negra. O liberalismo de Locke delimita a população negra de Fanon e Mbembé a guetos e territórios precarizados, onde as habitações não passam de senzalas contemporâneas e os transportes para locomoção são navios negreiros contemporâneos. A saúde mental desse contingente humano negro, obviamente descreve a patologia dos pacientes colonizados de Fanon, com as mesmas condições de abandono social pelos sistemas de saúde governamentais, abandonados e canibalizados. Esse desmonte estatal são, em detrimento aos sistemas privados de saúde, onde só pode ser atendido os que podem pagar. Portanto está em curso um lento e silencioso processo eugênico, que no futuro terá enorme significância no estrato eleitoral da população.
Spinoza e Hobbes tinham aversão à metafísica. Pois bem, esse tipo de manifestação, quando utilizada em nome de Deus, leva o povo a crer que seu estado de pobreza e indigência não é devido a um um projeto liberal de intensa acumulação de capital, e sim uma dogmática determinação divina. Assim fizeram os dalits da Índia acreditar que eram a “poeira de Brahma”, restando a eles servirem de lacaios às castas superiores, sendo inclusive proibidos de pisarem na sobra de outro indiano de casta superior. A Índia foi colonizada pela Inglaterra por mais de duzentos anos e do ventre de suas lutas de libertação surgiu Mahatma Gandhi, que contrário a doutrina de Fanon e Mandela, pregava a não-violência.
O movimento político brasileiro atual tem consolidado o retorno ao integralismo. Apesar de desconhecerem integralistas de peso como San Thiago Dantas, Lauro Escorel, Miguel Reale, Plínio Salgado e Gustavo Barroso. Os integralistas reacionários da atualidade, seguem beócios desprovidos de qualquer tipo de verniz intelectual. Pregam a violência, o culto às armas, a eliminação física de apenados e a segregação racial. O Brasil abriu sua caixa de pandora e dela saltam teorias loucas como a terra plana e os movimentos anti imunizatórios.
Saindo de uma onda pandêmica e entrando imediatamente em outra, sem sabermos o que acontecerá daqui a um ano, somos reféns dessas teoria absurdas e quem paga o preço maior é a população negra.
A Filosofia é um poderoso farol que lança suas luzes instigantes sobre o difuso oceano da vida. Porém, para nós do povo negro, a Filosofia que nos vem sendo apresentada através dos séculos, quando fundamentada e mesclada com a política, só tem trazido tristezas, amarguras e dissabores.