O
NOVO COLISEU
E A REALIDADE DO EFÊMERO
Ano 2020, desfile das
escolas de samba na Marquês de Sapucaí, local construído para os desfiles das
agremiações de samba. A Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira,
apresentou um enredo desconcertante, onde apresentou um Jesus Cristo Negro,
humano, pobre, nascido no Morro da Mangueira.
O samba de enredo foi uma
obra prima composta por uma dupla jovem, branca, habitante da zona sul do Rio
de janeiro e não do Morro de Mangueira. É a mais evidente demonstração de que
em Mangueira sempre vence a poesia.
O enredo fala de um Cristo
humano, negro, multicor, comum. A Mangueira com o enredo do Cristo negro ou
multicor, mesmo retratando os devaneios artísticos do carnavalesco, traz à luz
enquanto ao mesmo tempo que implode com o dogma do messias loiro de olhos verdes
ou azuis e cabelos compridos e cacheados, nascido em uma aldeia paupérrima no
interior do Oriente Médio.
Que Cristo europeu é esse?
Há na representação artística uma profunda negação à etnia negra ou não branca.
Não consigo compreender porque as pessoas de uma maneira geral não questionam a
ausência de anjinhos negros. Será um indicativo que as crianças negras não vão
para o céu? E os santos negros? Destarte São Benedito, quais os outros santos
negros canonizados pela igreja católica?
Santas negras? Alguém sabe
de alguma? Parece uma preocupação sem fundamento, porém, acho silenciosamente
hipócrita se colocar um móbile repleto de anjinhos brancos sobre um berço de
uma criança negra. Essa representação simbólica já está determinando qual o
lugar que esse bebê ocupará na sociedade.
As estatísticas são
importantes para que a sociedade possa dimensionar o tamanho dos seus problemas
e a partir delas se estabelecer políticas públicas ou ações que possam
solucionar as assimetrias apresentadas pelos dados compilados. Baseados nesta
premissa, podemos inferir que deveríamos ter muito mais santos negros que
brancos, pelo menos no Brasil. Compreendo que é uma situação que extrapola a
frieza dos dados e envolve o Vaticano e suas instâncias de investigação. Porém,
os dados apontam que em cada 100 jovens assassinados 75 são negros. Portanto, o
Brasil com seus 60 mil assassinatos anuais, 45 mil são de jovens negros. Em 10
anos são 450 mil e em 50 anos são mais de 2 milhões de jovens negros
assassinados, o que equivale à população de alguns países. Será que nenhum
deles mereceu ser canonizado? Se transportarmos essa representação para o mundo
veremos que a santificação de negros é ínfima diante da canonização de brancos.
O Vaticano já esteve sob o comando de três papas africanos. Vítor I,
Melquíades e Gelásio I. Foram escolhidos em um período anterior a metade do
primeiro milênio, onde a Igreja católica mantinha forte influência na região. As
cidades estratégicas de Alexandria, Cartago e Hipona eram fundamentais para o
domínio cristão e isso explica a assunção dos papas africanos da África do
Norte. Mesmo não possuindo traços marcantemente negroides, esses papas não eram
caucasianos e por isso foram delicadamente varridos da historiografia oficial.
O cristo da Mangueira nos
remete à reflexão da cor do sagrado. O sagrado tem cor e não é preto. Pelo
contrário, as representações não-brancas são sempre remetidas, no caso do
simbolismo sagrado a práticas que apontam para ritos satânicos, coisas do mal,
bruxarias e feitiçarias. Expressões como magia negra, necromancia, são
utilizadas cotidianamente para dar significado pejorativo à praticas religiosas
de matriz africana.
Houve severas
manifestações contra a representação simbólica do Cristo da Mangueira. Não há
uma compreensão que o Cristo que há na Bíblia dos cristãos é um Cristo humano.
Um Cristo que caminhava no meio do povo, perdoava ladrões e prostitutas, dormia
ao relento e não pregava o amor ao próximo acima de todas as coisas.
Multiplicou os peixes e os pães para que fossem divididos para todos. Isso é o
que encontramos nas comunidades carentes, a solidariedade, onde um pão do
vizinho se transforma em dois para que seu vizinho também se alimente.
O Cristo da Mangueira não
veio para blasfemar e sim para despertar o povo do excesso de consumo. Dos
exageros no período natalino onde são gastos verdadeiras fortunas em festas e
presentes enquanto nossos irmão passam fome e dormem nas ruas sem um teto
sequer.
O Cristo da Mangueira trouxe
consciência para que não abandonemos nossos idosos. Que protejamos nossas
crianças, que lutemos por um estado nacional que possa oferecer saúde,
educação, habitação, trabalho e dignidade para os pobres desse país.
Esse mesmo cristo, que
expulsou os vendilhões do templo, não quer que acumulemos dinheiro avidamente.
Que possamos ambicionar um posto de trabalho melhor, uma vivenda mais
confortável para toda a família, uma mesa digna com alimentos nutritivos. O
Cristo não quer a ganância, o querer interminável, a acumulação despropositada,
o capital acima de tudo e de todos.
O homem de Nazaré nem casa
possuía. Caminhava de alpercatas por aquelas ruas empoeiradas do Oriente Médio
com sua túnica simples e com seus seguidores que se vestiam e se comportavam à
sua maneira.
Enfim, o Cristo da Mangueira
passou na passarela e deixou seu rastro de esperanças em um mundo mais fraterno
e solidário. Um mundo melhor, onde os olhos azuis e eurocêntricos do cidadão de
Nazaré, que certamente nunca existiram, possam denunciar um gritante projeto de
dominação e supremacia.
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