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O Espelho

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

CENTRO BOM SÓ DE UMBANDA

 Centro em política não existe. É uma figura de retórica que inventaram para não se aprofundar a dialética e arrumar um lugar honroso para a direita mais envergonhada. Presume-se centro aquele lugar onde as pessoas não estão alinhadas politicamente nem à esquerda e nem à direita. Presume-se mas é mera presunção mesmo. O Centro é o pior que existe na política, pois, está naquela pretensa posição de neutralidade para namorar com a esquerda e assim conseguir um ótimo casamento com a direita. O Centro só vota com a esquerda para enviar recados à direita. Geralmente em votações sem expressão ou então em políticas sociais inexpressivas. Mas é o suficiente para alvoroçar as hostes direitistas, que concedem tudo que podem para continuar no controle da política nacional. 

Não existe Centro, existe sim, direita e esquerda, que não necessariamente são lados antagônicos e irremediáveis na construção do consenso em prol do bem comum.
A direita, além de assustar a população com a velha ameaça do comunismo que nem existe mais, defende o livre mercado, o liberalismo, a meritocracia e a iniciativa privada como propulsores do desenvolvimento e da matriz do pensamento político da sociedade. Sempre bom lembrar que falo de direita e não de fascismo, que apresentou a inédita "mamadeira de piroca e o kit gay" no último certame presidencial, culminando com uma ministra que jura ter tido uma resenha com Jesus Cristo sob uma agora sagrada goiabeira.

A esquerda defende como fator de desenvolvimento uma forte atuação do Estado na economia e na sociedade. obras de infraestrutura para a promoção da empregabilidade, investe nas universidades e centros de inteligência endógenos. Promove políticas compensatórias e de ações afirmativas através de mecanismos de controle social e políticas públicas como o apoio à reforma agrária, o bicho papão dos liberais e do agronegócio.

Fora desse cenário não há alternativa viável para um provável Centro, dentro do espectro político existente, é um truque sujo da direita caviar. Quando clamam pelo Centro, no fundo anseiam uma fusão dos dois modelos existentes (esquerda e direita), com 90% de predominância das teses da direita. Para a esquerda eles deixam a política de direitos humanos e a de integração racial. Isso já foi tentado antes, no governo FHC, e o resultado não foi dos melhores. Foi a tal social-democracia morena, que vendeu grandes estatais brasileiras, enriquecendo muitas raposas políticas, desaparecendo sem mostrar a que veio e não vingando por aqui.
 Por favor me apresentem o modelo político e sócio-econômico com o qual o Centro governará o Brasil fora das agendas existentes. Realmente fico curioso por sabê-lo.
As pouquíssimas experiências reais do Centro no poder, sempre acabaram nos braços da direita, que é sua gênese original. Sinceramente pedindo desculpas antecipadamente, acho que é o jeitinho brasileiro de se apresentar como direita 'prime', o Centro.

A democracia é assim, desse jeito, possui raízes amargas mas seus frutos geralmente são doces. Vivemos nesta jovem nação brasileira, que está saindo da adolescência com seus hormônios políticos em ebulição. Na verdade, só conta de 1808 para cá com a chegada da família real. Muito pouco tempo enquanto nação. Pouquíssimo tempo enquanto república, 132 anos apenas. Muitas pessoas pelo mundo beiram esta idade.
Erguer essa nação é tarefa que exigirá muito caráter e determinação para fazê-lo. Ainda não estamos prontos. Estão aplicando soro fisiológico no lugar de vacina da Covid para venderem cada dose a R$ 500,00 no mercado paralelo, para traficantes que não podem aparecer à luz do dia em um posto de saúde para serem imunizados.
Os europeus desde que aqui chegaram só fizeram espoliar e escravizar. Como uma nação pode se desenvolver dessa maneira? A corrupção faz parte do DNA deste país desde 1500. Portugal não povoou o Brasil, transformando-o em uma colônia de extrativismo e não de povoação como fez a Inglaterra nos EUA. A enorme concentração de terras nas mãos de poucos junto com a escravidão de cerca de 15 milhões de africanos atou o desenvolvimento do país nos mesmos grilhões que estavam atados aos pés dos cativos. O nepotismo, o roubo e a safadeza sempre fizeram parte dos que governaram este país sendo império ou república. As capitanis hereditárias ainda estão em pleno funcionamento: Sarney no Maranhão, Barbalho no Pará, Cunha Lima na Paraíba, Alves no Rio Grande do Norte, Mendes no Amazonas, Caiado em Goiás, Magalhães na Bahia, Bornhausen no Sul e por aí vai. Todos ruralistas proprietários de inúmeras fazendas de origem duvidosas e quase todas terras devolutas. Eles controlam o Congresso Nacional e por isso a reforma agrária sempre será um arremedo. Nos EUA, apesar da chacina com os povos originários, os colonos vinham com suas famílias e recebiam terras para produzir o que ocasionou a vigorosa e pujante economia daquele país, 'descoberto' com oito anos de antecedência do Brasil.
Alguém sabe dos 51 milhões do Geddel? Só se fala do Lula, enfim.

A POPULAÇÃO NEGRA E A COVID

Covid 19 - A Imunização  da População Negra
O Ministério da Saúde apresentou os primeiros dados tabulados da população vacinada do país. Os números não chegam a impressionar, pois, quando um país com profunda desigualdade social e regido pelo instituto do racismo estrutural participa de política pública universalista, não poderia apresentar resultado diferente.
Os dados oficiais apresentados pelo Ministério da Saúde mostram que somente 19% dos 5 milhões de vacinados no país que foram registrados pelo Ministério da Saúde eram pretos ou pardos. Os dados apenas comprovam que há uma estranha assimetria na imunização da população negra, na medida em que compõe 56% do percentual da população brasileira, de acordo com os dados do Censo Estatístico do IBGE.
Apesar do esforço de imunização estar concentrado em profissionais de saúde que estão na linha de frente do combate à Covid-19 e esse contingente em tese ser majoritariamente negro e pardo, ainda assim a imunização está salvando mais brancos que negros.
Quando a imunização passa a ser aplicada nos espaços e territórios degradados, a lógica dos dados se fortalece, mostrando que para um contingente de 336 moradores de rua que foram vacinados, 64% são negros e 27% são brancos. Entre os 950 mil idosos com 80 anos ou mais, 41% são brancos e 18% são pretos ou pardos. Porquê somente 18% de negros e pardos? A resposta é simples: o número de negros que consegue ultrapassar a barreira dos 80 anos é bastante inferior ao contingente humano não negro.

Segundo Alexandre da Silva, doutor em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo e membro do grupo de trabalho Racismo e Saúde, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, a chegada à maturidade da população negra é diferente e desigual a da população branca. Por esse motivo, a população negra deveria ser objeto de mais atenção por parte das autoridades de saúde de nosso país.
Um contingente humano que geneticamente é propenso a enfermidades crônicas e prevalentes como hipertensão e diabetes, além de obesidade por má nutrição, está diretamente afetado pelos riscos de contágio e agravamento do estado de saúde caso contraia a Covid-19. Portanto, esse contingente deveria ser priorizado tanto na imunização como na prevenção. Se levarmos em conta que esse contingente racial encontra-se em condições historicamente inferiores aos outros estratos sociais da composição racial brasileira, causa espanto não haver nenhuma medida oficial para a proteção imediata desses cidadãos.
As desigualdades são históricas e estruturais. A população negra em sua grande maioria habita lugares degradados ou deixados de lado pelo poder público. O saneamento básico é deficiente, assim como as demais condições ambientais. Esses territórios estão afastados dos centros das cidades e os transportes são irregulares e deficientes. A baixa escolarização garante subempregos que remuneram mal e não permitem acesso a uma boa nutrição. Nesse conjunto anticivilizatório deve-se acrescentar a violência institucional dos aparelhos de repressão de estado e dos narcotraficantes que controlam seus territórios nem que para isso promovam verdadeiras guerras com grupos rivais que lutam pela tomada do território. Em meio a esse enorme caos existencial está a escola pública local e as unidades de saúde, geralmente entregues à abnegação de seus servidores para que haja um entrega mínima de serviços.
Os dados demonstram que quase 30% dos registros dos imunizados não traz a informação raça/cor. O Dr. Alexandre da Silva enfatiza que a não determinação de raça/cor impede uma análise aprofundada que gera um óbice no desenho do perfil verdadeiro do espectro da Covid-19 na população negra. 
Os marcadores de gênero e faixa etária são tratados com prioridade, pois através dos dados sabemos quantos homens e mulheres foram imunizados e suas idades. Segundo Alexandre, o marcador raça/cor deixa de ser genético e se transforma em marcador social.
Estudos mostram que a recuperação da Covid-19 na rede privada de saúde é quase o dobro da rede pública. Se a população negra é atendida majoritariamente na rede pública por não possuir condições financeiras para adquirir seguro saúde da rede privada, podemos dizer que existem duas Covids no Brasil, a dos brancos e a dos negros. A dos brancos possibilita ampla recuperação enquanto que a dos negros infelizmente e invariavelmente leva ao óbito.
A pandemia do coronavírus acentua mais uma vez a situação da desigualdade social e do racismo estrutural brasileiro. Precisamos construir uma nação onde essas assimetrias gritantes deixem de existir. Esses dois brasis precisam ser extintos, o Brasil dos brancos e o Brasil dos negros. Um com IDH semelhante aos mais avançados países da Europa e outro com IDH tão baixo como os dos mais pobres países do mundo e não é para ser assim. 
Paz, justiça, cidadania e liberdade são eixos basilares de uma sociedade civilizada. Precisamos lutar para que ela seja uma conquista de todos e todas e não somente de um grupo privilegiado de habitantes.

MUNDOS INVISÍVEIS . O LIVRO . LANÇAMENTO EM DEZEMBRO.

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

18 ANOS DA LEI 10.639/2003

A história dos negros no Brasil deixará de ser contada pelos vencedores.  A maioridade da lei 10.639/2003 em 18 anos de desafio

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
        Art. 1o A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B:
"Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.
"Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’."         Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.       
 Brasília, 9 de janeiro de 2003; 182o da Independência e 115o da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Presidente da República Federativa do Brasil

O conteúdo do texto da Lei 10.639 é tão reduzido e famélico como o da Lei Áurea. Mas não deixa de ser um avanço enorme. Não caiu do céu e tampouco significa a conscientização ou conversão do poder público à temática racial. Foi uma vitória histórica do Movimento Negro brasileiro, conseguida através das incessantes lutas e demandas apresentadas desde sempre. O cumprimento desta lei apontará diretamente para o reposicionamento de nossa raiz indo-afro-ibérica, sendo que a construção da nação brasileira somente foi possível através da utilização intensiva da mão de obra escrava dos povos africanos/afrodescendentes e indígenas.
A promulgação da lei é motivo de comemoração e também de reflexão. Porém não deixa de ser motivo de constrangimento, pois, somente após 115 anos da abolição da escravatura, o archote da verdade e da justiça iluminou o parlamento brasileiro. Historicamente o parlamento brasileiro sempre foi branco, machista e sexista. Desde que não se ponha em risco seus privilégios e sua estrutura étnica, costuma aprovar essas leis, que para eles são meros penduricalhos políticos que agradam parte de seus eleitores.

Para o povo negro é de grande importância, pois traz em seu ventre a luz que poderá iluminar a invisibilidade histórica, programada e destinada ao povo negro. É uma reivindicação renitente do povo negro, o fim da invisibilidade. Acredita-se que ao entregar uma educação equânime a comunidade escolar, através de professores e profissionais da educação capacitados e sensibilizados, poderemos construir um futuro virtuoso, onde a diversidade seja valorizada e potencializada, onde as culturas em enlace produzam uma sociedade plural e afetuosa entre seus mais diferentes grupos étnicos.
Apesar de apresentar uma redação desidratada, a lei proporciona inúmeras possibilidades de abordagens. Há um mundo negro invisível a se descortinar, pronto para se saborear. Os docentes brasileiros podem enfim mergulhar no mundo de maravilhas que é a cultura negra, escudados pelo marco legal que os protegerá de aleivosias conservadoras e preconceituosas. 

A composição étnica da população brasileira que detém mais da metade de negros e pardos, clama por uma educação equânime, que valorize o protagonismo de africanos e afrodescendentes em nosso país, mostrando que através de seus esforços, martírios e raízes, impuseram um vigoroso protagonismo, mesmo que de maneira forçada na maioria das vezes, na construção da nação brasileira.
Ao ser obrigatória já denota um mau começo. Lei que obriga quando é justa, mostra o atraso civilizatório daquele povo.  Não é um bom começo, mas sem ela talvez nunca houvesse começo algum. 
Os invasores e colonizadores que aqui aportaram, sempre escreveram ou reescreveram nossa história de acordo com seus oportunismos. Geralmente suas narrativas apresentavam uma visão deturpada, recheada de imperialismo senhorial, preconceituosa e evangelizadora. A construção da nação brasileira no que tange a poder e participação cidadã, sempre foi unilateral e segregacionista no que concerne a espaços concedidos aos diversos componentes étnicos da população. Durante todo o processo de desenvolvimento colonial, do território que era Pindorama, depois Terra de Santa Cruz e finalmente consolidado Brasil, nunca houve um momento de merecimento e paz para indígenas, africanos e afrodescendentes. Aos povos negros e indígenas, foi imposto a submissão do cativeiro, a humilhação da subserviência, a retirada da alma e da crença originária, a tortura, a sevícia e a morte. Como herança futura restou para a população de uma maneira geral, a lembrança da escravidão, do cativeiro, da dominação e da representatividade menor. É assim que os negros e pardos são geralmente vistos pelo restante da população. Os contemporâneos desses contingentes étnicos, são vítimas até os dias atuais de ações criminosas carregadas de discriminação e preconceito.
A lei encontra resistências enormes em sua consolidação. Talvez devido ao modelo deformado de processo civilizatório que foi posto em marcha pelos colonizadores europeus. De nada adianta lamentar a colonização portuguesa e exaltar a inglesa ou a francesa. As ex-colônias desses países também vivem em estado de miséria em todos os canto do planeta. Podemos constatar como passa hoje o Haiti, Argélia, Jamaica, Índia, Guianas, além de inúmeros países africanos, principalmente da África subsaariana. 
Adam Smith em seu livro “A Riqueza das Nações” lembra que a palavra latina ‘colônia’ significava ‘plantation’, que na língua portuguesa quer dizer plantação. Porém a plantation aplicada ao novo Mundo, nesse caso não é somente uma área agricultável, mas sim um grande empreendimento colonial, com utilização de mão de obra escrava intensiva, sequestro e tráfico transatlântico de africanos, construção de navios negreiros, além da venda, compra e troca de mercadorias por escravos nos diversos entrepostos comerciais africanos.
A colonização do Brasil pelos portugueses foi muito violenta e perversa. Assim como na América Espanhola, foram exterminados milhões de autóctones com uma cultura riquíssima, centenas de línguas se perderam como se milhares de bibliotecas fossem incineradas. Somado a esse genocídio, milhões de cidadãos africanos foram sequestrados, retirados à força de seus países, de seus lares e trazidos em correntes para o cativeiro eterno. Esses africanos sempre foram considerados como seres sem alma, objetos falantes, por isso seus ‘senhores’ podiam dispor de seus corpos como bem o quisessem. O estupro sistemático das mulheres negras escravizadas foi um crime monstruoso que é mantido em silêncio, ou melhor, na invisibilidade. Essas mulheres eram violadas para gerarem filhos, que os escravizadores chamavam de ‘crias’, que ao completar a adolescência eram vendidos nos mercados de escravos. Imagine a dor dessas mulheres ao terem os filhos e filhas retiradas de suas vidas para serem comercializados como animais.
A escravidão no Brasil nunca foi pacífica ou cordial como muitos costumam dizer. Foi um período de intensos conflitos. A rebelião era comum nas fazendas e em outros empreendimentos escravocratas coloniais. A instituição dos quilombos se alastrava pelo país, o de Palmares durou inacreditáveis 100 anos e lutou mais de quarenta batalhas contra os impérios holandês e português, além de se bater contra os milicianos da época que eram os bandeirantes. 
A historiografia oficial sempre apresentou uma versão equivocada sobre a resistência quilombola. Os negros dos quilombos eram considerados malfeitores, escravos fugidos, bandidos e ladrões. Os próprios livros de História do Brasil que eram aplicados nas escolas se referiam a Zumbi dos Palmares como um celerado, um bandido. A população palmarina em meados de 1600 chegou a compreender 20 mil habitantes, segundo dados da época, sendo que a população brasileira beirava 100 mil habitantes, segundo dados do IBGE. Na época a cidade do Recife possuía 7 mil habitantes. Portanto Palmares, possuía com certeza mais de 10% da população brasileira. Seria hoje, proporcionalmente falando, como o estado de São Paulo. Essas números impactantes ou foram apresentados de maneira incipiente ou sofreram a invisibilidade programada, ou seja, nunca constaram na historiografia oficial, certamente por um bom motivo, para que não houvessem mais rebeliões, para que houvesse arrefecimento no estado de rebeldia que incendiava o coração da maioria dos cativos. 
Na verdade esses seres humanos escravizados se rebelaram com o cativeiro, com o trabalho forçado, preferindo morrer em combate respirando os ares da liberdade que perder a vida na humilhação do cativeiro, enriquecendo o escravizador. 
O estado brasileiro contemporâneo sempre ocultou a verdadeira história de sua formação. De Palmares a Canudos passando pela Inconfidência Mineira com a martirização e glorificação de Tiradentes pelos republicanos. Da proclamação da república ao regime militar que se instalou em 1964 e perdurou por 21 anos. Da Abolição da Escravatura à Revolta da Chibata, sempre há uma narrativa de desconstrução do espírito rebelde, da ousadia do colonizado, do protagonismo do poder popular.
Com a lei 10.639/2003 podemos resgatar a verdade. Apesar de seu texto desidratado não oferecer muitas alternativas, podemos aproveitar e preencher essas lacunas com o que há de melhor no que concerne à representatividade do poder popular na construção desse país.
A lei delega aos profissionais da educação, principalmente ao corpo docente brasileiro, a missão de retirar a venda secular que foi colocada nos olhos da sociedade brasileira,  sobre a verdadeira história do povo negro no Brasil. 
Finalmente Brasil e África tornarão a se encontrar, agora sem os navios negreiros, sem as aberrações sociológicas, sem a involução civilizatória dos empreendimentos coloniais. A lei possibilitará a necessária desconstrução do imaginário popular acerca da escravidão pacífica e ‘democrática’. Escravidão que não pode ser naturalizada e tampouco romantizada pela literatura, dramaturgia ou meios de comunicação. A escravidão trouxe para o Brasil milhões de seres humanos que viviam no continente africano, vítimas do maior sequestro da história, com o pérfido intuito de serem escravizados e construírem o Novo Mundo. Através de um processo brutal e desumano, essas pessoas foram arrancadas de suas famílias à força e ao chegarem escravizados em outro continente, foram proibidos de constituírem família no Brasil e esquecerem para sempre as que haviam constituídas em África.
A condição de ser humano escravizado e sem alma, tornou o negro um ser inferior, sem direito a uma história. Fizeram parte de um mundo invisível, como ectoplasmas produtivos, vítimas de um mundo monumental e invisível, que aos olhos da lei e da sociedade colonial era estritamente legal. 
O contingente étnico sequestrado veio de uma África imponente, com impérios grandiosos e com inúmeros avanços científicos e tecnológicos. Mas a empresa colonial eurocêntrica sempre mostrou o continente africano como um território de bárbaros que conviviam em condições inadequadas aos seres humanos, cultuando seitas demoníacas e sem os princípios básicos da civilização. Só não disseram que durante mais de 300 anos foram retirados daquele território as melhores mentes e os melhores corpos, os mais produtivos e capazes, que somaram mais de 10 milhões de seres humanos. Impossível um continente se desenvolver em toda a sua plenitude com uma canibalização histórica dessa magnitude.
A Lei 10.639/2003 veio em bom momento. As novas gerações aprenderão que houve um crime de lesa humanidade contra o povo africano e afrodescendentes. Entenderão e reivindicarão que esse crime necessita de urgentes reparações históricas. A lei deve cumprir um papel importante que é a transmissão não somente de conteúdos mas fazer a relação entre as etnias mais harmoniosa e retirar do imaginário popular a supremacia de um contingente étnico sobre outro.

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

OS NEGROS E A BOSSA NOVA


 OS NEGROS E O NASCIMENTO DA BOSSA NOVA  - UM TRIBUTO A JOHNNY ALF, GERALDO PEREIRA, ALAÍDE COSTA E AGOSTINHO DOS SANTOS.


A Bossa Nova nasceu e foi amamentada pelas vigorosas e abundantes tetas do samba, principalmente o samba sincopado e das improvisações jazzísticas que passeavam nas teclas dos pianos da noite carioca à época.  


A certidão de nascimento da Bossa Nova diz que ela nasceu na Avenida Atlântica, no apartamento da Nara Leão, no Posto 6. Não é bem assim, o ritmo que encanta o mundo é filho de diferentes ‘maternidades’, que vão do blues do Mississipi ao Buraco Quente no Morro da Mangueira. Muitos alegam que a Bossa Nova acontecia de outra maneira mesmo sem ter esse nome nas músicas do Tamba Trio ou das teclas de piano de Jonny Alf. 


A música que delimita o marco de existência do novo estilo é ‘Chega de Saudade’, composta por Tom Jobim e Vinícius de Morais sendo interpretada por interpretada por João Gilberto. João introduziu uma forma diferente de tocar o violão, muito parecido com o samba sincopado de Geraldo Pereira da Mangueira, aquele que compôs ‘Falsa Baiana’ e ‘Acertei no Milhar’. Chega de saudade foi registrada nas entidades de direitos autorais como samba-canção. 


De qualquer maneira, foi na zona sul carioca que o movimento tomou força e dali partiu para conquistar o mundo, tendo seu ápice quando da apresentação no Carnnegie Hall de Nova Iorque, onde um cantor negro brasileiro, de voz aveludada, chamado Agostinho dos Santos, deixou os espectadores maravilhados com a potência suave de sua voz. 


Johnny Alf é um capítulo à parte. Ninguém menos que o escritor e jornalista Ruy Castro disse que ele foi o verdadeiro criador da Bossa Nova. 


Menino negro de família humilde, órfão de pai aos três anos de idade, mãe empregada doméstica, iniciou seus estudos de piano aos nove anos de idade, incentivado pelos patrões de sua mãe. 


Sua formação musical foi aos poucos se aproximando da raiz popular e deixando de lado o erudito. Foi como estudante do Colégio Pedro II que teve oportunidade de participar de um grupo artístico no Instituto Brasil-Estados Unidos, quando foi convidado a participar de um grupo artístico e passou a utilizar o nome Johnny Alf. 


Sua carreira profissional se iniciou na “Cantina do César” do comunicador César Ladeira. Gravou seu primeiro disco em 1953 com as músicas Falsete e De Cigarro em Cigarro, consideradas revolucionárias para a época e que são consideradas precursoras da bossa nova. Também compôs Eu e a Brisa, que é seu maior sucesso. 


Johnny Alf morreu aos 80 anos de idade em um hospital público. Morreu solitário, sem família e pobre, relegado a um asilo. Triste para um compositor e pianista negro que Tom Jobim classificou como gênio da música e com certeza um dos criadores da Bossa Nova. 


Geraldo Pereira era mineiro de Juiz de Fora. Veio viver no Rio de Janeiro com seu irmão que possuía uma casa humilde no Morro da Mangueira. Tornou-se um bom violonista e a partir de então passou a compor sambas em profusão, abandonando o morro e fixando-se no Centro da cidade em busca de melhores oportunidades artísticas.  


Na Praça Tiradentes, que era a grande concentração de artistas daquele período, conseguiu mostrar seu talento e estabeleceu parcerias com outros compositores. Passou a viver de vender seus sambas e já no ano de 1940 emplacou seu primeiro sucesso no Carnaval com a música “Se Você Sair Chorando”, gravada por Roberto Paiva. Junto com Wilson Batista compôs o grande sucesso “Acertei no Milhar”, que foi gravada por Moreira da Silva e se transformou em enorme sucesso em todo o país. Geraldo Pereira se torna um dos principais compositores do astro Cyro Monteiro e é alçado ao estrelato quando compõe Falsa Baiana em 1944. 


Geraldo Pereira nos deixou jovem, com apenas 37 anos. Após uma briga com Madame Satã na Lapa, foi internado e do hospital saiu sem vida, não por conta da briga mas por sua saúde debilitada devido a incansáveis noites de farras e bebedeiras. Geraldo estava doente há bastante tempo e este evento da internação apenas comprovou que estava com os dias contados. O próprio Madame Satã em pessoa me confirmou o fato em uma das minhas muitas idas à Vila do Abraão na Ilha Grande, onde vivia em regime condicional. 


O samba sincopado foi sua marca registrada, que foi inclusive uma das fontes referenciais do grande arcabouço musical onde a bossa nova bebeu para se estruturar enquanto estilo.  


Geraldo Pereira deixou, uma riquíssima obra musical, composta por quase uma centena de canções, muitas inéditas. Em sua homenagem foi produzido um belo filme chamado “O Rei do Samba” de José Sette. 


O nome da intérprete Alaíde Costa mistura-se com a história da MPB. Mulher negra carioca, nascida em 1935 no bairro do Méier, filha de um padeiro com uma lavadeira, cresceu ouvindo o ritmo samba-canção, nos programas de rádio que faziam muito sucesso naquela época. A TV ainda não havia chegado ao Brasil e somente se consolidaria 30 anos mais tarde, sendo o rádio o grande meio de comunicação popular. 


O irmão mais novo de Alaíde Costa, observando seus dotes vocais, inscreve-a em um concurso de calouros em um circo, e logo depois em programas de rádio voltado para novos talentos infantis. Aos 13 anos foi eleita a melhor cantora infantil pela Rádio Tupi, em um programa apresentado por Paulo Gracindo. Torna-se destaque na Rádio Nacional mesmo trabalhando como babá de três crianças. Sua vida começou a mudar quando aos 16 anos recebeu nota máxima em um programa de calouros apresentado por Ary Barroso. A partir deste momento sua carreira de intérprete profissional se tornou irreversível. 


Aos 20 anos inicia sua carreira cantando profissionalmente no Dancing Avenida. Em 1961 grava o primeiro disco de uma série de mais de vinte, consagrando-se definitivamente como uma das maiores divas da Música Popular Brasileira. 


Gilberto ficou muito impressionado com sua voz durante uma gravação nos estúdios da Odeon e a convidou para participar de uma reunião com jovens artistas da zona sul carioca. A casa era do pianista Bené Nunes, quando João convidou mais não foi ao encontro, consagrando o estilo que carregou pelo resto da vida.  


 Alaíde Costa passou a estreitar cada vez mais sua relação com a nova turma foi uma das precursoras da Bossa Nova, juntamente com Johnny Alf, Tom Jobim, João Gilberto, Vinícius de Morais entre outros.  


Em 1959 participou do Primeiro Festival de Samba Session, com Silvinha Telles, Ronaldo Boscoli, Carlos Lyra, Roberto Menescal entre outros artistas de renome. Sua interpretação da canção “Chora tua Tristeza” foi o grande sucesso da noite e foi a primeira música a fazer sucesso para além dos limites do grupo da Bossa Nova. Porém sua mais conhecida interpretação está gravada no disco ‘Clube da Esquina’, onde divide o fonograma ‘Me Deixa em Paz’, com Milton Nascimento.  


Alaíde Costa é considerada uma divindade da MPB. Sua voz maviosa nos embala em uma viagem serena e revigorante. Como atriz foi premiada como Melhor Atriz Coadjuvante no Festival de Gramado de 2020 e aos 25 anos contracenou com Raul Cortez na peça Os Monstros, dirigida por Ruth Escobar. Pioneira na luta da mulheres negras, Alaíde Costa tem seu lugar garantido como uma das mulheres negras mais importantes do Brasil. 


Johnny Alf, Geraldo Pereira, Agostinho dos Santos e Alaíde Costa, que ainda vive, são exemplos do que a sociedade branca racista faz com o povo negro. Apesar de possuírem talentos inquestionáveis, foram relegados ao esquecimento e não constam como protagonistas na criação da Bossa Nova, que ficou restrita a um grupo de filhos da classe média alta da zona sul carioca, ocultando o talento desses artistas negros de elevado gabarito.

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

AQUELE ABRAÇO!

AQUELE ABRAÇO!
A Academia Brasileira de Letras – ABL, acaba de consagrar o artista brasileiro Gilberto Gil como mais um de seus imortais. Gil ocupará a cadeira número 20 da ABL, antes ocupada por Murilo Mello Filho, grande escritor e jornalista falecido em maio do ano passado. Também sou escritor e jornalista, e ex-genro de Murilo Mello Filho. A cadeira 20 tece em torno de si inúmeros destinos e personagens, em um curioso mosaico humano repleto das mais distintas manifestações.
O patrono da cadeira número 20 é o escritor Joaquim Manoel de Macedo, autor do célebre romance a Moreninha. Macedo foi professor de História do Colégio Pedro II, onde o neto de Murilo Melo Filho, Bernardo Mello Queiroz, meu filho, apresenta-se vez em quando com sua banda de rock.
O escritor e jornalista Murilo Mello Filho foi amigo de Gilberto Gil, artista que tive o prazer de conhecer pessoalmente em uma viagem que fizemos a  Mumbai na Índia. As tramas do destino continuam se entrelaçando, pois, trabalho no Colégio Pedro II, onde Joaquim Manoel de Macedo foi professor de História e História é o curso que estou concluindo na graduação.
A cadeira 20 também teve como ocupante o general Lyra Tavares, que durante a ditadura militar mandou prender Gilberto Gil na Vila Militar em Realengo. Daí a música “Aquele Abraço”: “Alô...Alô Realengo! Aquele Abraço!”. Foi a mensagem que Gil enviou aos companheiros que continuaram no cárcere.
Meu filho Bernardo Mello Queiroz é músico como Gilberto Gil e gravou um vídeo há um ano atrás cantando uma bela canção de Gil.
Sou um cobrador renitente da entrada de negros e negras na Academia Brasileira de Letras – ABL, um verdadeiro bastião de homens brancos idosos e de classe média alta. Meu sogro Murilo Mello Filho tentou algumas vezes convidar pessoas negras para se candidatar à academia. Testemunhei seu esforço em convidar o geógrafo Milton Santos, que agradeceu imensamente a deferência, mas declinou por estar acometido à época por uma moléstia incurável.
O fardão cairá bem em Gilberto Gil, um artista, um cidadão do mundo que traz dentro de si uma biblioteca afroarcoíris repleta de maravilhas fascinantes que encantam a humanidade.
Aquele Abraço!!!!