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O Espelho

sábado, 17 de fevereiro de 2024

A Madrugada e os Poetas

Madrugada no hemisfério sul. Só os loucos ou os livres saem às ruas. Ouço ruídos desconexos enquanto me conformo em minha jornada insone. Penso no tempo da vida, sobre o quanto ele pode ser importante e quando quase nada vale. Durante a madrugada, o tempo dos notívagos insones pouco vale. Parece que o tempo é verdadeiramente importante quando há espectadores.Imaginem a cena de um circo, onde os trapezistas se encaram fixamente diante do salto mortal final em um pucadeiro vazio, sem o suspense e o pulsar da adrenalina do grande público? A importância não está somente em você, precisa de plateia, de espectadores, assim é a vida.

O tempo da madrugada é uma ditadura vã, onde o insone sofre sob o plúmbeo do tempo, sobre o catre indiferente, incomodado por um ou outro inseto que ainda sente importância em você, talvez somente ele, nesse mundo de heróis superficiais.

A madrugada possui um tempo lento, tempo de solidão, entremeado e compartilhado com suspiros e assombrações. Ali no espaço cruel da solidão, entre a realidade e o sono, existe o que podemos chamar de poesia estranha, difusa. É como se por força das elocubrações cognitivas, a alma cede sua essência ao diáfano mundo da criação. Oh, alma criativa! Mãe de todos os deserdados do leito matrimonial! Via de escape dos atormentados pela incompreensão da vida! Dai-nos a paz, alma criativa. Sabemos bem da sua predileção pela noite, pelo silêncio do tempo perdido das madrugadas, pela dor desesperada dos poetas.

Enquanto a cidade dorme, nós os poetas sofremos em nossa solidão soturna. Deitados caminhamos entre os moinhos de Cervantes e as amarelinhas de Cortázar. Eneidas, Odisseias, Lusíadas, Divinas Comédias, Ulisses e Policarpos Quaresmas. A madrugada dos poetas e um mundo à parte onde as letras saem iluminadas como vagalumes espectrais, compondo uma sinfonia eterna entremeada de luz e cores.

Enquanto a humanidade dorme o sono dos justos o poeta insiste e teima em dormir, contrariando o afã pulsante de sua alma criativa. Quer ser normal como as outras pessoas, como todas as pessoas normais do mundo, mas como um sísifo fadado ao infinito labor, cumpre sua sina infatigável de subir as pedras das letras, noites após noites nos despenhadeiros da vida. Sua obra talvez nunca seja admirada, mas qual o quê! É realizada pela incompreensível vontade da psiquê incontornável dos loucos e incompreendidos. Uma criança chora ali, um cão ladrão acolá. São os ruídos da noite. Uma moto transporta sonhos para algum lugar e pássaros boêmios cruzam os ares embebedados pelo ar fresco da madrugada.

Finalmente a madrugada vai nos deixando, silenciosa e sorrateiramente, dando lugar a um dia ainda envergonhado por dar fim aos pirilampos de letras e suspiros.  O sol surge então com seu poder avassalador, despertando os normais que correm expeditos aos seus trabalhos, aos ditames do capitalismo enlouquecedor.

O poeta então desaba ao se defrontar com o mundo dos normais, com a busca insaciável por dinheiro, por coisas, por desejos materiais. O poeta se espanta ao se ver cercado de cartões de crédito, boletos, prestações, hipotecas, crediários e caminhões de botijões de gás tocando músicas fanhosas. É o mundo dos homens . É o mundo do dia, das guerras, dos poderosos. É o mundo do dinheiro, da ganância e do egoísmo. Nesse cenário caótico e humanamente incompreensível para se viver o poeta caminha atento, tentando salvar seus vagalumes da tórrida existência dos diurnos.

A madrugada dos poetas é acolhedora. É como um ventre acolhedor que nutre os sonhos que iluminarão em tempos contemporâneos outras almas ávidas por pirilampos de poesias.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Tem SPC no céu?

O capitalismo não repousa nunca, e seu mais recente alvo é a área cemiterial. Sem se preocupar com a população pobre e por extensão com o povo negro, investe pesadamente na privatização de cemitérios.
Alguns dirão que a privatização é um processo irreversível e um fato consumado. Porém, a avidez pelo lucro do capitalismo predatório passa por cima de áreas sensíveis como a última morada dos que nada possuem.
Não há um debate série na sociedade, que verse sobre as condições financeiras das famílias daquelas pessoas vulneráveis que falecem.
Em um momento de grande dor, as famílias se arvoram em buscar recursos financeiros nas comunidades em sua maioria carentes, para que possam sepultar seus ente queridos com o mínimo de dignidade. Muitas vezes são obrigadas a recorrer mesmo a contragosto a auxílio financeiro de origem duvidosa para que possam arcar com as despesas funerárias.
Agora um novo panorama se apresentou de maneira irrevogável que é o fim da gestão municipal dos cemitérios, que estão sendo entregues à iniciativa privada. Com isso, os custos com as exéquias de um pobre que faleceu se tornarão proibitivas para a grande massa vulnerável do país. 
Sem poder realizar o sepultamento por questões financeiras qual será a alternativa das famílias? Certamente deixar o corpo no IML para ser sepultado como indigente ou doar para as escolas de medicina. 
O capitalismo não tem coração e se não houver uma reflexão seguida de uma forte ação governamental na questão cemiterial, teremos realmente chegado ao fim do que consideramos chamar de civilização.