Onde quer que esteja nesse Brasil, o branco estará sempre deitado em berço esplêndido, usufruindo das benesses legadas pelo regime de escravidão mercantil que durou mais de 350 anos, sendo extinto há menos de 150 anos. É sempre bom lembrar que nosso país foi cúmplice do sequestro de pelo menos 5 milhões de africanos que viviam livres em seus países, sendo que chegaram vivos cerca de 4 milhões de cativos, pois o restante foi jogado nas águas gélidas do Oceano Atlântico durante a travessia, por morte, doença e em casos raros por rebelião.
Muito se fala na escravização desses milhões de africanos trazidos para o Brasil, mas por vergonha ou por malandragem histórica, deixam de registrar que houve a escravização de milhões de brasileiras e brasileiros, filhos desses ventres africanos e depois brasileiros, que nasceram aqui em nosso território, legítimos cidadãos e cidadãs que foram injustamente condenados à escravidão perpétua, sem jamais conheceram e respirarem a insubstituível liberdade. Eram considerados propriedades privadas de seus senhores desde o momento de suas concepções nos ventres das mulheres negras.
É muito dolorido e assustador tomar conhecimento que esses nossos irmãos e irmãs nascidos aqui, foram concebidos através de estupros sistemáticos onde os escravizadores submetiam as mulheres negras a terríveis e inomináveis situações brutalizadas. Os escravizadores visavam tão somente o ato bárbaro da satisfação sexual forçada, completamente despido do sentimento primordial do amor, visando a efetivação da bestialidade e a previsão da venda futura da criança que viria ao mundo.
A mulher negra então era obrigada a abrigar em seu ventre um feto que não foi desejado, que foi gerado pela brutalidade do estupro, cujo destino futuro seria a comercialização no mercado negreiro como um objeto qualquer, como uma mesa ou uma cadeira. A branquitude utilizava uma figura do Direito Romano denominada “strumento vocale”, ou seja, um objeto falante, que justificava a escravização de seres humanos sem confrontar os pilares básicos do cristianismo. A bula papal “Dum diversas” de 1452 emitida pelo Papa Nicolau V para o rei de Portugal Afonso V permitia a captura e escravização perpétua de “gentios e sarracenos”, assim como a posse das propriedades conquistadas. Os negros brasileiros nascidos após 1500 obviamente não estavam incluídos nos ditames da bula papal, mas mesmo assim o império português e depois brasileiro fecharam os olhos para a violação humana que se seguiria por séculos.
Muitas dessas mulheres negras pariam cerca 15 crianças durante suas vidas de cativeiro. A maioria dessas crianças eram sistematicamente vendidas para seus novos proprietários, quando então se viam perdidas em suas histórias de tristezas e sofrimentos pelos pérfidos fados do mundo.
Luiz Mott descreve que nos anais da primeira visitação do Santo Ofício à Salvador no ano de 1591 foram condenados 18 pessoas pelo crime de “sevícias”. Na época Salvador possuía 800 habitantes brancos e cerca de 3 mil negros escravizados.
A historiografia oficial não é generosa e menos ainda transparente na quantificação desse contingente de brasileiros e brasileiras que vergonhosamente nasceram já na condição de cativos, sem nunca terem respirado os ares da liberdade, em um país regido pela égide do cristianismo.
O branco brasileiro, rico ou pobre, vivo ou morto, de uma firma ou de outra, foi beneficiado direta ou indiretamente pela escravidão, esse genocídio histórico de lesa humanidade que mostrou de maneira inequívoca o lado perverso e sombrio da branquitude, ou seja, o lado demoníaco do ser humano, quando lhe é concedido através da força o poder de vida e morte sobre outros seus iguais, mas porém diferentes, baseados em doutrinas pseudo científicas, que lhes propunha uma alteridade racial absolutamente inexistente.
Enquanto perdurou por aqui o instituto da escravidão, houve intensa atividade comercial no tráfico de seres humanos. Trazer os africanos escravizados para o Novo Mundo era um empreendimento de alto custo econômico para a empresa colonial. O “negócio” tinha início muitas vezes com a captura de africanos livres em seus países de origem, para logo depois enfrentar a tenebrosa travessia transatlântica que sempre oferecia enormes riscos e possuía alto custo pela utilização de embarcações de grande porte. A empreitada exigia a contratação de tripulação experiente e custos logísticos complexos como alimentação, medicamentos e equipamentos de marinharia. O custo financeiro para transportar um africano escravizado para o Brasil era muito grande para os valores da época, por isso o incentivo na procriação de cativos nascidos no próprio país.
A construção intelectual e a conceituação sobre a branquitude aflora nos anos 90 com o conjunto de estudos denominados “Critical Whiteness Studies”, que referenciaram os principais estudos sobre o tema. A teorização da identidade racial branca recebeu forte aporte intelectual de W. E. B. Dubois com a publicação "Black Reconstruction in the United States".
O psiquiatra e militante martinicano Franz Fanon discorreu em sua obra “Peles Negras, Máscaras Brancas” sobre a necessidade da abolição do termo “raça”, para enfim libertar tanto o negro de sua negritude como o branco da branquitude, que considerava verdadeiros cárceres da identidade racial.
Os “Whitenees Studies” definiram duas principais características para a branquitude: a branquitude crítica que convive pacificamente com os diferentes, tendo plena consciência dos privilégios que a beneficiam mas que porém nada faz para removê-los e a branquitude acrítica, vertente feroz que estimula a doutrina do confronto e radicaliza o movimento com a proposta inclusive de eliminação física de negros e negras, onde movimentos como a Ku Klux Klan e grupos neonazistas são a face mais visível desse tipo de branquitude.
A branquitude conseguiu se invisibilizar na historiografia oficial brasileira como movimento opressor e constituinte de desigualdade. Segundo Guerreiro Ramos, as teorias das relações raciais no Brasil são um mergulho na sociologia do negro nativo. Elas não apontam uma dicotomia racial e tão somente o lado do oprimido como se não houvesse um opressor.
A branquitude não é uma doutrina ou sistema de fácil compreensão. Não é somente ser branco, pois muitos brancos rejeitam o racismo e até se formam em fileiras para combate-lo. Branquitude é um sistema de origem colonial que determina o modo de funcionamento das estruturas e instituições, onde os espaços privilegiados sempre estão à disposição da raça branca.
A história do fim da branquitude e da dicotomia com a negritude foi uma forte bandeira de luta do Reverendo Martin Luther King, que era um ativista negro formidável e um dos principais líderes do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos.
Em 28 de agosto de 1963 na capital anericana aconteceu a "Grande Marcha por Emprego e Liberdade", também chamada de "Marcha de Washington" ou "A Grande Marcha", ato convocado por organizações religiosas, sindicatos e movimentos populares pelos direitos civis da população negra dos Estados Unidos.
Foi naquele dia que o Reverendo King proferiu o icônico discurso onde enfatizava que tinha um sonho. Sim, o sonho de que um dia nas colinas vermelhas da Geórgia os filhos de ex escravos e os filhos de ex proprietários de escravos poderiam sentar-se juntos à mesa da fraternidade. Até mesmo no Mississipi, um estado ardendo sob o calor da opressão será transformado em um oásis de liberdade e justiça. A plateia em transe ouvia o reverendo e entre as centenas de milhares afro estadunidenses também estavam milhares de cidadãos brancos dos Estados Unidos. Eram milhares de brancos na plateia ouvindo emocionados as palavras de paz, justiça e igualdade que o líder negro proferia sem uma gota de ódio em seu sangue.
Martin Luther King não propunha uma nação negra. Ele lutava por uma nação para todas as pessoas. Que não houvesse apartheid. Que a diferença da coloração da pele não orientasse os que iriam sofrer e os que receberiam os privilégios de uma vida confortável e sem sobressaltos.
Naqueles anos difíceis para a população negra dos EUA, a separação racial por força da lei era quase que uma condenação ao sofrimento. Nascer negro sob o regime do apartheid significava ser cidadão de segunda classe, mesmo antes, ainda no ventre da mãe.
Mas o que aqueles milhares de brancos faziam na plateia do reverendo no 28 de agosto, naquela tarde em Washington, em plena vigência do apartheid? Certamente não eram racistas. Além de não serem racistas eram antirracistas, pois senão jamais estariam naquela posição de exposição enquanto pessoas brancas. Mas querendo ou não eram beneficiadas pelo sistema gerado pela branquitude. Apesar da solidariedade que estavam prestando de maneira admirável aos negros do seu país, aquelas pessoas brancas nasceram e cresceram tendo acesso aos benefícios e ao melhor conjunto de oportunidades civilizatórias que um ser humano não negro recebe de um estado segregador e opressor.
A emoção que ecoava naquele dia nos gramados de Washington, atingia a todos. Porém causava uma certa confusão nas mentes daqueles brancos. Muitos talvez não tivessem a compreensão do caráter universalista do protagonismo da raça branca. Os brancos ali presentes, mesmo sendo antirracistas, lutavam ombreados com os negros, mas em seus cotidianos sempre usufruíram do resultado construído pela branquitude, concordassem ou não com as ofertas.
O Reverendo Martin Luther King era um ardoroso defensor da convivência pacífica entre todas as raças e talvez por esse motivo tenha sido cruelmente assassinado. Seu famoso discurso foi concluido com essas belas palavras: “...E quando isto acontecer, quando nós permitimos o sino da liberdade soar, quando nós deixarmos ele soar em toda moradia e todo vilarejo, em todo estado e em toda cidade, nós poderemos acelerar aquele dia quando todas as crianças de Deus, homens pretos e homens brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão unir mãos e cantar nas palavras do velho spiritual negro: Livre! Livre afinal”.
A confusão da branquitude permanece circulando e operando até hoje, onde muitos brancos questionam sobre o porquê da não realização da “Semana da Consciência Branca”, ou “White is Beautifull”.
Existe a negritude que nunca utilizou a mesma régua da branquitude. A negritude é um modo de viver, uma doutrina consciente e empoderada que cria suas manifestações voltadas para a ancestralidade, para novas linguagens culturais e intelectuais. A branquitude é exatamente o oposto, vive nas sombras planejando de forma contínua o próximo golpe. Sua existência está diretamente ligada ao projeto de poder do capitalismo e o controle imanente da sociedade e de todas as raças.
Negros e pardos, ou somente negros, como deve ser, apesar de constituírem a grande maioria da população não operam nem planejam um projeto de tomada de poder. Seguem desse jeito, sem esperanças, talvez devido as terríveis cicatrizes legadas pelos 350 anos de escravidão. Não é ao menos o espírito do negro cordial, é na verdade a ausência de espírito. É incompreensível que no parlamento brasileiro os negros sejam uma minoria insignificante, na medida em que são a maioria da população. Parecem ouvir uma linda música que os faz adormecer enquanto o racismo estrutural opera diuturnamente sem nunca cerrar os olhos.
O branco construiu através da história seu caráter universalista enquanto raça ou grupo étnico. Por esse motivo os comerciais e a programação da TV são recheados de brancos, talvez 95%, quando na composição racial brasileira os brancos representam menos de 50%. Esse é um exemplo evidente do universalismo branco, que também é gritante em outros espaços de poder como o Congresso Nacional, por exemplo, onde as mulheres negras que são 28% da população, são responsáveis por míseros 2% da composição das duas casas, Senado Federal e Câmara dos Deputados. No Judiciário é a mesma cantilena segregadora, onde no Supremo Tribunal Federal nunca houve a indicação para que uma ministra negra compusesse o pleno do tribunal.
No poder executivo há uma tênue flexibilização nas composições dos ministérios, onde colocam os negros nos comandos da Integração Racial e Direitos Humanos, onde não há verba e os partidos geralmente torcem o nariz para essas pastas descartando-as. Fica parecendo meio simbólico, tipo um “puxadinho das minorias”, um arranjo social e político da esquerda para marcar território. Louvando a indicação de negros e negras para essas pastas, mas questionando enquanto negros que refletem sobre o poder, a elite intelectual negra argumenta o porquê da ausência de negros e negras no comando de ministérios importantes como Planejamento, Saúde, Justiça, Defesa, Educação, Desenvolvimento Social, Fazenda e Casa Civil. Esses ministérios atuam diretamente na estruturação do país, o problema para entrar é que é uma porta estreita onde há dinheiro e poder, territórios próprios e exclusivos da branquitude e nessas portas os negros não podem entrar. Soa muito mal, talvez seja uma versão mais envergonhada do regime de segregação estadunidense e sul africano, um modelito à brasileira como um “apartheid moreno ou tropical”. Um modelo que despreza e humilha milhares de negros e negras Brasil afora, que possuem competência política e formação acadêmica para ocupar esses espaços de poder
No Brasil a demonstração de consolidação da branquitude é escancarada. Mesmo em governos de viés de esquerda ou centro-esquerda, onde negras e negros continuam alijados dos centros de espaços de poder. Há uma enorme naturalização do racismo estrutural nesses casos e até uma certa dose de hipocrisia, na medida em que bradam contra o racismo mas mantém os negros limitados em uma bolha identitária que nem arranha os debates políticos sobre investimentos estruturantes, orçamento público e programas sociais de alto perfil.
A branquitude através de seu sistema criminoso e perverso, utiliza o mimetismo político e acena com algumas pequenas concessões ao povo negro. Geralmente projetos de com algum impacto midiático, mas que passam bem longe das mudanças estruturais, que costumam entregar excelentes retornos de imagem. A branquitude pode até entregar um penduricalho ou outro para o povo negro, desde que seja mantida onde sempre se sentiu confortável que é placidamente estabelecida nos ombros dos negros.
A branquitude é um conjunto de mecanismos perversos que garante a perpetuação da riqueza e do poder para a raça branca. Quando garante os melhores empregos para os seus, garante diretamente ótimos salários que podem pagar ótimas instituições de ensino para seus filhos que ao se formarem garantirão os melhores empregos do mercado de trabalho e assim a perpetuação da riqueza e do poder permanecem asseguradas através desse looping social interminável.
Quando falamos em ótimas instituições de ensino estamos falando de pesquisa, acesso ao parque tecnológico avançado, aos centros de saúde e laboratórios de ponta, além do controle de todo o sistema financeiro como bancos, grandes fundos de investimentos e gigantes do mercado de tecnologia, comunicação e imobiliário.
O povo negro não faz parte desse jogo. Quando se esforçam muito ou são detentores de alguma habilidade fora do comum, podem se acercar da mesa do banquete capitalista. Porém sem nunca sentarem à mesa, na medida em que são mantidos na periferia do convescote, girando pelo entorno, recolhendo as migalhas que lhes são atiradas pelos comensais brancos.
A branquitude faz o jogo do ganha/ganha e impõe aos negros o terrível perde/perde ao obrigar esse contingente étnico desfavorecido a viver em territórios ambientalmente e socialmente degradados, sendo mal remunerados por seus trabalhos, vivendo apertados em desconfortáveis transportes coletivos de massa, dependendo da saúde pública precarizada e de um sistema educacional falido para seus filhos. É uma conta que não fecha nunca, são como eternos juros rotativos no cartão de crédito da existência, onde os sonhos natimortos de uma vida melhor fenecem no fechamento mensal da fatura da vida.
A branquitude em sua incrível capacidade de naturalização das desigualdades, considera essa situação perfeitamente normal, sendo que o pior, é não se sentir responsável por nada que acontece nessa roda viva de sofrimentos imposta ao povo negro.
Muitos são como os brancos do discurso do reverendo King. Estão junto com os negros, na igreja, no Candomblé, na capoeira, no samba, no estádio de futebol e até nas bebedeiras. Estão ali juntos, mas inconscientemente separados, sem a reflexão do porquê os negros vivem daquela maneira, com todas as dificuldades cotidianas que são intermináveis, sofrendo opressão da polícia, habitando territórios controlados por poderes paralelos e ameaçados pelas balas perdidas da violência Saindo dali esses brancos, assim como os brancos do discurso do Reverendo King, vão para suas casas confortáveis em seus veículos caros, viver suas vidas de privilégios. A branquitude não os quer raciocinando, tanto o negro quanto o branco. Devem sim seguir em frente e cumprir a missão de fazer a máquina de moer negros girar. Não precisam refletir sobre o complexo e sofisticado modelo de predominância social que há muito está ajustado . O sistema funciona assim e assim cada vez mais vai se reproduzindo e se perpetuando.
*Amauri Queiroz é Escritor e autor dos livros: “Egotrip”, “Racismo Tropical”, A Revolta dos Blacks”, “Ideologia e Negritude na Luta Antirracista”, “Ensaios sobre o Fascismo Brasileiro”, “Fallen Angel” e “Raça ou Trapaça – sobre a Branquitude”.