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O Espelho

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Nessa estória de sal quem paga o pato geralmente é o sapo. Mas em Alagoas o sapo pulou fora e deixou o povo como pato.

Dizem que a história se repete ou melhor ainda, é repetida pela ação humana. A situação inacreditável que está acontecendo em Maceió está sendo repercutida em toda a mídia nacional, sem porém, questionar a raiz do problema, assim como aconteceu nas barragens de rejeitos que romperam em Minas Gerais.

Essas empresas investem no Brasil sabendo que aqui o marco jurídico é constantemente alargado, por conta da cada vez mais liberal composição do Congresso Nacional.

A imprensa neoliberal, por outro lado, insiste em repercutir as consequências sociais e ambientais ocasionadas pelas operações extrativistas das empresas, mas passam longe de apontar o verdadeiro causador desses desastres que é o capitalismo selvagem que no Brasil tem carta branca para operar sem ser incomodado.

Ao menor sinal de regulação e controle os segmentos empresariais desfraldar imediatamente velhas cantilenas como a inevitabilidade do progresso, a ameaça de desemprego em massa e a contribuição efetiva desses setores para o crescimento da balança comercial e consequentemente para o PIB.

O sistema neoliberal também atua de maneira política ao tentar retirar credibilidade dos movimentos sociais, desfraldando bandeiras anticomunistas e impondo força na agenda patriótica e de costumes.

Assim nossa soberania enquanto nação permanece vilipendiada, assistindo a absurda situação de um ou mais bairros serem evacuados devido ao risco de serem engolidos por um cratera gigante que está se formando.

Indenizações serão pagas, mas nem arranham os cofres dessas empresas, pois  os riscos já estavam incluídos nos planejamentos estratégicos dessas empresas. Essas indenizações diante dos lucros extraordinários obtidos pela extração ostensiva durante anos são praticamente ínfimas.

Fica para o povo a tristeza de ter que abandonar suas residências que carregam suas ancestralidades. Os mortos que nunca ficam para trás pois são chorados diariamente por famílias para sempre enlutadas.

A tragédia de Maceió é fundamentalmente agravada pois o salgema retirado do subsolo é utilizado para produção de amianto, soda-cáustica, PVC e outras manufaturas prejudiciais ao meio-ambiente.

Todas essas empresas operam em todo o território brasileiro com as licenças ambientais em dia, demonstrando claramente que a legislação do setor é produzida de maneira nítida por parlamentares que não servem e legislam em causa própria, voltados contra os interesses nacionais e aviltando nossa soberania 

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

VALEU ZUMBI!

A palavra correta é reparação. Finalmente a Câmara dos Deputados corrigiu uma enorme injustiça histórica ao decretar feriado nacional a data de 20 de Novembro, conhecido como “Dia da Consciência Negra”. A efeméride é uma homenagem ao que se convencionou comemorar como dia da morte de Zumbi dos Palmares, na Serra da Barriga em Alagoas.
O Quilombo dos Palmares foi um enclave negro, fundado em 1595 por escravizados africanos e brasileiros que fugiram de seus respectivos cativeiros. Organizado politicamente como uma pequena federação, o quilombo era composto por 16 “mocambos”, sendo “Macaco” o principal deles e considerado a “capital” de Palmares. Nele reinava Ganga Zumba, soberano de destaque que criou a forma de organização política e social, além da resistência militar do enclave, que em seus 100 anos de existência enfrentou cinco dezenas de batalhas contra os impérios português e holandês, além das milícias armadas particulares da época que eram os bandeirantes.
A importância e a possibilidade de viver em liberdade em Palmares era tão significativa e atraente, que o quilombo reunia cerca de 10% da população brasileira no século XVII. Sua expansão foi tamanha que o rei de Portugal ofereceu um armistício aos seus líderes, propondo uma área, ou reserva exclusiva na capital de Pernambuco, onde todos poderiam viver em liberdade sem a ameaça do retorno ao modelo escravista. 
Ganga Zumba já idoso e cansado pelas muitas e contínuas batalhas enfrentadas, aceitou a proposta de Portugal e depôs as armas juntamente com parte de seu exército e muitos habitantes, rumando com cerca de 2 mil palmarinos para a planície pernambucana, rumo a uma nova vida.
Zumbi que era seu principal general, havia sido capturado ainda criança em Palmares e entregue para um padre em Recife, que o utilizava como escravo e ao mesmo tempo coroinha nas atividades cotidianas da igreja. Ao atingir a maioridade o jovem Zumbi fugiu e retornou para respirar os ares livres de Palmares e compartilhar da cosmovisão africana da qual jamais havia esquecido.
Como excelente conhecedor do mundo dos brancos, Zumbi desconfiado, não atendeu o chamado de Ganga Zumba para depor as armas e retornar para uma planície onde estaria à mercê das ambivalências da cosmovisão eurocêntrica e escravista dos brancos.
Ganga Zumba assim que se estabeleceu com sua gente no local prometido pelo império português, foi assassinado e toda sua gente foi presa e entregue a novos senhores, sendo que muitos foram assassinatos junto com seu líder enquanto que o restante foi entregue a diversos senhores que os escravizaram novamente até a morte.
Zumbi havia assumido a governança de Palmares e dirigia o enclave dividindo o poder com líderes dos mocambos e com os habitantes que não concordaram com o armistício e decidiram continuar vivendo em Palmares.
A partida de Ganga Zumba com milhares de palmarinos e entre eles grandes e destacados guerreiros, diminuiu bastante a capacidade militar do enclave negro. Mesmo assim a resistência palmarina lutou dezenas de batalhas antes de sucumbir ao ataque derradeiro liderado pelo bandeirante Domingos Jorge Velho em 1695, que atacou Palmares com um exército de 15 mil homens e dezenas de canhões emprestados pelo império português.
Zumbi ao assistir a queda iminente e irreversível de Palmares atira-se em um precipício dando fim à própria vida, encerrando assim um dos mais valorosos exemplos de defesa da liberdade que se tem notícia no mundo.
Palmares caiu sob uma montanha de milhares de corpos negros, como uma Tróia Negra, que escreveu com o sangue de seus guerreiros o mais bravo libelo de amor à liberdade que a historiografia branca e racista brasileira teimou em esconder e desqualificar através do tempo e da história.
O reconhecimento pelo estado brasileiro da importância da resistência legítima palmarina e da luta centenária pela liberdade, decretando feriado nacional, demonstra que a nação brasileira ficou maior, menos hipócrita e mais verdadeira.
A decretação do feriado nacional no dia em que se celebra a memória de Zumbi, um cidadão brasileiro, nascido livre em Palmares, aprisionado e escravizado pelo sistema opressor, é motivo de grande comemoração para os que sentiam um certo sentimento de injustiça ao ver Tiradentes ser comemorado nacionalmente como o geande herói da liberdade do Brasil. O herói que nunca lutou nenhuma batalha emancipatória, que jamais deu um tiro sequer que justificasse tamanha honraria e que tinha como pares senhores escravistas.
Os milhares de guerreiros mortos em Palmares, assim como os que foram massacrados na planície junto com Ganga Zumba, estão em festa no Orum. Comemoram pela reparação, pois de agora em diante serão lembrados para sempre pelas gerações brasileiras como guerreiros e guerreiras da liberdade. Estão felizes e orgulhosos, sabedores que tantas lutas e sacrifíficios por liberdade não foram em vão.
Valeu Ganga Zumba! Valeu Acotirene! Valeu Aqualtune! Valeu Dandara! Valeu Zumbi!

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

O Amargo do Cisne

"...Como é que eu posso por ela trocar/A emoção de ver Vilma dançar/Com o seu estandarte na mão"
(O Conde - Jair Rodrigues)
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A gente tenta não sentir a força do ódio, nem que seja por uns instantes, mas às vezes fica difícil. Estou na histórica cidade de Paraty, no litoral sul do Rio de Janeiro, participando da Feira Literária Internacional de Paraty, contribuindo em uma série de palestras sobre a questão racial brasileira.
Acordo bem cedo, ainda insone, custando a acreditar no que leio sobre o ocorrido com Dona Vilma da Portela no aeroporto de Brasília.
Vilma Nascimento, a maior porra-bandeira da Portela de todos os tempos, imortalizada como “O Cisne das Passarelas”, que junto com Neide e Mocinha da Mangueira, Irene do Império Serrano, Maria Helena da Imperatriz Leopoldinense, Juju Maravilha e Selminha Sorriso da Beija Flor, Rita Freitas do Salgueiro e Tuca da Vila Isabel e Lucinha Nobre entre outras beldades do bailado.
Vilma foi a escolhida pelo universo para ser a melhor. Durante anos encantou a passarela nos desfiles da Portela, seguindo fielmente a tradição de Dodô, a primeira porta bandeira da Portela.
Dona Vilma estava no aeroporto de Brasília, voltando para o Rio de Janeiro. Estava orgulhosa e feliz, pois havia sido homenageada pela Câmara dos Deputados na Semana da Consciência Negra.
No aeroporto de Brasília, na loja de conveniência Dutty Free pode entender que a homenagem havia sido apenas uma encenação do Brasil ideal, mas que na verdade, o Brasil real é outro bem sujo e opressor.
Humilhada publicamente por uma funcionária da loja, teve sua bolsa devassada, revirada, como se fosse uma meliante, uma ladra, acusada de furto.
Após o pérfido constrangimento, ainda pudemos assistir Vilma catando umas coisinhas da bolsa que caíram no chão, mostrando a falência moral dessa sociedade racista e hipócrita que é a sociedade brasileira.
O escândalo explodiu a Internet. A loja emitiu o tradicional pedido de desculpas, informando que tomará providências para que eventos do gênero não voltem a acontecer, enquanto que a funcionária racista e etarista, permacece “afastada”.
Dona Vilma viu toda sua glória desvanecer, atingida por um gesto cruel cometido por uma funcionária de uma loja de conveniência, que sequer deve saber sambar, mas sabe operar com eficiência os mecanismos estruturais do racismo. Famosa e reverenciada no mundo da cultura brasileira, Vilma para aquela funcionária desconhecida era apenas um mulher velha e preta que estava tentando surrupiar furtivamente umas coisinhas na loja.
Retornando ao Rio de Janeiro, onde é respeitada como uma deusa, Vilma sentiu a “ficha cair”. A glicose disparou e o estado de saúde preocupa a família e ao mundo do samba. Vilma sempre driblou os jurados e certamente vai se sair bem dessa, assim esperamos.
Fica então a pergunta: Quantas vilmas desconhecidas passam pelo mesmo constrangimento nas lojas do país? Quantas funcionárias e funcionários submetem negros e negras em todo o Brasil à mesma situação humilhante pela qual Vilma foi submetida?
A coisa tá feia, no Brasil e no mundo, tá piorando cada vez mais. As escolas precisam de maneira expedita começar a trabalhar com nossas crianças os fundamentos básicos do letramento racial para a partir de então podermos constituir uma nova sociedade, livre do racismo estrutural, da homofobia, da LGBTfobia, do etarismo, do capacitismo, e tantos outros “ismos” que adoecem nossa vocação de nação soberana e democrática.
Também podem ensinar samba nas escolas, pois diz a sabedoria popular que quem não gosta de samba bom sujeito não é, ou é ruim da cabeça ou é doente do pé.

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

A Branquitude, o Colorismo e o Flautista de Hamelin

 


A branquitude historicamente sequestra os protagonismos e as histórias pertencimento da humanidade. Os gregos assim fizeram com as grandes produções intelectuais africanas. Os estadunidenses, por exemplo, sequestraram, se apropriaram e consolidaram para si o termo “América”, se apropriando indevidamente das designações “americano e americana”, como representantes universais do continente. O contexto de apropriação histórica é tão poderoso que os americanos do hemisfério sul não se dizem americanos e utilizam o gentílico de suas nacionalidades. Nós americanos do sul nos designamos brasileiros, assim como argentinos, chilenos, uruguaios e peruanos. Os estadunidenses não utilizam essa correta designação e se dizem americanos, colocando um ponto final no assunto, onde se recusam a discutir qualquer polêmica acerca desse assunto, definindo que está posto e será sempre assim.

Na questão racial, a branquitude luta para sequestrar nossas raízes, nossa ancestralidade e nossa capacidade de organização étnica e social, apresentando sistematicamente novos cenários conflitantes que visam a divisão e a desagregação social do povo preto. Designações como parditude e colorismo talvez tenham vindo mais para confundir que para explicar.

Os termos criados nesses contextos de desarmonização e assimetrias raciais, servem tão somente para nos manter ocupados com nossos próprios medos, proto conflitos gestados em nosso efervescente quintal racial, enquanto a branquitude segue imponente gerindo nossos destinos e por conseguinte os destinos da humanidade.

A branquitude criou um modelo de sistema racial diversionista, que podemos concebê-lo como uma imagem metafórica do teclado de um piano. Esse sistema é o colorismo, onde como nos teclados, os tons estão compreendidos entre os grave em um extremo e os agudos em outro. A branquitude se posiciona à direita dos tons agudos, enquanto que os pretos retintos estão agrupados nos tons mais graves, à esquerda e extrema esquerda.

A branquitude exerce interruptamente a sedução a cooptação e o recrutamento do máximo possível de teclas do teclado racial, para que possa compor com a tessitura média dos pardos suas próprias sinfonias e apresentá-las exclusivamente como suas. Dessa maneira, com a pulverização e desedentificação da totalidade do conjunto racial negro, pode isolar e impedir o avanço do povo preto retinto, que historicamente sempre foi o contingente étnico revolucionário desse país, junto com a valorosa resistência indígena.

Personagens como Dandara, Ganga Zumba, Acotirene, Aqualtune, Maria Felipa, Luiza Mahin, Maria Firmina, João Cândido e Teresa de Benguela entraram para a historiografia oficial como pretos e pretas que construíram e participaram de movimentos revolucionários que são exemplos universais incontestes de combate à branquitude.

A branquitude é filha dileta do capitalismo. Um conjunto poderoso de ações organizadas mas que não passa de uma das inúmeras metástases geradas pelo tumor principal que é o capitalismo. Através dele são geradas incongruências como o patriarcado, racismo, homofobia, etarismo, gordofobia e capacitismo, entre tantas outras. São as metástases de um tumor irrigado pelas elites internacionais, pelas burguesias imperiais e imanentes que sustentam o regime de horror denominado capitalismo.

É através da branquitude que o capitalismo organizou e construiu o maior sistema imperial de dominação universal. Foi através dela que foram realizadas grandes navegações pelo globo terrestre, que promoveram invasões, conquistas, grandes genocídios e a escravização mercantil de dezenas de milhões de africanos e indígenas, utilizados como mão de obra escrava na construção do Novo Mundo.

A consolidação desse sistema perverso de opressão tem como matriz principal a égide da dominação pela divisão. A partilha do Continente Africano pelas potências coloniais europeias propiciou e aprofundou as diferenças étnicas e tribais entre os povos africanos através da implantação forçada de diferentes cosmovisões eurocêntricas que desfiguraram o modo de viver africano. A divisão pela cooptação foi uma estratégia basilar para a construção de uma barreira praticamente intransponível formada por brancos e reforçadas pelos designados “pardos”. O recrutamento desse contingente étnico miscigenado sempre foi considerado como uma “promoção melanínica” que ocasionalmente pode gerar pequenos privilégios periféricos nos espaços políticos, culturais e econômicos na base produtiva do capitalismo.

O sequestro de grande parte desse contingente de pretos não retintos, com fenótipos miscigenados, gera como na doutrina jurídica o mecanismo denominado “Síndrome de Estocolmo” ou “Vinculação Afetiva de Terror”, onde o cativo, o sequestrado, se envolve emocionalmente com seu sequestrador. De posse da mente do oprimido, o opressor o instrumentaliza para que o oprimido lute contra os seus iguais, defendendo uma doutrina exógena que visa sua exploração, desumanização e dominação eterna.

O capitalismo e sua filha dileta a branquitude seguem se aperfeiçoando, gerando legislações, teses pseudo científicas e modelos tecnológicos avançados que lhes garantam cada vez mais benesses econômicas, lucros e poder. No piano racial da humanidade seguem executando maviosas sinfonias que encantam os mais desavisados. Agem como o flautista de Hamelin, conto do folclore alemão onde um flautista utiliza o poder da música saída de sua flauta para encantar pessoas e animais, levando-as a um destino cruel. Assim é o capitalismo que par a passo com a branquitude, que não é a designação de uma pessoa branca no grande concerto antropológico da vida. A branquitude que tanto nos impede de caminhar e avançar no processo civilizatório universal é um sistema perverso que se retrolalimenta e se fortalece com a desigualdade ocasionada por seus mecanismos.

 

 

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

O looping da epistemologia crítica e a disforia ontológica na (re)construção do ser social negro


Ser negro significa carregar não somente o próprio peso, o corpóreo, carbonífero, mas o efeito gravitacional da vida pesada, das marcas, dos sofrimentos, da agonia. O negro carrega o peso das agonias, mesmo que as correntes tenham ficado para trás, existem os pesos invisíveis de mundos invisíveis. Do negro foi retirado tudo, a capacidade de sonhar, a vontade da rebelião, até o direito de amar. A ignorância da branquitude a faz pensar, se é que pensa sobre isso, que os átomos que a constituem são mais elaborados que ia átomos que constituem o povo negro. Aquele povo bariônico, robusto e titânico que sobrevive a contínuos genocídios desde os primórdios do encontro com o eurocentrismo.
O povo negro sofre do alvorecer ao por do sol. Vive com medo da violência, do desemprego, da fome, da miséria e da solidão. Vive em um país onde nasceu mas são tratados como imigrantes incômodos, como um entulho étnico descartável. Ao vagar pela urbe em busca de um caminho de vida, em busca depz e prosperidade, são enxotados para os atalhos da invisibilidade e da indigência. Jamais cantará as canções de glória das aldeias de seus ancestrais. I colonialismo como um machado epistemológico cortou as raízes das origens de seus antepassados. Onde estarão sepultados? No Alto Volta? Sudão? Daomé? Benin? Burkina Faso?Chade? Níger? Senegal? Angola? Congo? Somália? Etiópia? Madagascar?
O negro teve sua herança atavica vilipendiada. A África não é um país e sim um imenso continente com 54 países diferentes, incluindo o Egito, nobreza intelectual da humanidade que a branquitude insiste em não citá-lo como um país africano. As lágrimas provocadas pelo colonialismo, pelo capitalismo e pela escravidão quando vertidas, transbordariam o Oceano Atlântico de tantos lamentos gerados pela cruz e pela espada. Oh! Atlântico! Mar de trevas, mar de solidão, crudelíssima e fria última morada de tantos seres horrorizados diante da morte. Duro Atlântico que foi feito rota sofrida, caminho da separação, do não-retorno, da condenação à eterna servidão em terras aspérrimas. O cativeiro lhe mostrou a perfídia do humano. Transpôs a última fronteira entre a civilização e a barbárie. Violou os corpos, pulverizou as mentes e destruiu os corações e as cosmovisões africanas
Negro, brasileiro negro, a tradução mais fiel da resiliência e da esperança vã. Um ser que traz no corpo as marcas da vida e na alma as cicatrizes da dor. Filhos de ninguém que perseveram haver um dia no futuro em que o sol brilhará para todos. Sim, povo negro viverá nesse trágico e eterno looping vagando entre a agonia cotidiana e a esperança de quimeras ancestrais como um Sísifo antropológico galgando as escarpas do destino com o mundo pesado em seus ombros lhe forçando para o fundo do abismo.
Negro brasileiro da entrada de serviço e do quartinho de empregada. Das noites agoniadas sob as marquises da indiferença. Dos malabarismos adolescentes nos sinais ansiando por um descer de vidro com um olhar generoso. Negro brasileiro, que suporta a barriga vazia sem ceia e a porta da cela do presídio cheia de banzo e lamentos.
A desumanidade da civilização o desumanizou com a incompreensão do cativeiro animalesco com suas sevícias e aberrações esnsandecidas e escatológicas. Negro brasileiro, filho da dor mais profunda, do mal mais doído, ébano gerado e corrompido pelo lado mais sombrio e cruel da branquitude. Estamos juntos nessa meu irmão, minha irmã, negros irmãos que não se curvarão ao neocolonizador. O tempo da servidão mercantil passou, legando um vale de lágrimas, mas Palmares pulsa e grita em nossos corações, fazendo fervilhar em nosso sangue a chama guerreira que embalará milhões de novos Zumbis e Dandara. Nossos olhos brilham diante da perspectiva do desafio, como os dos malês, de Aqualtune, de Teresa de Benguela e Luiza Mahin.
A divindade africana que une os deuses aos mortais, sem ameaças, sem culpas e sem sofrimentos, anuncia que nosso futuro será um lindo desfile da eudaimonia africana, nossa cosmovisão repleta de cores, alegrias e sabores. Desfilaremos o êxtase do corpo com as mentes em nirvana sobre o asfalto frio das avenidas cinzentas e tristes da branquitude. Pobre branquitude que não conhece e não sabe a delícia de ser e saber sambar um samba rasgado de emoção na levada do alegre despertar rouco de uma cuíca.

sábado, 23 de setembro de 2023

Branquitude, raça e trapaça

Onde quer que esteja nesse Brasil, o branco estará sempre deitado em berço esplêndido, usufruindo das benesses legadas pelo regime de escravidão mercantil que durou mais de 350 anos, sendo extinto há menos de 150 anos. É sempre bom lembrar que nosso país foi cúmplice do sequestro de pelo menos 5 milhões de africanos que viviam livres em seus países, sendo que chegaram vivos cerca de 4 milhões de cativos, pois o restante foi jogado nas águas gélidas do Oceano Atlântico durante a travessia, por morte, doença e em casos raros por rebelião.
Muito se fala na escravização desses milhões de africanos trazidos para o Brasil, mas por vergonha ou por malandragem histórica, deixam de registrar que houve a escravização de milhões de brasileiras e brasileiros, filhos desses ventres africanos e depois brasileiros, que nasceram aqui em nosso território, legítimos cidadãos e cidadãs que foram injustamente condenados à escravidão perpétua, sem jamais conheceram e respirarem a insubstituível liberdade. Eram considerados propriedades privadas de seus senhores desde o momento de suas concepções nos ventres das mulheres negras.
É muito dolorido e assustador tomar conhecimento que esses nossos irmãos e irmãs nascidos aqui, foram concebidos através de estupros sistemáticos onde os escravizadores submetiam as mulheres negras a terríveis e inomináveis situações brutalizadas. Os escravizadores visavam tão somente o ato bárbaro da satisfação sexual forçada, completamente despido do sentimento primordial do amor, visando a efetivação da bestialidade e a previsão da venda futura da criança que viria ao mundo.
A mulher negra então era obrigada a abrigar em seu ventre um feto que não foi desejado, que foi gerado pela brutalidade do estupro, cujo destino futuro seria a comercialização no mercado negreiro como um objeto qualquer, como uma mesa ou uma cadeira. A branquitude utilizava uma figura do Direito Romano denominada “strumento vocale”, ou seja, um objeto falante, que justificava a escravização de seres humanos sem confrontar os pilares básicos do cristianismo. A bula papal “Dum diversas” de 1452 emitida pelo Papa Nicolau V para o rei de Portugal Afonso V permitia a captura e escravização perpétua de “gentios e sarracenos”, assim como a posse das propriedades conquistadas. Os negros brasileiros nascidos após 1500 obviamente não estavam incluídos nos ditames da bula papal, mas mesmo assim o império português e depois brasileiro fecharam os olhos para a violação humana que se seguiria por séculos.
Muitas dessas mulheres negras pariam cerca 15 crianças durante suas vidas de cativeiro. A maioria dessas crianças eram sistematicamente vendidas para seus novos proprietários, quando então se viam perdidas em suas histórias de tristezas e sofrimentos pelos pérfidos fados do mundo.
Luiz Mott descreve que nos anais da primeira visitação do Santo Ofício à Salvador no ano de 1591 foram condenados 18 pessoas pelo crime de “sevícias”. Na época Salvador possuía 800 habitantes brancos e cerca de 3 mil negros escravizados.
A historiografia oficial não é generosa e menos ainda transparente na quantificação desse contingente de brasileiros e brasileiras que vergonhosamente nasceram já na condição de cativos, sem nunca terem respirado os ares da liberdade, em um país regido pela égide do cristianismo.
O branco brasileiro, rico ou pobre, vivo ou morto, de uma firma ou de outra, foi beneficiado direta ou indiretamente pela escravidão, esse genocídio histórico de lesa humanidade que mostrou de maneira inequívoca o lado perverso e sombrio da branquitude, ou seja, o lado demoníaco do ser humano, quando lhe é concedido através da força o poder de vida e morte sobre outros seus iguais, mas porém diferentes, baseados em doutrinas pseudo científicas, que lhes propunha uma alteridade racial absolutamente inexistente.
Enquanto perdurou por aqui o instituto da escravidão, houve intensa atividade comercial no tráfico de seres humanos. Trazer os africanos escravizados para o Novo Mundo era um empreendimento de alto custo econômico para a empresa colonial. O “negócio” tinha início muitas vezes com a captura de africanos livres em seus países de origem, para logo depois enfrentar a tenebrosa travessia transatlântica que sempre oferecia enormes riscos e possuía alto custo pela utilização de embarcações de grande porte. A empreitada exigia a contratação de tripulação experiente e custos logísticos complexos como alimentação, medicamentos e equipamentos de marinharia. O custo financeiro para transportar um africano escravizado para o Brasil era muito grande para os valores da época, por isso o incentivo na procriação de cativos nascidos no próprio país.
A construção intelectual e a conceituação sobre a branquitude aflora nos anos 90 com o conjunto de estudos denominados “Critical Whiteness Studies”, que referenciaram os principais estudos sobre o tema. A teorização da identidade racial branca recebeu forte aporte intelectual de W. E. B. Dubois com a publicação "Black Reconstruction in the United States".
O psiquiatra e militante martinicano Franz Fanon discorreu em sua obra “Peles Negras, Máscaras Brancas” sobre a necessidade da abolição do termo “raça”, para enfim libertar tanto o negro de sua negritude como o branco da branquitude, que considerava verdadeiros cárceres da identidade racial.
Os “Whitenees Studies” definiram duas principais características para a branquitude: a branquitude crítica que convive pacificamente com os diferentes, tendo plena consciência dos privilégios que a beneficiam mas que porém nada faz para removê-los e a branquitude acrítica, vertente feroz que estimula a doutrina do confronto e radicaliza o movimento com a proposta inclusive de eliminação física de negros e negras, onde movimentos como a Ku Klux Klan e grupos neonazistas são a face mais visível desse tipo de branquitude.
A branquitude conseguiu se invisibilizar na historiografia oficial brasileira como movimento opressor e constituinte de desigualdade. Segundo Guerreiro Ramos, as teorias das relações raciais no Brasil são um mergulho na sociologia do negro nativo. Elas não apontam uma dicotomia racial e tão somente o lado do oprimido como se não houvesse um opressor.
A branquitude não é uma doutrina ou sistema de fácil compreensão. Não é somente ser branco, pois muitos brancos rejeitam o racismo e até se formam em fileiras para combate-lo. Branquitude é um sistema de origem colonial que determina o modo de funcionamento das estruturas e instituições, onde os espaços privilegiados sempre estão à disposição da raça branca.
A história do fim da branquitude e da dicotomia com a negritude foi uma forte bandeira de luta do Reverendo Martin Luther King, que era um ativista negro formidável e um dos principais líderes do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos.
 Em 28 de agosto de 1963 na capital anericana aconteceu a "Grande Marcha por Emprego e Liberdade", também chamada de "Marcha de Washington" ou "A Grande Marcha", ato convocado por organizações religiosas, sindicatos e movimentos populares pelos direitos civis da população negra dos Estados Unidos.
Foi naquele dia que o Reverendo King proferiu o icônico discurso onde enfatizava que tinha um sonho. Sim, o sonho de que um dia nas colinas vermelhas da Geórgia os filhos de ex escravos e os filhos de ex proprietários de escravos poderiam sentar-se juntos à mesa da fraternidade. Até mesmo no Mississipi, um estado ardendo sob o calor da opressão será transformado em um oásis de liberdade e justiça. A plateia em transe ouvia o reverendo e entre as centenas de milhares afro estadunidenses também estavam milhares de cidadãos brancos dos Estados Unidos. Eram milhares de brancos na plateia ouvindo emocionados as palavras de paz, justiça e igualdade que o líder negro proferia sem uma gota de ódio em seu sangue.
Martin Luther King não propunha uma nação negra. Ele lutava por uma nação para todas as pessoas. Que não houvesse apartheid. Que a diferença da coloração da pele não orientasse os que iriam sofrer e os que receberiam os privilégios de uma vida confortável e sem sobressaltos.
Naqueles anos difíceis para a população negra dos EUA, a separação racial por força da lei era quase que uma condenação ao sofrimento. Nascer negro sob o regime do apartheid significava ser cidadão de segunda classe, mesmo antes, ainda no ventre da mãe.
Mas o que aqueles milhares de brancos faziam na plateia do reverendo no 28 de agosto, naquela tarde em Washington, em plena vigência do apartheid? Certamente não eram racistas. Além de não serem racistas eram antirracistas, pois senão jamais estariam naquela posição de exposição enquanto pessoas brancas. Mas querendo ou não eram beneficiadas pelo sistema gerado pela branquitude. Apesar da solidariedade que estavam prestando de maneira admirável aos negros do seu país, aquelas pessoas brancas nasceram e cresceram tendo acesso aos benefícios e ao melhor conjunto de oportunidades civilizatórias que um ser humano não negro recebe de um estado segregador e opressor.
A emoção que ecoava naquele dia nos gramados de Washington, atingia a todos. Porém causava uma certa confusão nas mentes daqueles brancos. Muitos talvez não tivessem a compreensão do caráter universalista do protagonismo da raça branca. Os brancos ali presentes, mesmo sendo antirracistas, lutavam ombreados com os negros, mas em seus cotidianos sempre usufruíram do resultado construído pela branquitude, concordassem ou não com as ofertas.
O Reverendo Martin Luther King era um ardoroso defensor da convivência pacífica entre todas as raças e talvez por esse motivo tenha sido cruelmente assassinado. Seu famoso discurso foi concluido com essas belas palavras: “...E quando isto acontecer, quando nós permitimos o sino da liberdade soar, quando nós deixarmos ele soar em toda moradia e todo vilarejo, em todo estado e em toda cidade, nós poderemos acelerar aquele dia quando todas as crianças de Deus, homens pretos e homens brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão unir mãos e cantar nas palavras do velho spiritual negro: Livre! Livre afinal”.
 A confusão da branquitude permanece circulando e operando até hoje, onde muitos brancos questionam sobre o porquê da não realização da “Semana da Consciência Branca”, ou “White is Beautifull”.
Existe a negritude que nunca utilizou a mesma régua da branquitude. A negritude é um modo de viver, uma doutrina consciente e empoderada que cria suas manifestações voltadas para a ancestralidade, para novas linguagens culturais e intelectuais. A branquitude é exatamente o oposto, vive nas sombras planejando de forma contínua o próximo golpe. Sua existência está diretamente ligada ao projeto de poder do capitalismo e o controle imanente da sociedade e de todas as raças.
Negros e pardos, ou somente negros, como deve ser, apesar de constituírem a grande maioria da população não operam nem planejam um projeto de tomada de poder. Seguem desse jeito, sem esperanças, talvez devido as terríveis cicatrizes legadas pelos 350 anos de escravidão. Não é ao menos o espírito do negro cordial, é na verdade a ausência de espírito. É incompreensível que no parlamento brasileiro os negros sejam uma minoria insignificante, na medida em que são a maioria da população. Parecem ouvir uma linda música que os faz adormecer enquanto o racismo estrutural opera diuturnamente sem nunca cerrar os olhos.
O branco construiu através da história seu caráter universalista enquanto raça ou grupo étnico. Por esse motivo os comerciais e a programação da TV são recheados de brancos, talvez 95%, quando na composição racial brasileira os brancos representam menos de 50%. Esse é um exemplo evidente do universalismo branco, que também é gritante em outros espaços de poder como o Congresso Nacional, por exemplo, onde as mulheres negras que são  28% da população, são responsáveis por míseros 2% da composição das duas casas, Senado Federal e Câmara dos Deputados. No Judiciário é a mesma cantilena segregadora, onde no Supremo Tribunal Federal nunca houve a indicação para que uma ministra negra compusesse o pleno do tribunal.
No poder executivo há uma tênue flexibilização nas composições dos ministérios, onde colocam os negros nos comandos da Integração Racial e Direitos Humanos, onde não há verba e os partidos geralmente torcem o nariz para essas pastas descartando-as. Fica parecendo meio simbólico, tipo um “puxadinho das minorias”, um arranjo social e político da esquerda para marcar território. Louvando a indicação de negros e negras para essas pastas, mas questionando enquanto negros que refletem sobre o poder, a elite intelectual negra argumenta o porquê da ausência de negros e negras no comando de ministérios importantes como Planejamento, Saúde, Justiça, Defesa, Educação, Desenvolvimento Social, Fazenda e Casa Civil. Esses ministérios atuam diretamente na estruturação do país, o problema para entrar é que é uma porta estreita onde há dinheiro e poder, territórios próprios e exclusivos da branquitude e nessas portas os negros não podem entrar. Soa muito mal, talvez seja uma versão mais envergonhada do regime de segregação estadunidense e sul africano, um modelito à brasileira como um “apartheid moreno ou tropical”. Um modelo que despreza e humilha milhares de negros e negras Brasil afora, que possuem competência política e formação acadêmica para ocupar esses espaços de poder 
No Brasil a demonstração de consolidação da branquitude é escancarada. Mesmo em governos de viés de esquerda ou centro-esquerda, onde negras e negros continuam alijados dos centros de espaços de poder. Há uma enorme naturalização do racismo estrutural nesses casos e até uma certa dose de hipocrisia, na medida em que bradam contra o racismo mas mantém os negros limitados em uma bolha identitária que nem arranha os debates políticos sobre investimentos estruturantes, orçamento público e programas sociais de alto perfil.
A branquitude através de seu sistema criminoso e perverso, utiliza o mimetismo político e acena com algumas pequenas concessões ao povo negro. Geralmente projetos de com algum impacto midiático, mas que passam bem longe das mudanças estruturais, que costumam entregar excelentes retornos de imagem. A branquitude pode até entregar um penduricalho ou outro para o povo negro, desde que seja mantida onde sempre se sentiu confortável que é placidamente estabelecida nos ombros dos negros.
A branquitude é um conjunto de mecanismos perversos que garante a perpetuação da riqueza e do poder para a raça branca. Quando garante os melhores empregos para os seus, garante diretamente ótimos salários que podem pagar ótimas instituições de ensino para seus filhos que ao se formarem garantirão os melhores empregos do mercado de trabalho e assim a perpetuação da riqueza e do poder permanecem asseguradas através desse looping social interminável.
Quando falamos em ótimas instituições de ensino estamos falando de pesquisa, acesso ao parque tecnológico avançado, aos centros de saúde e laboratórios de ponta, além do controle de todo o sistema financeiro como bancos, grandes fundos de investimentos e gigantes do mercado de tecnologia, comunicação e imobiliário.
O povo negro não faz parte desse jogo. Quando se esforçam muito ou são detentores de alguma habilidade fora do comum, podem se acercar da mesa do banquete capitalista. Porém sem nunca sentarem à mesa, na medida em que são mantidos na periferia do convescote, girando pelo entorno, recolhendo as migalhas que lhes são atiradas pelos comensais brancos.
A branquitude faz o jogo do ganha/ganha e impõe aos negros o terrível perde/perde ao obrigar esse contingente étnico desfavorecido a viver em territórios ambientalmente e socialmente degradados, sendo mal remunerados por seus trabalhos, vivendo apertados em desconfortáveis transportes coletivos de massa, dependendo da saúde pública precarizada e de um sistema educacional falido para seus filhos. É uma conta que não fecha nunca, são como eternos juros rotativos no cartão de crédito da existência, onde os sonhos natimortos de uma vida melhor fenecem no fechamento mensal da fatura da vida.
A branquitude em sua incrível capacidade de naturalização das desigualdades, considera essa situação perfeitamente normal, sendo que o pior, é não se sentir responsável por nada que acontece nessa roda viva de sofrimentos imposta ao povo negro.
Muitos são como os brancos do discurso do reverendo King. Estão junto com os negros, na igreja, no Candomblé, na capoeira, no samba, no estádio de futebol e até nas bebedeiras. Estão ali juntos, mas inconscientemente separados, sem a reflexão do porquê os negros vivem daquela maneira, com todas as dificuldades cotidianas que são intermináveis, sofrendo opressão da polícia, habitando territórios controlados por poderes paralelos e ameaçados pelas balas perdidas da violência  Saindo dali esses brancos, assim como os brancos do discurso do Reverendo King, vão para suas casas confortáveis em seus veículos caros, viver suas vidas de privilégios. A branquitude não os quer raciocinando, tanto o negro quanto o branco. Devem sim seguir em frente e cumprir a missão de fazer a máquina de moer negros girar. Não precisam refletir sobre o complexo e sofisticado modelo de predominância social que há muito está ajustado . O sistema funciona assim e assim cada vez mais vai se reproduzindo e se perpetuando.

*Amauri Queiroz é Escritor e autor dos livros: “Egotrip”, “Racismo Tropical”, A Revolta dos Blacks”, “Ideologia e Negritude na Luta Antirracista”, “Ensaios sobre o Fascismo Brasileiro”, “Fallen Angel” e “Raça ou Trapaça – sobre a Branquitude”.

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

PARDO! O camaleão racial do colorismo.

No início existia o nada e então do nada fez-se o ser negro, primeiramente a mulher negra. A mulher negra, a grande mãe primordial do universo, entregou ao mundo o homem negro, um ser lindo porém frágil e totalmente dependente do seu amor.
 A partir de então houve o povoamento do planeta Terra, um mundo absolutamente negro.
A inquietude natural do espírito humano fez o povo negro se espalhar pelos confins da Terra, buscando novos territórios, construindo futuros, sonhando utopias e conhecendo o desconhecido.
Enquanto caminhavam mundo afora com uma chama acesa no coração, esses grupos de africanos pioneiros foram adquirindo características fenotípicas peculiares aos climas onde se estabeleciam.
As diferenças se acentuavam na medida em que se movimentavam por diferentes ecossistemas e a principal característica de fenótipos que começou a diferenciar os habitantes do planeta foi a perda de melanina, um processo de albinismo lento e necessário posto em marcha pela natureza que visou garantir a sobrevivência dos migrantes negros em suas novas vidas. A opção em viver em territórios frios, cobertos de gelo, gerou a grande transformação que dividiria para sempre a humanidade, a pele branca sem melanina, profundamente desnecessária nós climas frios e sem grande incidência de luz solar, ou seja, o albinismo dos povos africanos deu origem ao que foi convencionado chamar de raça branca.
A ciência comprova através de diversos estudos, mecanismos e metodologias que o primeiro grupo humano surgiu no Continente Africano. Todos os seres humanos são afrodescendentes, pois de uma maneira ou de outra corre em suas veias o sangue do primeiro grupo humano africano.
Os dois grupos humanos, cada qual a sua maneira, constituiu suas culturas e seu modo de viver de acordo com suas vivências e conveniências. O crescimento da população mundial e a busca incessante por riquezas e novos territórios levou esses dois contingentes humanos a se encontrarem dezenas de milhares de anos depois.
O encontro não foi virtuoso para o povo negro. Os brancos motivados pela ambição e sede de capital e poder navegou da Europa onde viviam até o Continente Africano, dominando e conquistando os territórios negros, escravizando as populações nativas e destruindo o modo de viver daqueles povos.
O encontro deletério entre os dois grupos étnicos antagônicos gerou através de relações íntimas, consensuais ou não, um terceiro contingente que no caso do Brasil recebeu a alcunha de pardo.
A definição geral de pardo indica uma pessoa com diferentes ascendências, ou seja, multiétnicas, que são baseadas numa mistura de cores de peles principalmente entre brancos, negros e indígenas. Essa matriz indoafroibérica compreende um amplo espectro de descendentes de negros e brancos, de negros com indígenas, de branco com indígenas e de negros com indígenas.
A grande maioria dos pardos não possui referências históricas sobre a vida de seus antepassados. As sagas heroicas e comportamentais acerca da virtude, de intelectualidade, ou de conquistas nos mais diversos campos em um passado virtuoso, praticamente inexistem.
Os pardos constituem um grupo étnico que possui uma ancestralidade bastante diversificada. Uma avó branca de olhos azuis centenária aqui, um avô preto velho que mascava fumo ali. Uma tia negra rezadeira quase africana e um tio branco que gostava de jogo, bebida e mulheres.
O pardo principalmente é filho do branco e do preto, e traz consigo a contradição de dois mundos, sem sequer pertencer exclusivamente a nenhum dos dois realmente. Ao pardo foi legada essa equidistância estranha entre duas cosmovisões díspares onde um mundo mesclado pelo branco e pelo negro dentro de um caldeirão racial e antropológico gerou a complexa simbiose indoafroibérica que é o elemento humano denominado pardo.
Biologicamente o pardo é o resultado da fusão de dois mundos, duas culturas duas cosmovisões distintas, mas ao mesmo tempo é filho de mundo nenhum, é um exilado racial, pois não existe cultura parda, não existe cosmovisão parda. Existe a branquitude, a cosmovisão inequívoca do branco para a predominância e existe a negritude, a cosmovisão negra, forte e milenar, geradora da civilização humana. A cosmovisão negra tem o poder e a força transformadora de um furacão, e talvez por isso seja tão atacada pela branquitude, muito por inveja e por medo.
E onde podemos encontrar a cosmovisão do pardo? A cosmovisão do pardo é como um planeta que é atraído gravitacionalmente por duas estrelas que compõem um sistema binário. Essas duas estrelas, a branca e a negra, através do poder gravitacional de cada uma, exercem um enorme poder de atração sobre o planeta pardo simultaneamente, e o fazem coexistir em uma órbita hesitante e um tanto errática, como um cão instado a escolher entre o casal que o cria desde pequeno, para qual colo deve correr quando chamado pelos seus dois donos simultaneamente, uma escolha difícil.
O planeta pardo sente uma enorme atração pelo brilho da estrela branca. É uma estrela que controla os mecanismos de protagonismos, privilégios e poder. Ao lado dela e sob seu manto gravitacional a vida é mais segura e confortável, as grandes oportunidades são visíveis e as dificuldades sempre desaparecem. O planeta pardo tenta se aproximar sempre que pode da estrela branca, mas é repelido suavemente pela força, pelo brilho e pelos ventos solares da estrela, que de maneira inequívoca não quer correr o risco de ter seu brilho afetado e esmaecido por um corpo celeste pardo, que contenhaem sua composição a pigmentação escura das estrelas negras.
Então resta para o planeta pardo se aproximar e ser recebido pela estrela negra e seu fabuloso sistema de acolhimentos coloquiais. O planeta pardo percebe que a estrela branca com sua vocação egoísta e individual vai perdendo lentamente sua força de atração gravitacional e então entrega-se de vez ao mundo da estrela negra acolhedora, que o recebe de braços abertos em uma enorme kizomba universal.
No universo das galáxias das estrelas brancas não há espaço para os planetas pardos. São corpos celestes resultantes de mestiçagens consideradas ineficientes e sem brilho pelas estrelas brancas. Essas estrelas brancas porém, costumam utilizar os planetas pardos como uma barreira espacial para evitar qualquer tipo de contato com estrelas negras. Os planetas pardos nesses casos, servem como anteparos do colorismo para evitar a aproximação, a convivência e a ascensão de possíveis estrelas negras ao olimpo estelar.
O planeta pardo passa a viver em seu espaço/tempo viajando entre esses dois mundos no incomensurável espaço estelar. 
Com a compreensão de que as estrelas brancas querem se utilizar dele para impedir o empoderamento das estrelas negras, passa a conviver e aceitar a cosmovisão negra, admitir sua ancestralidade, passando a viver na gigante e acolhedora cosmovisão do Orum.
Apesar de se sentir acolhido na constelação das estrelas negras, o planeta pardo sabe que não é totalmente negro em sua constituição, em sua gênese primordial. No fundo sempre será observado pelas estrelas negras com reservas, até com.certa desconfiança, pois, há componente das estrelas brancas correndo em seus rios, mares e florestas. Não há o que fazer nesse aspecto, e assim o planeta pardo segue em sua existência confusa e difusa combinada em um universo preto e branco, com suas leis e códigos estelares bicolores, um pé em cada canoa.
 O planeta pardo vive em seu eterno conflito existencial no complexo tecido do espaço/tempo, que é onde vive. Parece um eclipse permanente e imanente, pois é o resultado de um choque geracional, da dualidade entre o preto e o branco e a impossibilidade do coexistir naturalmente entre esses dois mundos
Planeta pardos são como astros errantes no universo infinito da vida. Sabem possuir o branco em sua composição primordial, mas pertencem exclusivamente ao espectro magnético das estrelas negras. No complexo tabuleiro das relações raciais a cosmovisão branca, a débil branquitude, se utiliza dos planetas pardos como peões de sacrifício para desgastar e enfraquecer as estrelas negras em um jogo de atração denominado colorismo. As estrelas negras conscientes de suas poderosas magnitudes apenas observam a insegura corte insidiosa sobre os planetas pardos que sabem ser passageira, como a fugaz passagem dos cometas e asteróides que rasgam os céus do infinito.
No fundo os pardos tão despigmentados e semialbínicos, sobrevivem espremidos pelas suas ancestralidades antagônicas, desconhecem os limites das fronteiras étnicas que os compõem e em muitos casos, como borderlines raciais, renegam ambos os mundos em ataques de pânico e desespero: um e outro mundo, negro e branco.
Terminam por utilizar o único elevador social que lhes é permitido, aquele do mundo de Alice no País das Maravilhas, onde quando se pensa que está em cima está embaixo e quando se pensa que está embaixo está em cima, e mais ainda, nada é como deveria ser e nada está como deveria estar.
Já no elevador social dos apartamentos da burguesia ele não pode subir, pois são espaços privativos da branquitude. Sempre há uma ou outra exceção, mas a regra geral é o interdito e a repulsa.
A branquitude não cansa de ser ridícula em seus sistemas de segregação. Um dos maiores exemplos disso é assistirmos a um padeiro espanhol branco, desempregado e passando por dificuldades econômicas, ir ao estádio de futebol ironizar e ofender um jogador negro de futebol, chamando-o de macaco e fazendo gestualidades próprias dos símios. O detalhe é que o jogador negro é riquíssimo e recebe um salário milionário, possuindo diversos carros de alto luxo na garagem de sua mansão nos bairros mais nobre das cidades espanholas. O que faz um operário branco, desempregado, famélico agir desta maneira irracional e idiota? Certamente a falsa crença que por possuir menos melanina na pele é superior ao outro que é portador de mais melanina. Ao chamar o não-branco de macaco, demonstra profunda ignorância de diversas maneiras, como ser humano pregando o racismo, como ser cultural que desconhece a origem das espécies, pois ele mesmo é um afrodescendente de acordo com a comprovação da ciência, que comprova de maneira irrefutável que a humanidade surgiu no continente africano.
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, a PNAD Contínua do IBGE de 2022 aponta que no Brasil a composição racial tem os seguintes indicadores: pardos 45,3%, brancos 42,8% e pretos 10,6%. Esses dados apesar de serem oficiais, não representam a realidade, pois o critério do IBGE utilizado para o levantamento da composição racial junto à população é o sistema de auto declaração, onde o entrevistado diz qual é a sua cor, ou seja, a qual grupo ético pertence. O grande problema na metodologia de auto declaração é que a identificação acontece por meio de critérios subjetivos por parte dos entrevistados, que por pequenos detalhes oriundos da adaptação climática se declaram brancos como na verdade são pardos.
O colorismo é um conjunto de subjetividades oportunistas que altera de acordo com as situações apresentadas pela branquitude, os pardos em brancos.
Se fossemos considerar que a declaração raça/cor passasse a ser apontada na pesquisa por pessoal qualificado em heteroidenficação o coeficiente dos entrevistados pardos poderia saltar para mais de 60% da população. Os indicadores são gritantes e evidentes quando apontam que o contingente pardo da população é representado como um planeta gravitando em um sistema de estrelas binárias, quando na verdade é um grande planeta com duas luas, uma negra e outra branca, que giram em torno de seu eixo gravitacional. Quando adotamos a teoria de que possuir uma gota de sangue negro passa a ser considerado negro, a raça branca praticamente deixa de existir no Brasil.
A branquitude é um sistema tão poderoso e eficiente que convence a grande maioria parda a não ser negra enquanto que ao mesmo tempo a faz se sentir inferior e dependente do contingente branco, realizando cooptações oportunistas que fortalecem suas estratégias enquanto grupo social predominante.
O sistema racial brasileiro é complexo e emocional ao extremo. Existe uma intensa e silenciosa movimentação entre os três contingentes étnicos, cada um buscando seus interesses, seguranças e oportunidades, de acordo com as estratégias miméticas contidas no grande jogo do tabuleiro racial. Existem pretos se dizendo pardos e pardos se dizendo pretos ou brancos. O que não se encontra de forma alguma nessa grande feijoada racial 8nterppsnetária é o branco abrindo mão de seus privilégios de maneira voluntária e se dizendo orgulhoso em ser preto ou pardo.

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

A Negritude Brasileira


No Brasil ser negro significa ter que dedicar grande parte de sua vida a lutar contra a desigualdade, o preconceito e todas as formas de exclusão que o racismo estrutural impõe. Se abaixar a cabeça passa a ser explorado e se torna escravo contemporâneo. Se resolve se organizar e lutar contra o sistema é taxado de radical, racista ao contrário, comunista e outras idiotices do tipo.

Por isso o negro deve estar a postos cotidianamente, lutando pela igualdade, sendo solidário com seus iguais, se aquilombando, se rebelando contra as injustiças, estudando sempre, exigindo ser tratado como um cidadão pleno de seus direitos, enfim, compreendendo que a sociedade eurocêntrica, branca e racista nunca lhe oferecerá nada a não ser pobreza, humilhação, opressão e exclusão.

Desde quando o primeiro navio negreiro aportou por aqui com sua carga (des) humana, no século XVI até os dias atuais, a população negra, tanto escrava e depois livre, nunca recebeu por parte do estado qualquer tipo de aporte civilizatório.

Após o fim da escravidão, o enorme contingente de população negra que respirava uma pretensa liberdade, passou a ser um “estorvo” para a burguesia branca da época, que nutria verdadeira ojeriza pelos "crioulos da terra".

A partir de então foi cometido o segundo grande crime com a população afrodescendente brasileira, que foi o projeto governamental de embranquecimento da população brasileira. 

O projeto foi iniciado através da imigração maciça de cidadãos europeus, que receberam do governo brasileiro todas as condições necessárias para refazerem suas vidas e prosperarem no novo país.

Enquanto isso, a população negra recém liberta, era jogada na sarjeta, como um descarte inconveniente e desnecessário. Foi um movimento premeditado, criminoso e covarde, pois, de um dia para o outro, centenas de milhares de negros e negras se viram expulsos do território onde viviam e foram postos em marcha pelas estradas da vida, sem eira nem beira. O triste infortúnio do povo negro no Brasil começou com o sequestro e a escravização em massa de seres humanos ainda no continente africano. O segundo momento foi a tenebrosa travessia transatlântica, que ceifou milhões de vidas africanas e alterou inclusive a rota migratória milenar dos tubarões, que passaram a seguir os navios negreiros sabendo que se alimentariam de carne fresca que era atirada dos navios por motivo de doença ou morte. O terceiro momento foi a culminância do cativeiro no Novo Mundo, onde os africanos cumpriam o triste destino de trabalhar de maneira forçada e gratuita até à morte, sem nunca tocarem novamente a terra de onde vieram acorrentados.

O segundo crime foi o abandono por parte do governo no pós abolição. Destruir as possibilidades de ascensão da população negra não foi um acaso ou uma falha geracional, foi sim um projeto oficial do estado brasileiro, que foi apresentado inclusive no Congresso Mundial das Raças, realizado em 1911 em Londres. A delegação brasileira chefiada pelo antropólogo racista João Batista Lacerda, ao terminar a apresentação do projeto, previu publicamente que dentro de um prazo de 100 anos, ou seja, em 2011, o Brasil teria 80% de sua população composta por brancos, 17% de indígenas e 3% de mestiços, proporção que indicava a erradicação definitiva dos negros retintos da população brasileira.

Entre a abolição e o projeto de erradicação houve um abandono proposital da população negra, que foi tornada invisível e deixada de lado pelo estado brasileiro, sem capacitação profissional, analfabeta e subnutrida, não sendo beneficiada por qualquer tipo de política pública de inclusão social e perspectiva cidadã.

Sem saber como fazer, mas ao mesmo tempo na emergência de ter que sobreviver, o povo negro passou a ocupar os territórios mais precarizados e periféricos das cidades. Sem trabalho no campo, agora ocupado por imigrantes de diversas nacionalidades do hemisfério norte, migrou para as cidades em busca de qualquer tipo de trabalho que lhes garantisse a sobrevivência, já que mesmo na condição de cidadãos livres, tiveram a cidadania negada, além de terem sido submetidos descaradamente à invisibilidade social.

A população negra nunca pode viver em paz nesse país notadamente racista e cujo projeto de nação foi fundamentado na escravidão. O resultado dos crimes cometidos contra o povo negro geraram profundas cicatrizes sociais que ainda hoje permanecem abertas e nos assustam com suas hemorragias. Os indicadores sociais da população negra são absurdos e gritantes no que concerne às assimetrias relacionadas ao contingente de população branca do país.

A cosmovisão africana é tão ampla e generosa que consegue internalizar nos seus a necessidade da tolerância e do compartilhamento da convivência pacífica com etnias diferentes no mesmo espaço geográfico. Assim sendo, os brancos vão ao samba, ao Candomblé e às rodas de capoeira nas comunidades periféricas, mas não querem dividir com os negros os assentos no Teatro Municipal.

E assim a banda vai passando e tocando o mesmo trecho da velha rapsódia onde os negros permanecem sendo secundarizados por um sistema racista, segregador e excludente.

Negras e negros no Brasil vivem em constante estado de tensão existencial, provocada pelo racismo estrutural que os remetem a sucessivas derrocadas psicanalíticas. Enveredando por trilhas fanonianas, é bastante previsível que enquanto seres humanos sensíveis, sofram por serem feridos por sua própria nação, uma nação pseudo democrática que lhes violentam através desse sistema cruel que os agride desde o útero com a violência obstétrica da saúde pública até a cova rasa (muitas vezes como indigentes) no final da vida. Por isso sofrem sucessivos abalos emocionais ocasionados pelas ameaças estruturais de um sistema moldado para segregar e oprimir um contingente étnico considerado inferior pelo estado e pela branquitude.

Nós fizeram nos odiar uns aos outros. Nós convenceram que éramos feios, horrorosos. Nós levaram a que alisássemos nossos vigorosos cabelos crespos. Nós fizeram sentir que fossemos aberrações, incapazes. Sentíamos inveja dos brancos com seus cabelos lisos e olhos verdes e azuis na escola. Sempre fomos ilhados como descendentes de escravos, filhos de trabalhadores braçais e faxineiras. Sonhávamos com a branquitude, com o modo de viver branco e nós maldizíamos por não ser um deles. Para as crianças e juventude negra o belo é o branco, o líder é o branco e essa certeza se consolida quando a escola escolhe a rainha da primavera, que é sempre branca. A branquitude não para de cometer crimes históricos contra a população negra e esse é um dos mais perversos que é pulverizar nossa auto estima por conta da cor de nossa pele, do nosso cabelo, dos nossos traços fenotípicos e de nossa origem.. A branquitude e o racismo estrutural empurram nossa auto estima para o fundo do abismo da auto rejeição e da não aceitação.

A aceitação ou a sensação dela faz os negros vitoriosos economicamente buscar mulheres brancas para casar. São diversos sentimentos embutidos nessa opção que muitos consideram errática e discutível. Pode ser por amor, por atração física ou os dois juntos. Mas também pode ser por auto promoção, para ser sentido “aprivado” pelo mundo branco. Falam em atração dos opostos mas nunca vi branca rica casar com negro pobre. Raras são as brancas que casam com negros pobres, obviamente que existem exceções, mas são muito raras. Geralmente os casamentos ou uniões interraaciais acontecem entre negros bem.sucefidos economicamente e mulheres brancas pobres. A questão é porque os negros com dinheiro não casam com mulheres negras? Talvez porque se veja através delas e não costuma gostar do que vê. O racismo entranhou de tal forma em sua personalidade que ele rejeita seu espelho, indo se olhar em um fenótipo caucasiano.

A força da empresa colonial foi pródiga em transformar as culturas dos territórios colonizados em manifestações barbaras e até demoníacas. As religiões de matriz africana nunca invadiram países ou promoveram genocídios em nome de seus deuses, ao contrário do cristianismo que promoveu matanças e genocídios históricos como as cruzadas e Jerusalém e a Ordem de Cristo com seu projeto de colonização nós territórios do Novo Mundo. Em nome de Cristo foram escravizados mais de 15 milhões de africanos nas Américas, sendo que mais de 1 milhão foi jogado no Oceano Atlântico durante a pérfida travessia.A Inquisição também matou em.nome Cristo centenas de milhares de pessoas durante a Idade Média, porém o Candomblé e a Umbanda são religiões acusadas de possuírem pacto com o diabo. Então o jovem cuja família professa uma religião de matriz africana é obrigado a esconder sua opção religiosa por conta do patrulhamento do cristianismo. Mais uma vez a auto estima do jovem negro é jogada no chão pelo sistema cruel e opressor da branquitude. Fica difícil ser verdadeiramente feliz em ser parte de uma sociedade que opera através da inversão de valores visando a supremacia dos brancos sobre a população negra. O resultado é dor e sofrimento, pois o negro, desde quando acorda até se deitar para dormir à noite é um ser em fuga do seu próprio destino, que infelizmente lhe nega os valores de sua ancestralidade em prol de um panorama difuso, oportunista e covarde que é a branquirude.

No Brasil o desemprego, a sub cidadania, a Educação, a Saúde, o meio-ambiente precarizado, o cárcere e a morte são sombras que permeiam um horizonte difuso, que invariavelmente pairam durante toda a vida sobre os destinos do povo negro. Por mais que a cama seja confortável, não há condições para dormir em paz, pois o comichão ancestral não deixa e nos retira o sono dos justos. Não seremos um Titanic antropológico que insiste em navegar na direção do grande iceberg que é o capitalismo voraz das economias centrais, que poderá nos destruir nós fazendo naufragar nos mares traiçoeiros da vida.

Para nós negros poder acordar e viver um novo dia já é uma grande vitória. Nosso sangue escorre impunemente pelas ruas e vielas das periferias e cidades sem alma e sem coração. A visão de corpos negros descompostos, esquartejados, crivado de balas fazem parte do cotidiano escabroso da necropolítica que alegra a burguesia de uma sociedade feia, cafona e cruel que nos detesta. Para a elite branca brasileira quanto mais negros perderem a vida mais diminui a distância para a erradicação. Bradam que bandido bom é bandido morto, mas não refletem o que gera o bandido. Qual o meio ambiente em que o bandido foi criado, quais foram as possibilidades de promoção social que o estado ofereceu para aquele ser humano ser um cidadão produtivo e dotado de todas as prerrogativas. Não pensam em solucionar o problema social, é muito mais cômodo mandar eliminar e enterrar os corpos. Em certo aspecto continuam querendo nos erradicar como no pretérito congresso de 1911. Apesar do panorama social trágico gerado pela necropolítica e pelo controle dos corpos oprimidos à exaustão,  a burguesia consegue ganhar muito dinheiro com todo esse caos social, tanto pela corrupção como pelo abastecimento enlouquecido dos aparelhos de repressão de estado.

O samba esse grande patrimônio nacional que gera bilhões de reais pais agora nós 365 dias do ano possui uma cadeia produtiva gigantesca. Costumamos assistir somente a ponta do processo, os grandes eventos como os desfiles e ensaios das escolas de samba e blocos de rua que arrastam milhões de foliões pelas ruas e avenidas do país. Por trás dessa culminância há um esforço gigante para que tudo aconteça como estúdios de gravação de músicas, fabricação de instrumentos de percussão, chapelarias e fábrica de calçados, produção de adereços e fantasias, construção de carros alegóricos com ferreiros, especialistas em fibra de vidro, resinas, isopor, indústria de efeitos especiais, transportes, hotelaria, milhões de vendedores ambulantes, equipes de rádio e televisão, comentaristas e imprensa especializada, comercialização de direitos musicais e de imagens, contadores e advogados, seguranças, viagens mundo afora, enfim, uma cadeia produtiva monumental que gera trabalho e renda o ano inteiro no Brasil e também no exterior.

Quem comanda esse grande império do samba e carnaval? Os brancos obviamente. Mas como pode ser se os negros que começaram com essa maravilha cultural? Sim, começaram e sofreram todo tipo de perseguição durante décadas. Sofreram na carne e inclusive com prisões por insistirem em praticar o samba. Desde a casa da Tia Ciata até o governo Getúlio Vargas os negros passaram um dobrado com a lei só pelo simples fato do samba ser uma manifestação da cultura negra.

Quando o samba deixou de ser perseguido, a branquitude finalmente encontrou uma brecha, um grande nicho para fazer fama e fortuna com a exploração da atividade cultural. Hoje podemos assistir os brancos comandando o samba e o carnaval enquanto que os negros se tornaram componentes secundários e até folclóricos em alguns casos. Por mais incrível que possa parecer as próprias baterias das escolas de samba que resguardam a herança atávica e ancestral serem precedida por mulheres louras siliconadas e marombadas, ocupando um lugar que historicamente sempre pertenceu às mulheres negras.

Seguindo em frente pelo mesmo caminho podemos ver a perseguição ao funk e ao hip hop por parte da sociedade racista atual. Essas manifestações culturais são a forma da juventude negra se comunicar musicalmente com a sociedade. É a voz das periferias, das comunidades, de negros e negras que não possuem condições politicas de manifestar o descontentamento com o racismo e o abandono por parte do estado. O movimento de apropriação do funk e do hip hop pela branquitude já começou. Em um futuro bem próximo assistiremos o mesmo movimento de apropriação cultural.

A capoeira sofreu a mesma apropriação depois que passou a ser considerada um esporte com inclusão nos currículos escolares de algumas unidades escolares. Hoje a capoeira está consolidada em todo o planeta com seus mestres loiros de olhos azuis. Porém, em um passado não muito distante, nutre os anos de 1889 a 1937 o governo manteve a vigência no Código Penal da Lei da Capoeiragem, que prendia os praticantes da luta, além do castigo físico de 300 açoites. Nossa história é recheada de protagonismos e usurpações. A branquitude  nos observa e fica pensando no melhor momento de se aproveitar do resultado de nossos talentos. É como chupar o caldo da cana e jogar o bagaço fora, no caso o bagaço somos nós.

Há uma guerra civil em curso que ceifa 60 mil vidas pretas todos os anos, terminando com os sonhos de uma juventude negra que em sua curta existência só conheceu a indiferença, a violência e o desamor em uma vida corrompida e miserável.

A corrupção estatal depende e se sustenta através dessa guerra para fazer girar a roda da fortuna. O negro famélico que segura o fuzil na comunidade é um pobre mamulengo de um enorme teatro de horrores. Ele é a base da pirâmide do mundo do crime, sendo considerado um joguete, uma peça do estoque étnico descartável que é a juventude negra. Os donos da dinheirama gerada pelo narcotráfico vivem de maneira nababesca em confortáveis mansões, cercados de luxos e advogados, contando o dinheiro que chega aos borbotões em suas mãos. O pretinho do fuzil na comunidade não pode estudar, pois a ditadura cruel do seu cotidiano lhe diz que precisa aprender somente a linguagem da violência e que para sobreviver precisa fazer dinheiro para o seu “patrão”. Por isso as penitenciárias estão repletas de negros e negras, o sistema mantém o projeto de precarização étnica e lucra bastante com isso. Para a elite é o jogo do ganha/ganha, enquanto que para o povo negro só tem a opção do perde/perde.

Estamos na luta contra todo esse horror institucional e não sairemos das trincheiras, não arredaremos pé, nelas não se dorme e o combustível que nos mantém alerta e combativos é o cheiro do suor de irmãs e irmãos que lutam ombreados e aquecidos com a chama da liberdade. É uma guerra longa, oriunda dos tempos imemoriais, de onde viemos vencendo batalha por batalha, conquistando e fincando a bandeira da justiça em territórios antes interditados aos negros e negras. Assim foi com as cotas nas universidades, nos espaços privilegiados de governo, nos parlamentos e na sociedade de uma maneira geral. 

Somos filhos da grande África, o berço da humanidade e da civilização, onde a caminhada humana sobre o planeta Terra teve início.

Infelizmente só podemos contar com nós mesmos, pois não há atualmente qualquer tipo de devir civilizatório onde o povo negro possa estar incluído ou quiçá considerado protagonista, que não tenha sido conquistado com muita luta. Não somos vistos como referência histórica afirmativa enquanto construtores de um projeto de futuro de nação. O eurocentrismo nos tirou tudo isso com o colonialismo e a escravidão, mas estamos lutando para recuperar nossa história, nossa cosmovisão e nossa espiritualidade. Erguendo cada vez mais nossos monumentos, tijolo por tijolo, felizes e esperançosos com o lindo amanhecer que nos aguarda logo ali adiante em um belo amanhecer da história. 

quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Uma Rapsódia Africana

Sou um ser negro formado por imensos vazios de ancestralidade. Senão tantos vazios mas repletos de hiatos de atavismos. Minha sombra é um ectoplasma que se esquiva do real, na medida em que os sóis do meu universo não iluminam meus recantos, por estarem onde não deveriam estar.
Ser um homem negro é fingir não ver o abismo quando se vive dentro dele rodeado por todos os seres horrendos que o habitam. Sou um triste hiato africano consumido pela cruel diáspora global. Sou aquele que caminha pelos desvios que me são permitidos caminhar.
Posso mas não posso amar livremente. Sou um homem negro cujos passos são vigiados pelos olhos da branquitude, da sociedade perversa que somente permite amores ocasionais, interditos em gotas que usurfruo sofregamente em meu etéreo graal de esperanças.
Onde estará minha ancestralidade? Decerto nunca conhecerei as músicas e as danças da aldeia dos meus ancestrais, a comida, as estórias de assombrações; os cantos de glória e vitória dos meus antepassados, sou um pária atávico, um viajante sem-passado, a escravidão o tirou de mim.
Sou um homem negro em uma diáspora global hostil que não me ama e nunca me amará, pois represento na civilização parte do estoque étnico descartável, da sub-civilização contemporânea, da qual sou um mero personagem secundário e nunca  protagonista principal.
Existo em um labirinto antropológico onde a razão me faz evitar o minotauro eurocêntrico. Um labirinto de onde nunca sairei e que não se importa nem um pouco se sou feliz ou não em meu triste fado de não encontrar uma saída.
Sou um buraco negro existencial que consome todas as aflições do mundo em meu horizonte de eventos. Até a tênue luz da lua que teima em surgir nas noites estreladas é consumida pela voracidade da minha gravidade avassaladora.
Cruzo a vida como um velho veleiro navega em um mar de sargaços, lentamente, displicentemente, bamboleando na gávea, ansiando encontrar terra firme, um mundo livre diferente do mundo alvoroçado dos brancos. Sem a escravização do dinheiro, onde os lamentos de almas negras não sejam apenas meros sussurros desagradáveis, monótonos e dispensáveis.
Há um céu que me foi negado pela própria cristandade desde sempre. Não há céu para um negro pois o reino dos céus do cristianismo é branco. Me mostraram um Deus criador branco de barbas brancas, Seu filho que morreu para me salvar é louro de olhos azuis mesmo tendo nascido no Oriente Médio. Os anjos são brancos em um céu absolutamente branco. Para mim sobrou o mundo negro, a noite mais escura, o mal, a escuridão, a insídia e o purgatório na melhor das opções.
Nasci puro, com um sol radiante em minha alma, que aos poucos foi sendo esmaecido, apagado e trocado por um mundo plúmbeo, triste e sem luz, onde caíram mortas as estrelas vivas da minha felicidade.
Existo em uma diáspora africana que me permite não sonhar e me obriga a ser feliz para que possa ser visto como um ser humano servil, cordato e civilizado.
Mas não posso me prender nas lamúrias da egotrip. Tampouco me integrar ao motocontínuo da morte, caminhando em círculos afroferomõnicos, como as formigas, para enfim perder a vida pela exaustão. Talvez seja isso que o sistema quer que eu faça. Que fique girando em torno das questões cotidianas que o racismo estrutural nos apresenta e deixe de me organizar para lutar contra as estruturas de poder historicamente controladas pela branquitude. São sistemas que nós negros precisamos compreender cono a elaboração e execução do orçamento público, o controle dos aparelhos de repressão, o sistema educacional público, o funcionamento do parlamento nas três esferas de poder, a organização do Judiciário e o complexo arcabouço que rege o funcionamento dos partidos políticos. Enfim, são estruturas que permanecem imponentes enquanto nós giramos de forma messiãnica à sua volta, como os muçulmanos fazem na pedra negra de Meca. Os brancos nos permitem tudo, menos que ocupemos seus lugares privilegiados. O poder nunca é dado, tem que ser tomado. A via eleitoral se tornou uma quimera para os negros. Todo o ordenamento jurídico nacional é dirigido para privilegiar a branquitude. Continuamos a catar os miúdos dos porcos, os restolhos antropofágicos que nos são atirados  para fazermos nossa feijoada existencial. Continua tudo como sempre foi e como sempre foi resta-nos a rebelião e a revolução. 
A rebelião que grita em meu peito, me queima e me consome ao não sentir em meus irmãos e irmãs a chama lendária do espírito de Palmares.
Assim caminho na vida, solitário em meus anseios, sozinho em meus sonhos, tentando alcançar um horizonte reluzente que se afasta cada vez mais, quanto mais vou de encontro a ele.
Sou um homem negro que ouve os sons de uma rapsódia africana, extraída de uma sinfonia histórica imemorial, cujos acordes foram forjados pelos lamentos e pela tragédia colonial que os brancos nos impuseram
Passo pela vida catando os cacos de sonhos que encontro pelo caminho: uma companheira amiga, um lugar de paz, filhos felizes e um futuro que não seja marcado a ferro e fogo, calcinado pelo desterro, tatuado pelas marcas da opressão da branquitude na pele.
Não nasci negro, nasci com a pele preta, sem saber quem eu era realmente . Tornei-me refém de uma afrotautologia que me atirava inerte contra os paredões do destino, totalmente cego, sem saber por onde estava indo.
Enfim meus companheiros e companheiras de luta me resgataram de um mundo sem luz e retiraram a venda que cobria meus olhos. Venda que me impedia de enxergar e lutar contra as injustiças, o racismo e o preconceito.
Sem a cegueira antropológica que me impediu de enxergar a realidade gritante do racismo estrutural, pude enfim me erguer, virar as costas para a "síndrome do impostor" e me tornar um homem negro verdadeiro, livre das amarras do eurocentrismo e munido do escudo e da lanca para enfrentar o dragão do capitalismo.
Foram tantas lutas e refregas que jamais esquecerei do calor dos combates, do cheiro de suor dos companheiros e companheiras nas mais diversas trincheiras espalhadas mundo afora. Essas bravas pessoas negras me fizeram negro, pacientemente me tornaram negro, negro de verdade, alma de Zumbi, forjado no inconformismo, Xangô da rebelião, Ogum na revolução.
Muitos se foram e nós também iremos um dia. Assim como os heróis de Palmares, da centenária Tróia Negra também se foram. São Abdias, Lélias, Beatrizes, Mahins, Felipas, Benguelas, Marielles, Malês, Carolinas, Firminas, Antonietas, Dandaras, Aqualtunes, Solanos, Limas Barretos, Acotirenes,  Gangas Zumbas, João Cândido, Dragão do Mar, Manoel Congo e tantos personagens que lutaram incansavelmente pela liberdade, pela igualdade. Mas outros virão e orgulhosamente lhes passaremos os estandartes e as bandeiras de luta. São os negros mais importantes para nós, tanto quanto os que partiram são os que estão chegando, os negros do devir, afroguerreiros de um futuro que não tardará a acontecer. Corpos negros, esbeltos, fortes, sorrisos francos, com seus cabelos lindos, corpos cheios de energia, cantando canções de glória. Sim, são esses que continuarão a reverberar nossos gritos de liberdade com igualdade que nunca poderão ser silenciados.

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Se a espécie humana surgiu na África...

Diante da imensidão do universo somos mais fugazes que o tempo de existência de uma fagulha, ou seja, nada. Nosso tempo de vida é a coisa mais vã e desnecessária que se pode observar no universo. Ele, o universo, não se importa se somos brancos, pretos, pobres, ricos, felizes ou infelizes, cristãos ou muçulmanos. A única realidade inexorável é que iremos desaparecer definitivamente do planeta Terra enquanto que o universo continuará em sua magnificência infinita.

O tempo ínfimo que passamos aqui sobre este planeta, inexplicavelmente nos cobre de vaidades, soberbas, julgamentos, preconceitos, falsas verdades, egoísmos e desamores.

Não há uma explicação plausível para que esses sentimentos negativos nós preencham. Nesse aspecto somos mais defeitos que virtudes cotidianamente. A incapacidade de nos tornarmos perfeitos perante uma matriz existencial definida em um conjunto de possíveis virtudes nos exaspera.

Então criou-se o bem e o mal de acordo com as características de cada grupo humano. E assim a humanidade caminha referenciadas em verdades que determinam que a mulher é inferior, que negros e indígenas são inferiores, que a terra não pode ser de todos e que o amor pode ser comprado.

Para que possa existir em um cenário tão enigmático e opressor a espécie humana desenvolveu as religiões. Trabalhando com a metafísica do sagrado se consegue sobreviver nas turbulências da existência humana legando a uma divindade superior e imanente todos os momentos de felicidade ou infortúnio que perpassam nossas vidas.

A existência do dogma justificado pela metafísica faz da mulher um ser inferior. Impedida de comandar os ritos sagrados na maioria das religiões, segue sendo secundarizada pelo cristianismo dogmático por ter sido criada através da costela do homem, um subproduto do ser masculino dominante.

A merafísica determina que o que é sagrado tem que ser cumprido e não contestado. Então os homens baseados no princípio da dominação do sagrado criam leis, exércitos, processos de conquistas e opressões onde afirmam seus pseudo poderes.

Há uma desconexão proposital da efemeridade do ser humano com a infinitude do universo. Os livros que foram escritos narrando a existência de divindades não preveram os avanços tecnológicos e científicos que levam a humanidade casa vez mais distante no espaço profundo. Antes o planeta Terra era o centro de tudo e a Criação estava concentrada nele. Agora sabemos que nosso planeta é menor que um grão de areia na imensidão universal. Sabemos que existem mais estrelas no céu que grãos de areia na Terra.

São mundos infinitos em trilhões de galáxias que nunca chegaremos a descortinar. Nossa visão de centro do universo se estilhaçou e nós põe à prova quanto a imanência de um ser que tudo pode e que tudo vê. A incapacidade de entender ou saber qual o objetivo de nossa existência joga a resposta para o sagrado, pois somos incapazes de compreender o que viemos fazer aqui.

A incompreensão existencial gera por conseguinte os inúmeros desvios de caráter que permeiam a existência humana. Se o tempo de nossas vidas é tão curto, precisamos usufruir o melhor da vida. Então vivemos em uma sofreguidão por constituirmos bens, terras, imóveis, capital e outras formas de aquisição de poder.

O rótulo do sucesso prevê a acumulação de bens. O respeito civilizatório não se dá pelo conjunto de virtudes humanísticas de um ser humano mãe sim pela capacidade de constituir capital. A metafísica justifica essa posição ao afirmar que devemos dar à Cesar o que é de César e à Deus o que é de Deus.

Deus é a virtude, o amor, a solidariedade e a compaixão. César é o mundo difuso e plúmbeo do capital. Então vivendo entre esses dois mundos vamos tentando sair de um para entrar no outro sem porém abandonar um em detrimento ao outro.

Então a vida passa e os que estão perto do final analisam as batalhas interiores entre esses dois mundos que nos compõem. No fim pode parecer ridículo todo esse viver que nós atira constantemente nós paredões desses dois mundos que consideramos destino.

Em 200 anos no futuro ninguém que está vivo hoje nesse planeta estará vivo, terão desaparecido, transformados em cinza e pó. Enquanto isso o universo seguirá em sua marcha infinita, pouco se importando com nossas vaidades e arrogâncias que se foram envolvidas pelas cinzas.

 

O céu enquanto um local paradisíaco reservado aos que viveram uma vida dedicada a Deus não passa de uma meta e inteligente construção metafísica. A Bíblia diz que é mais fácil um camelo passar através de um buraco de agulha que um rico herdar o reino dos céus. Na luta de boxe chamam de golpe abaixo da linha de cintura. No popular se diz golpe baixo.

Sabemos que 1% dos mais ricos do planeta ficaram com 2/3 de toda a riqueza produzida no mundo, que sugnifica 43 trilhões de dólares, ou seja, seis vezes mais dinheiro que toda a população global estimada em 7 bilhões de pessoas.

Essas pessoas super ricas não poderão entrar no reino dos céus pelo simples fato de já estarem nele. As outras 99% lutam bravamente para não chegarem ao inferno, que na verdade está aqui na Terra e é muito fácil de entrar nele, basta perder o emprego e não conseguir outro ou depender da saúde pública em caso de doença.

Não conheço nada mais inteligente e eficaz que convencer o miserável a sentir pena do destino metafísico de um rico e se resignar com sua indigência, pois somente através dela alcançará o paraíso. Ao acreditar no excerto bíblico, o miserável jamais se levantará contra seus senhores, pois, a ele está destinado viver aos pés de Deus e da Virgem Maria em um ambiente puro, divino e livre de pecado. A ele foi apresentado um mundo invisível e fantástico como recompensa pelo seu comportamento resignado e servil aqui na Terra.


















 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 25 de agosto de 2023

O Caminho da Luz

 Os antigos afirmavam que existem dois lobos dentro de nós, um bom e outro mau. Eles estão em luta constante para se apoderar do nosso espírito, das nossas escolhas, da nossa vida. Qual deles vencerá? A resposta é simples, vence o lobo que você alimentar.

Se você optar por nutrir o lobo bom, seguindo por um caminho luminoso, reto e virtuoso, certamente ele vencerá a contenda e expulsará o lobo mau que insistia habitar seu interior. Agora, se ao contrário, o lobo mau for alimentado com hábitos destrutivos,  atitudes e pensamentos violentos, comportamento insidiosos e fazer seu cotidiano ser permeado por atos difusos e pejorativos, esse lobo mau vencerá e construirá, após a expulsão do lobo bom, um caminho de trevas e martírio em seu viver

Escolha sempre o caminho da luz. Esse caminho é como uma árvore frondosa que por muitas vezes nos oferece raízes amargas, causando-nos decepções e sofrimento, mas no final, se formos resilientes e mantivermos a fé, ela nos entregará doces frutos.

O caminho da luz é para todos indiscriminadamente. Nada tem a ver com posses ou riquezas materiais. A luz é interior e espiritual, sendo que muitas vezes, aliás, quase sempre, reside na simplicidade, na compreensão, na solidariedade e no amor verdadeiro, aquele que não exige nada em troca.

Muitos reis, milionários e poderosos, apesar de grande riqueza e conforto, vivem nas sombras, envoltos em um triste mundo frio e sem luz.

Por outro lado, podemos ver, que um humilde morador em situação de rua, pode viver feliz com seus cães, com seus amigos e com a vida simples, que o faz feliz em seu mundo repleto de calor e luz.

Nossa passagem pelo planeta Terra é efêmera. Uma simples fagulha no tempo imemorial da vastidão universal. O que nos cabe nesse diminuto lapso temporal nesse cantinho da galáxia é a escolha da forma como queremos viver, se nas trevas ou na luz. Seremos lembrados pelo que espalhamos de bom pela vida e não pelo que acumulamos em benefício próprio.

 A vida é simples e simples o caminho da luz que nos presenteia com a possibilidade de felicidade a cada novo amanhecer.