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O Espelho

quinta-feira, 27 de abril de 2023

África Berço da Humanidade

O magnífico continente africano é chamado de Berço da Humanidade e Berço da Civilização. Através de sua formidável diversidade étnica e cultural, pode contar toda a história do desenvolvimento da humanidade. O planeta Terra possui 6 continentes, sendo que o africano é o terceiro maior, com uma área de cerca de 30 milhões de quilômetros quadrados. A área do continente corresponde a mais de 20% da área total do globo terrestre. No continente habitam em torno de 1 bilhão de habitantes, tornando-o o segundo mais populoso do planeta. Muitos pensam equivocadamente que a África é um país, mas é um imponente continente composto por 54 países, sendo 48 continentais e 6 insulares, tendo como exemplo as ilhas de Cabo Verde e Madagascar.
São creditadas ao continente africano algumas das invenções mais importantes da civilização, onde podemos destacar o elevado conhecimento do povo egípcio, que nos surpreende até os dias atuais com seus insondáveis mistérios, muitos que se mantêm indecifráveis por mais de 5 mil anos.
Os povos africanos da antiguidade sempre se destacaram pela navegação, conhecimento da astronomia, domínio do ferro, construções, medicina e literatura. São famosos os périplos dos filósofos gregos ao continente para beber da fonte do conhecimento de suas diversas etnias. Pablo Picasso confessou que as artes africanas o influenciaram diretamente para a criação do Cubismo.
O Programa Origens Humanas do Museu de História Natural Smithsonian dos Estados Unidos avalia que, entre 1 e 2 milhões de anos atrás iniciou-se o processo evolutivo que há 200 mil anos atrás no continente africano surgiu o homo sapiens, o primeiro hominídeo que deixou o continente africano e se espalhou pelo planeta, propiciando o surgimento de novas etnias. Com o passar do tempo, esses grupos humanos continuaram com o processo migratório e espalharam-se mais ainda mundo afora. Ao se estabelecerem nas mais diversas regiões do globo terrestre, esses grupos humanos foram adquirindo naturalmente as características necessárias para sobreviver nas referidas condições climáticas locais. Na medida em que foram se estabelecendo nos diferentes territórios, as características locais necessárias foram se acentuando e quanto mais se distribuíam pelo planeta, as diferenças se acentuavam mais ainda. Os grupos humanos que hoje habitam o planeta Terra são originários daqueles distantes ancestrais africanos. Em tese, todos os seres humanos do planeta são afrodescendentes, independentemente de suas características atuais. As diferenças que hoje perpassam todos os seres humanos não passam de meras adaptações climáticas.
A melanina por exemplo é uma proteína que está presente em nossa pele, olhos e cabelo. Nos povos negros, sua coloração escura serve como filtro para que haja proteção contra as altas exposições de raios UV, ou seja, da radiação solar. Esse mecanismo evolutivo da natureza permite que seres humanos possam habitar locais de grande aridez e com alto grau de exposição solar, como é o caso do continente africano. A melanina é o filtro protetor natural que evita a deterioração do corpo humano pelo excesso de radiação no DNA das células. Portanto, quanto mais sol, mais melanina e, consequentemente, quanto mais melanina, mais o filtro aumenta, mais a pele requer proteção, escurecendo a superfície da pele. Podemos afirmar que a melanina é um mega protetor solar gratuito e necessário que os africanos receberam da natureza. Os povos dos países escandinavos possuem pouca melanina porque a incidência solar naquela região do planeta é bastante reduzida, portanto possuem pouca melanina na pele para que possam receber a quantidade necessária de vitamina D no corpo e assim possuem a pele bastante branca, quase um caso de albinismo. Seus cabelos não necessitam da proteção que os cabelos crespos africanos oferecem à população negra devido as altas temperaturas. Nesse caso, o cabelo crespo cria uma camada de ar entre o couro cabeludo e a superfície da cabeça para proteção da calota craniana. Nas regiões frias, de pouca incidência solar, essa proteção não se faz necessária e os cabelos perdem o poder de proteção que os cabelos africanos possuem, tornando-os lisos e caídos. Os olhos da população escandinava também são diferentes dos povos africanos, geralmente são claros nas cores azul ou verde. São mais claros devido à necessidade de maior absorção de luz, que é mais reduzida nos países frios que no continente africano, onde os olhos são profundamente negros para protege-los da intensa luz solar. Excetuando um detalhe aqui e outro ali, não existem diferenças cruciais, até pelo fato de que todos os habitantes do planeta serem praticamente iguais no interior do corpo humano, onde o sangue é vermelho e todos os órgãos são semelhantes, o que evidencia de maneira inexorável que todas as diferenças existentes entre os seres humanos são meras adaptações climáticas. No campo cognitivo todos amam igualmente, choram suas perdas, sorriem com as conquistas, constituem suas famílias, criam seus filhos, trabalham, vivem e morrem como habitantes do planeta Terra, sem diferenças que não sejam as culturais.
O Mercantilismo, as Grandes Navegações e a Chegada ao Continente Africano
Com o advento das grandes navegações do mercantilismo que se revelaram como um movimento expansionista que antecedeu ao capitalismo, os povos europeus passaram a procurar novos territórios em busca de matéria prima para suas manufaturas e ao mesmo tempo novos mercados para comercialização de seus excedentes. Portugal e Espanha iniciaram o ciclo das grandes navegações enquanto estados nacionais e desembarcaram na América e no continente africano, transformando para sempre aqueles territórios.
O brutal processo de conquista dos novos territórios através de invasões e guerras de conquista, causou um verdadeiro genocídio nos povos africanos e nas populações ameríndias. Os povos africanos, principalmente da África Subsaariana, em sua grande maioria, viviam sob o regime tribal, onde a oralidade era a forma de transmissão principal de suas ancestralidades, cosmovisões, ciência e cultura. Os europeus aproveitaram muito bem o conhecimento apreendido em África, transportando-o para a Europa, criando e sistematizando suas respectivas narrativas. Esse conhecimento foi apresentado como uma nova matriz civilizatória planetária, que vai da Filosofia à Astronomia, passando pela Medicina, Engenharia e Arquitetura.
A Grécia e o Império Romano, o Renascimento e o Iluminismo, já na modernidade, foram os grandes beneficiários do conhecimento africano adquirido. As grandes invenções europeias, os grandes avanços da ciência, quase todos, em sua maioria, possuem as digitais da cultura africana. A maneira que a Europa encontrou para se assenhorar desse conhecimento foi a conquista territorial, o colonialismo e a escravidão.
A colonização do continente africano pelos países europeus tem seu início no século XV quando Portugal passou a controlar algumas terras da costa atlântica africana. A obsessão por encontrar um caminho marítimo para a Índia levou a frota lusitana a encontrar o continente africano, rico em possibilidades para o atendimento demandado pela atividade mercantil.
Os portugueses enfrentaram no continente africano as duras condições impostas pelo clima inclemente e também amargaram pesadas perdas decorrentes tanto pelos naufrágios como por conflitos com tribos guerreiras africanas.
O novo território mostrou-se rico em recursos naturais e os portugueses após conseguirem conquistar por guerra ou por parcerias os novos espaços, passaram a explorar metais, pedras preciosas, agricultura e marfim.
A exploração do continente africano pelos europeus se manteve restrita ao litoral até meados do século XVIII, pois as investidas econômicas dos colonizadores eram mais frequentes nas Américas que na África. Com a guerra de Independência dos Estados Unidos e a Revolução Industrial, os europeus passaram a buscar cada vez mais matérias primas e possibilidades de comercialização em outros territórios.
A partir de então houve uma explosão de expedições exploratórias ao interior do continente africano por parte de aventureiros e missionários cristãos que investiam na conversão daqueles povos ao cristianismo e ao mesmo tempo forneciam informações sobre as possibilidades econômicas e comerciais dos novos espaços encontrados.
As expedições exploratórias traçaram novos mapas e rotas comerciais para os diversos países europeus, que eram protagonistas de disputas ferrenhas por novos territórios no continente africano, em um processo denominado neocolonialismo.
Os europeus passaram a investir em metodologias sofisticadas de dominação com a implantação de poderosos sistemas de repressão com unidades militares e também por um severo rigor administrativo. A metodologia garantia o perfeito funcionamento da empresa colonial que gerava grandes lucros para o crescente sistema protocapitalista. No século XIX não existia mais a figura do monarca absolutista do século XVI, mas sim a presença dos poderosos grupos econômicos capitalistas. Foi a partir desse momento que se passa a ouvir o termo imperialismo, pois, a dominação territorial é centrada no campo político, militar e mercantil, sem a arquitetura institucional do absolutismo.
O neocolonialismo do século XIX está diretamente ligado aos ventos da Segunda Revolução Industrial, que chegou com as novidades tecnológicas ancoradas nos transportes, comunicações, agricultura e manufaturas. Esses avanços exigiam novos mercados na medida em que a produção era cada vez maior e portanto exigia cada vez mais matéria prima e energia.
A fundamentação ideológica do racismo na colonização do continente africano foram baseadas em interpretações equivocadas da obra de Charles Darwin, onde, segundo os europeus, a superioridade europeia sobre os outros grupos étnicos do planeta estaria comprovada através do “darwinismo social”. Os avanços tecnológicos e a produção intelectual e científica da época, o poder do Cristianismo com a Escolástica e principalmente com o Renascimento e a lufada luminosa do Iluminismo. Esses aspectos evolutivos da Europa, em tese justificavam a validação da superioridade dos brancos sobre os povos “negros” e “amarelos”.
Os europeus estavam realmente convictos de sua superioridade sobre as populações do continente africano. Tomando como princípio basilar cristianizar e civilizar esses povos, passaram a investir na proposta de colonização desses países encontrados no continente africano, trabalhando para que esses novos territórios se adequassem ao modelo mercantilista europeu.
O controle espiritual dos povos africanos pelos missionários cristãos da Europa causou um grande estremecimento na crença do sagrado e da cosmovisão africana. O Presidente do Quênia Jomo Kenyatta declarou: “Quando os brancos chegaram, nós tínhamos as terras e eles a Bíblia. Depois eles nos ensinaram a rezar e quando abrimos os olhos nós tínhamos a Bíblia e eles a terra”.
O neocolonialismo levou os países europeus a uma competição cerrada entre eles próprios. Por conta disso as nações europeias incentivavam ataques de grupos tribais aliados contra entre outros grupos tribais aliados de outros países.
A tentativa de solucionar esses conflitos veio através da Conferência de Berlim, proposta por Portugal e realizada na Alemanha durante os anos de 1884/1885. O encontro foi presidido pelo Chanceler Prussiano Otto Von Bismarck, conhecido como Chanceler de Ferro.
A conferência tinha como objetivo pacificar e pactuar entre os países participantes a ocupação do continente africano. A conferência reuniu catorze potências imperialistas do século XIX como Império Otomano, Império Austro-Húngaro, Império Alemão, Estados Unidos, Rússia, Grã-Bretanha, Dinamarca, Portugal, Espanha, França, Bélgica, Holanda, Itália, Suécia e Noruega.
O novo desenho geopolítico do continente africano pós conferência criou inúmeros conflitos tribais com guerras sanguinárias entre os diversos grupos étnicos, que devido ao novo desenho passaram a conviver dentro das mesmas fronteiras que seus inimigos.
A conferência redesenhou o mapa geopolítico da África, passando por cima de milhares de anos de tradições e cosmovisões existentes. O sistema colonial europeu possuía uma força avassaladora diante do povo africano. As principais transformações começavam pela destruição da cosmovisão africana e da matriz religiosa dos colonizados. A proibição da utilização da língua mãe era um dos primeiros atos do colonialismo, e a educação formal era ofertada somente na língua do colonizador, que impunha à força o idioma europeu próprio da nação colonizadora. Os valores europeus eram passados gradualmente e cobrados no médio prazo. O cristianismo era a principal transformação cultural imposta aos colonizados, que possuíam sua religiosidade milenar do sagrado africano passada através de inúmeras gerações.
A Escravização de Africanos e o Tráfico Transatlântico
Portugal percebeu que poderia lucrar de maneira exponencial se investisse no tráfico de africanos escravizados, que seriam trocados por mercadorias vindas da Europa, principalmente bebidas alcoólicas, tabaco e diversos manufaturados.
Os escravos eram comercializados inicialmente no próprio continente A partir do século XVI a atividade escravagista se intensificou e o tráfico negreiro se tronou uma atividade fundamental para a assentação das bases do Novo Mundo pelos europeus.
A busca insaciável por cada vez mais escravos para as Américas e Caribe causou um enorme prejuízo a diversas etnias africanas. Inúmeros grupos tribais deixaram de trabalhar nas atividades econômicas das rotas comerciais e passaram a se especializar na capturas de seres humanos para serem comercializados com os europeus.
Novos territórios colonizados eram vistos pelas metrópoles como meros fornecedores de matéria prima e mão de obra escrava. A sofisticação da empresa colonial era tamanha que arquitetou o que denominou-se chamar de ‘comércio triangular’, que consistia na estratégia de logística marítima onde quando o navio chegava da Europa com aguardente, rum e outras bebidas alcoólicas, tabaco, manufaturas, armas e pólvora, já havia uma carga humana, ou seja, africanos escravizados que eram destinados ao Novo Mundo. Chegando nas Américas ou Caribe os escravizados eram desembarcados e os navios eram novamente carregados com matéria prima, rumando novamente para a metrópole, onde eram carregados novamente com manufaturas, armas, pólvora, aguardente e tabaco para rumarem incontinente ao continente africano, completando a triangulação.
O sequestro e o tráfico transatlântico de africanos escravizados para as Américas e Caribe constituiu o maior crime de lesa humanidade que a Europa cometeu em toda sua história. As estimativas históricas calculam que entre 10 e 15 milhões de africanos escravizados foram trazidos para o continente americano.
Durante mais de 300 anos, saíam quase que diariamente 1 ou 2 navios repletos de africanos sequestrados para serem escravizados no Novo Mundo. Foram milhares de viagens que cruzaram o Atlântico rumo ao Caribe e as Américas. Sendo que essas travessias atingiram a dolorosa cifra de 2 milhões de seres humanos atirados ao mar pelos mais diversos e pérfidos motivos.
A maioria dos sequestrados era trazida do interior, em uma caminhada apressada e desumana. Chegando ao litoral, eram despidos de todas as suas roupas e entregues nus ao traficante europeu, que organizava o embarque nos navios negreiros.
O interior do navio negreiro era minúsculo e insalubre. Para otimizar o lucro, os traficantes amontoavam até cerca de 400 escravos por navio, homens, mulheres e crianças despidos e acorrentados, respirando um ar fétido e sufocante pelo cheiro de vômito, urina e excrementos que eram feitos no próprio local em que estavam acorrentados. O choque de realidade desses seres humanos era abissal, pois há pouco estavam em suas aldeias em suas rotinas cotidianas com suas famílias, vivendo a vida em paz e repentinamente essas pessoas se viram caçadas como animais, amarradas e trazidas para os navios que rumavam para uma terra distante, de onde nunca mais retornariam. Não veriam mais a África, suas aldeias e suas famílias, passando o resto da vida em uma melancolia sem fim.
Naquele tempo, as grandes navegações padeciam de problemas crônicos, como escorbuto, disenteria, varíola, entre outras doenças. A capacidade de disseminação do vetor era enorme, pois os africanos sequestrados navegavam em grupos e acorrentados, terrivelmente próximos uns aos outros, onde o contágio era praticamente imediato. Pelos diários dos navios negreiros da época, os dados indicam essas cifras, uma vez que cada sequestrado doente que era jogado ao mar para não contagiar o coletivo era contabilizado no Livro dos Mortos como prejuízo diante do investimento aportado na operação de aquisição de cativos.
O investimento na compra de africanos sequestrados na África e o seu respectivo transporte para o Novo Mundo significavam o que se pode chamar de “investimento de alto risco”, devido a diversas ocorrências como as descritas acima, às quais podemos somar suicídios, depressão, ataque de piratas, motim, naufrágios, fuga de sequestrados entre outros. A empresa colonial que comercializava esses seres humanos contabilizava criteriosamente cada africano doente que era jogado ao mar e seus preços seriam diluídos nos preços dos outros cativos que chegavam ao continente, para compensar o prejuízo com a perda daquela vida.
O porão do navio era um lugar de horror. Para evitar motins e sublevações, muitas vezes os traficantes colocavam nos porões dos navios etnias inimigas que, mesmo acorrentadas, tentavam se matar uns aos outros e passavam a viagem inteira se vigiando. Os escravistas seguiam a velha premissa do “dividir para reinar”. Como os grupos de africanos inimigos passavam a viagem inteira acorrentados mas tentando se trucidar, os traficantes não precisavam se preocupar com tentativas de fugas ou rebeliões.
Não havia uma rotina de alimentação. Os alimentos, uma mistura horrível de restos de carne e farelo, era atirada nos porões, e a divisão era realizada pelos próprios cativos, que priorizavam os homens e os grupos dominantes.
O medo maior era a calmaria do mar, fator muito comum de acontecer. Quando o barco entrava em uma calmaria, ficava parado, aguardando a chegada dos ventos, o que, às vezes, levava vários dias. Na medida em que os dias passavam e o navio mantinha-se parado, o capitão mandava jogar africanos doentes ao mar para compensar o tempo perdido na calmaria e equilibrar a quantidade de ração que seria necessária para se chegar ao porto de origem. Os cálculos eram diários, e os mais doentes eram descartados ao mar com um peso amarrado nas pernas para irem diretamente ao fundo do oceano. Foram tantos africanos atirados ao mar que os tubarões mudaram suas rotas migratórias milenares durante o tempo do tráfico transatlântico para seguirem os navios negreiros com seus descartes humanos ainda vivos. Era uma rota de sangue e horror e o festival de barbaridades dos tubarões devorando homens, mulheres e crianças servia de diversão para as tripulações brancas dos navios. Além de todo esse cenário dantesco, as mulheres negras escravizadas que eram embarcadas nesses navios, sofriam as mais bárbaras práticas por parte das tripulações dessas embarcações.
O Fim do Tráfico Transatlântico
Em meados do século XIX, a atividade criminosa do tráfico transatlântico estava entrando em seu ocaso e agonizava em seus últimos momentos. Embora a resistência pelo fim do tráfico negreiro fosse muito grande em razão da dependência do trabalho escravo. O envolvimento da Inglaterra foi fundamental para que esse ciclo perverso tivesse fim.
Após a declaração da independência do Brasil, o governo inglês condicionou seu apoio e reconhecimento ao novo país com a condição de que a escravidão fosse extinta.
O reconhecimento da Inglaterra aconteceu em 1825 com o compromisso que a abolição ocorresse até 1830. Com a concordância do governo brasileiro o Brasil oficializou seu compromisso aprovando em 1831 a Lei Feijó, que decretava a proibição do tráfico negreiro definitivamente, o que jamais aconteceu.
O fim do tráfico transatlântico e posteriormente da escravidão seguiu um roteiro que começou com os ventos do Iluminismo e da Revolução Industrial. As novas relações de produção impostas pela Revolução Industrial faziam parte da consolidação do sistema capitalista, onde o consumo que geraria lucro e riquezas necessitaria de um grande mercado consumidor. A Inglaterra necessitava ampliar seus mercados e com a mão de obra escrava predominando nesses territórios ela passou a encontrar dois grandes óbices que foram ao ausência de mercado consumidor de alto impacto e o desinteresse por esses territórios pela aquisição dos novíssimos engenhos à vapor e outros equipamentos mecânicos, já que a mão de obra escrava cumpria com todas asa demandas exigidas pelo mercado.
Nesse contexto, a Inglaterra, com o intuito de vender máquinas a vapor para substituir o trabalho braçal e fazer florescer um promissor mercado consumidor, proibiu o tráfico transatlântico de africanos escravizados através da Lei Bill Aberdeen em 1845, proibindo o tráfico de escravos africanos. A lei previa que a marinha inglesa, tinha poder para interceptar, perseguir e aprisionar os navios negreiros que transportassem escravos. Com a Lei Bill Aberdeen houve um intenso movimento do tráfico transatlântico, para logo após sofrer uma grande redução e finalmente o arrefecimento do horroroso empreendimento colonial transatlântico, que oficialmente teve fim. Os ingleses patrulhavam o Oceano Atlântico e os portos do Brasil. Os navios negreiros que conseguiam burlar o bloqueio em alto mar, desembarcavam os africanos sequestrados em praias distantes das capitais para somente depois atracar sem cativos nos portos oficiais brasileiros. Por isso, a expressão “para inglês ver”, onde durante as fiscalizações portuárias dos navios oriundos do continente africano pelos militares ingleses, nenhum africano escravizado era encontrado.
No âmbito interno, no ano de 1850, foi promulgada a Lei Eusébio de Queirós que proibia o tráfico de africanos escravizados para o Brasil. A lei foi aprovada muito a contragosto pelos parlamento brasileiro escravista e foi apenas uma resposta às demandas diplomáticas por parte dos britânicos para que essa prática tivesse fim.
O comércio hediondo de escravização de seres humanos é uma ferida que dificilmente será cicatrizada e marca o grau de perversidade do período colonial. O que ocorreu durante todo esse processo foi uma tragédia humanitária sem precedentes com milhões de mortos e escravizados. Deixando o continente africano sem seus melhores corpos e mentes que foram retirados durante 350 anos com navios negreiros saindo diariamente do continente todos as dias, levando africanos escravizados para a construção do projeto capitalista no Novo Mundo.
As Colônias Europeias no Continente Africano
A posição social dos africanos nos países colonizados era apontada de acordo com o grau de adaptação aos valores culturais europeus. Na pirâmide social do sistema colonial o europeu era o topo da pirâmide sempre. Os nativos que compreendiam o idioma alienígena e conheciam bem os costumes europeus ocupavam posições intermediárias e eram encarregados de funções administrativas que incluíam o trato com a massa de colonizados que não falavam o idioma da metrópole. A base da pirâmide era composta por aqueles que não se comunicavam na língua do colonizador e eram destinados ao trabalho árduo e análogo à escravidão.
O sistema colonial não impôs pacificamente sua dominação e cultura. Aconteceram incontáveis rebeliões e revoltas, principalmente no norte do continente onde encontramos o Egito, Argélia, Tunísia e Marrocos, que além da perda de soberania, lutaram contra a imposição de outra religião e contra o trabalho obrigatório que era imposto pelos colonizadores. O neocolonialismo praticamente destruiu o tecido social africano, sua força de trabalho, sua organização social milenar e seu imenso estoque étnico intelectualizado, ao transportar criminosamente para o Novo Mundo mais de 10 milhões de seres humanos que foram sequestrados e escravizados durante 350 anos.
A posse do corpo do outro, o poder de violá-lo, espancá-lo, a destruição de sua psiquê e o arrefecimento de sua autoestima transformaram o africano escravizado em “objetos”, seres sem alma, instrumentos falantes.
A partir da espoliação e da destruição do tecido social africano, cresce mais ainda a tese da subalternidade de raças, onde a etnia negra foi considerada inferior e não civilizada. Ao ser considerada inferior, não civilizada e herege, a população do continente africano passou a ser objeto de cobiça enquanto mão de obra não remunerada, ou seja, escravizada. Pois a conquista do território, sua exploração e a escravização de seus habitantes eram justificadas pela igreja e pelos impérios como necessária para que aquelas almas fossem salvas do pecado.
A história comprova que houve um grande salto epistemológico no processo civilizatório europeu, após o contato com os povos africanos. O mesmo não pode se dizer do contrário, onde o continente africano após ter contato com os europeus sofreu um terrível processo de espoliação e controle de seus territórios por parte dos europeus.
O Neocolonialismo
A ocupação do continente africano sofreu um grande impulso com o que se convencionou chamar de neocolonialismo. Esse movimento se deu a partir de meados do século XIX, quando a Europa vivia os efeitos da Segunda Revolução Industrial. As transformações que o capitalismo sofreu através desse impulso tecnológico, gerou a necessidade de buscar mais matérias primas e outros mercados para comercialização das manufaturas. A ambição das nações europeias se voltou para a Ásia e África, territórios onde passaram a empreender expedições exploratórias e de conquista.
O neocolonialismo africano promoveu verdadeiros genocídios naquele continente. O Congo, por exemplo, que foi colonizado pelo Rei Leopoldo II da Bélgica perdeu mais de 10 milhões de habitantes, mortos sob tortura pelo regime do monarca belga. O projeto belga no Congo foi um dos primeiros passos que motivou o neocolonialismo, seguido do projeto de Portugal em Angola, Cabo Verde, Moçambique e São Tomé e Príncipe, e pelo projeto francês no continente que colonizou a Argélia, Senegal, Tunísia, Alto Volta, Costa do Marfim, Mali, Níger, Congo, Gabão, Chade, Camarões e República Centro Africana.
O sistema colonial no continente africano começou a ruir devido a diversos fatores previsíveis e imprevisíveis. O principal que poderia ser previsto foi a formação de uma burguesia africana formada nas melhores instituições ensino da Europa. Esses filhos dos antigos chefes tribais e de funcionários africanos com posições de destaque na empresa colonial veio a formar a classe média africana e passou a desenvolver o pensamento emancipacionista de descolonização. Por outro lado, os ventos da Revolução de 1917 na Rússia varriam o planeta e se tornaram uma bandeira concreta de luta contra o capitalismo opressor. A união desses e de outros fatores propiciou a preparação do terreno para que as sementes da liberdade fossem plantadas.
O Movimento Anticolonialista e o Fim das Colônias
O processo de descolonização do continente africano foi marcado por um período de efervescência política intensa violência. Os países europeus deixaram um triste legado às futuras gerações africanas, ao modificar de maneira radical o modo de vida daquela população através de um modelo administrativo arbitrário e opressor, que alterou significativamente o modo de vida de milhões de pessoas, não respeitando a religiosidade, a organização política e a cultura daqueles territórios. O modelo de desenvolvimento que foi implementado era alicerçado na exploração intensiva das reservas minerais, agrícolas e energéticas.
Após a Segunda Guerra Mundial o movimento de descolonização do continente africano sofreu novo impulso, com a criação das Nações Unidas em 1948, que através de sua carta de fundação garantia a autodeterminação dos povos. A partir de então o movimento anticolonialista. As potências europeias saíram da guerra com suas economias exauridas e sem condições de enfrentar as guerras de libertação em curso no continente africano. Os Estados Unidos e a Rússia entraram no período chamado de Guerra Fria e ambos passaram a apoiar as guerras anticoloniais africanas, disputando agressivamente através de apoio logístico e militar os movimentos emancipacionistas africanos, visando estabelecer parcerias econômicas que lhes seriam fundamentais na manutenção de seus regimes, tanto capitalista como socialista. A guerra civil de Angola foi um dos grandes exemplos, onde os Estados Unidos apoiavam o grupo guerrilheiro UNITA e a União Soviética apoiava o outro grupo guerrilheiro denominado MPLA.
Em muitos países africanos a independência ocorreu de maneira pacífica, onde a metrópole transmitiu o poder político progressivamente e garantiu a manutenção do poder econômico em mãos de grupos ligados à metrópole. O último país colonial a deixar o continente africano foi Portugal que abandonou definitivamente suas aspirações imperialistas na África em 1974, após a Revolução dos Cravos.
Após a conquista da independência por todos os países do continente africano, as imensas instabilidades sociais e políticas controladas e represadas afloraram ao mesmo instante, explodindo em incontáveis conflitos étnicos separatistas, que desaguaram em horrorosos genocídios como o de Ruanda em 1994, onde 800 mil pessoas pertencentes à etnia tutsi, foram massacradas e mortas pelas milícias da etnia hutus. O conflito étnico foi o resultado da administração colonial europeia, que governou o país com mão de ferro em parceria com a etnia tutsi, minoritária mas considerada como superior no país. Quando a guerra de libertação explodiu os hutus que eram a grande maioria da população iniciaram uma dolorosa vendeta, massacrando os tutsi de maneira implacável, que não conseguiram resistir pois foram abandonados pelas forças militares coloniais e entregues à própria sorte.
A população do continente africano atualmente ainda sofre com os restolhos políticos deixados pelo colonialismo. As enormes dificuldades econômicas e sociais são cicatrizes de um período que naturalizou a violência e o escravismo como prática cotidiana, deixando de lado os principais primados humanitários.
A imagem que é disseminada pela mídia através dos tempos é de um povo sem cultura, enfraquecido, doente e desorganizado politicamente. Em momento nenhum se coloca que toda essa situação advém de um processo desumano exploratório sanguinário e opressor. Que as nações europeias enriqueceram através desse processo, que podemos comparar metaforicamente a uma transfusão de sangue ao contrário, onde o doente fornece initerruptamente seu sangue para a manutenção e desenvolvimento do corpo do sadio.
Apesar da independência política, os países africanos ainda não se libertaram do jugo econômico das metrópoles. Muitos dos grandes grupos econômicos que iniciaram o período colonial ainda exercem um grande poder sobre as administrações dessas nações, interferindo nos destinos políticos através de corrupção ou financiamento de grupos paramilitares que defendem seus interesses.
As Nações Unidas necessitam empreender com mais efetividades movimento na direção de reparações através do Fórum de Afrodescendentes criado para estabelecer políticas de promoção para a população afrodescendente e avançar no cumprimento das deliberações assentadas no Plano de Ação da Conferência de Durban de 2001. As nações que enriqueceram com a dilapidação das riquezas africanas, principalmente aquelas da Conferência de Berlim, deveriam criar um grande fundo internacional para reparações voltado ao continente africano e aos afrodescendentes da diáspora, objetivando construir um quadro de políticas de ações afirmativas que promovam projetos de inclusão de povos africanos e afrodescendentes nas nações que compõem a ONU.
*Jornalista, Escritor, Palestrante, Consultor
em Direitos Humanos e Combate ao Racismo.

domingo, 23 de abril de 2023

Deu Branco no Samba

A escola de samba e o samba sempre foram os principais espaços de socialização da comunidade negra no Brasil. Desde os primórdios do samba que o povo negro se empenha em construir um espaço comunitário, onde pudesse compartilhar com sua família atividades sociais e de lazer. A atividade do entretenimento na sociedade sempre foi voltada para a classe média, onde os negros com raríssimas exceções, podem frequentar. O apartheid econômico a que a população negra foi submetida após o final da escravidão, levou os negros a se organizarem em torno dos principais processos onde mantinham algum tipo de domínio e poder, o Candomblé e o samba.
A escola de samba é o templo alegre e profano do povo negro. Nela as famílias se reúnem e se desenvolvem no aprendizado de suas diversas características artísticas e culturais.
Falando em samba, entre as coisas mais deliciosas dessa vida, não há nada melhor que curtir um bom momento, cantando e relaxando em uma boa roda de samba, ou então nos ensaios de quadra das escolas de samba que alegram os fins de semana de parte da sociedade em todo o país. A sensação é divina, nada melhor que soltar o corpo, se entregar ao deleite do ritmo pagão, cantando e alegrando-se em animados arrasta-pés regados a uma boa cachaça de alambique, aquela que “matou o guarda”, acompanhada de uma boa cervejinha gelada com um prato de torresminho e barriga de porco ao lado.
Quem nunca deu aquela sambadinha gostosa, ao ouvir um samba, malandreado, dolente e gostoso? Bem devagar, devagarinho, como canta o Martinho da Vila. O samba sempre foi a cadência da batida do coração do povo brasileiro. É o principal alimento cultural do povo e o maior legado que a população negra entregou para nossa sociedade. Suas origens são ligadas ao continente africano, aos tambores, ao Candomblé e aos folguedos da cultura negra.
João Gilberto cantava que o samba veio da Bahia e estava correto, pois esse menino dengoso, o samba, veio aconchegado no colo ancestral das Mães de Santo do Recôncavo Baiano, de Santo Amaro da Purificação e de Cachoeiras, que após a abolição da escravatura foram viver no Rio de Janeiro para onde partiram em um movimento denominado “Diáspora Baiana” ou “Êxodo Baiano”, e levaram na bagagem essa joia cultural fantástica.
Filho dileto do jongo, do samba de roda do Recôncavo Baiano, do culto aos orixás e das tradições culturais e religiosas da África Subsaariana, o samba veio balançando no vapor para o Rio de Janeiro.
O samba nasce como representante de uma representação cultural que servia como momento de lazer e ao mesmo tempo atuava como bálsamo que amenizava o terrível sofrimento pelo qual passava o povo negro escravizado, tanto no eito como na senzala, nos tempos do Brasil Colônia e Brasil Império.
O parto do samba carioca ocorreu com certeza nos terreiros das casas de santo do Candomblé da Pequena África, no Jongo e como dizem alguns historiadores também na casas da Umbanda Omolokô. Havia uma grande concentração desses terreiros na região conhecida como Pequena África no Centro da cidade do Rio de Janeiro.
A certidão de nascimento do samba contém algumas lacunas, mas com certeza no formato que conhecemos hoje, surgiu na Pequena África entre o fim do século XIX e o início do século XX. Veio ao mundo abençoado pelos sons dos atabaques e dos tambores tocados com dedicação e amor por ogâs e alabês. Nasceu no instante compreendido entre o cansaço e a preguiça, depois de um trabalho puxado de axé no terreiro, era necessário dar descanso ao corpo, que há pouco estava entregue ao poder espiritual, para que assim recobrasse as forças.
A palavra samba pode ser oriunda do termo angolano “semba”, que significa umbigada. É um tipo de umbigada profana e não sagrada como são as umbigadas do Jongo, como afirmam os pesquisadores.
Foram as tias baianas que abençoaram o nascimento do samba, forrando seu berço com carinho e tradição. O samba em seu berço foi ninado com canções do samba de roda do Recôncavo, entremeadas com batuques, lundus, polcas, maxixes e jongo. Essas tias baianas eram em sua grande maioria Ialaorixás renomadas e poderosas, que exerciam grande influência sobre a comunidade negra do Rio de Janeiro.
O início do século XX foi um momento de intensa felicidade para a população negra, que vivia sob os efeitos eufóricos do fim da escravidão. Os negros da época comemoravam e agradeciam à Princesa Isabel pela assinatura da Lei Áurea que lhes libertou definitivamente dos 350 anos do cativeiro do branco opressor. Apesar de tantas agruras, a alegria havia voltado aos corações da população negra tão sofrida e vilipendiada pelo cruel regime recém extinto. Eram livres mas nunca deixaram de ser vigiados pelo sistema de repressão e controlados pelo sistema jurídico, que sempre promulgou leis em defesa da etnia branca e sistematicamente contra a população negra.
Apesar da vigilância constante da polícia, os negros e negras se reuniam em diversos lugares para comemorar a liberdade, e como não podia deixar de ser utilizavam o samba de roda, o jongo, o maxixe a polca e o lundu como fundo musical para suas comemorações. 
A certidão de nascimento do samba foi lavrada nos terreiros das tias baianas, com destaque para as tias Ciata, Amélia e Perciliana.
Os sambistas consideram Tia Ciata como a grande parteira e mãe amamentadora do samba carioca. Nascida em 1854, em Santo Amaro da Purificação, terra de Caetano Veloso, Assis Valente e Maria Bethânia, chegou ao Rio de Janeiro em 1876 aos 22 anos de idade, onde casou e constituiu família, tendo sido mãe de 14 filhos.
Ciata além de grande doceira e festeira, era uma Mãe de Santo respeitada pelo povo negro da Pequena África no Centro do Rio de Janeiro. Ficou mais famosa ainda após ter curado com suas ervas e unguentos uma ferida renitente na perna do à época presidente do Brasil, Wenceslau Brás. Sua proximidade com o presidente da república garantiu que a polícia não interrompesse e encerrasse sob catatau as festas embaladas pelo samba.
Além da própria riqueza musical reinante, naquela época não havia transportes durante a madrugada. Os frequentadores dos terreiros aproveitavam que deveriam aguardar o dia amanhecer para retornar aos seus afazeres e então promoviam animadas rodas de batuque, já que a designação ‘samba’ ainda não havia sido cunhada. Geralmente o arrasta-pé virava a noite e então a partir daí pode ter surgido o termo “sambar até o sol raiar”.
Pela casa de Tia Ciata passaram grande nomes da música popular e do samba como Ataulfo Alves, Paulo da Portela, Cartola, Carlos Cachaça, Natal da Portela, Zé com Fome, Silas de Oliveira, Pixinguinha, Hilário Jovino, Donga, Sinhô, Ismael Silva, Bide, Marçal que formavam a turma do Estácio. Essa turma do Estácio foi a que mudou o ritmo do samba para mais cadenciado, como o que se toca até os dias de hoje nas baterias das escolas de samba, e também cunharam o nome ‘escola de samba’, pois ensaiavam defronte a uma Escola Normal, de formação de professoras no bairro do Estácio. Antes o que se dançava era um ritmo maxixado, como podemos constatar no primeiro samba gravado no Brasil por Donga, o famoso “Pelo Telefone”. Muitos sambistas torcem o nariz para esse samba, dizendo que o fonograma é um maxixe. Outros sambistas alegam que Pelo Telefone foi uma composição coletiva com participação de vários frequentadores da casa da Tia Ciata. Um dos maiores defensores dessa tese foi o baiano Hilário Jovino que alegava ser um dos compositores. Hilário Jovino era pai do malandro Saturnino da Praça 11 e primo de Heitor dos Prazeres. Precursor dos ranchos e do carnaval do Rio de Janeiro, Jovino fundou inúmeros ranchos, que seriam os blocos e escolas de samba de hoje. Sendo que um dos mais famosos que fundou foi o Ameno Resedá, que tinha entre seus admiradores mais destacados o escritor Coelho Neto. O Ameno Resedá é lembrado até hoje nos desfiles das escolas de samba.
Os sambistas pioneiros não eram vistos com bons olhos pela sociedade. João da Baiana contava que seu pandeiro tinha a assinatura de um senador da república, pois, somente assim poderia transitar livremente com o instrumento pela cidade. Os sambistas eram perseguidos e geralmente vinculados pela polícia a marginais, malandros e capoeiristas, grupo também perseguidos e para quem havia sido criada a lei no Código Penal de 1890 que punia quem praticava a capoeira, a Lei da Capoeiragem, cujo texto do Artigo 402 era o seguinte: "Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação de capoeiragem: andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir lesão corporal, rovocando tumulto ou desordem, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal. Pena: prisão celular por dois a seis meses". Parágrafo Único. É considerada circunstância agravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta. Aos chefes ou cabeças, se imporá a pena em dobro.
Após a Lei Áurea em 1888, o governo brasileiro iniciou um gigantesco processo de embranquecimento de sua população, estimulando a imigração de europeus, primeiramente com alemães e italianos e depois do Japão, quando em 1908 atracou no Porto de Santos o navio Kasato Maru com a primeira leva de 781 imigrantes japoneses que vieram contratados para trabalhar nas fazendas do interior paulista.
Enquanto passava pelo processo de embranquecimento ou eugenia como muitos alegam, estava em curso um imenso processo de gentrificação na capital do Rio de Janeiro.
O Rio de Janeiro era a capital do Brasil no início do século XX, e o país recém saído da escravidão e ainda de vocação rural passa a sofrer mudanças que visavam sua inserção entre as grandes capitais do mundo moderno, reivindicando sua imberbe vocação urbana e industrial. O Centro do Rio era composto por muitos cortiços, alguns com até 2 mil pessoas como o Cortiço Cabeça de Porco, daí o nome de "cabeça de porco" para qualquer tipo de ajuntamento de habitações do mesmo formato. As epidemias sanitárias se sucediam e a classe burguesa clamava por uma higienização e modernização do centro da cidade. O Presidente Rodrigues Alves deu plenos poderes ao Prefeito Pereira Passos, que como prefeito governou a cidade entre 1902 e 1906. Pereira Passos foi inspirado pela modernização da cidade de Paris, dando início ao período conhecido como Belle Époque.
Iniciou-se então um processo de gentrificação da capital, com foco no centro da cidade, onde cortiços foram derrubados para dar lugar a grandes edifícios, modernas avenidas e parques. Essas intervenções de Pereira Passos foram consideradas autoritárias, quando grande parte da população pobre foi expulsa desses cortiços sem indenização, tendo que se deslocar para as encostas dos morros da cidade, originando um incremento no número das poucas favelas que existiam naquele período.
A modernização transformou a imagem da cidade com a inauguração da moderna e ampla Avenida Central, com suas lojas e cafés de luxo. Passos iaaaaaaanaugurou a impressionante iluminação pública, a reforma do Porto do Rio de Janeiro, o primeiro sistema de saneamento básico eficiente e a vacinação forçada da população sob o comando do sanitarista Oswaldo Cruz, que levou à deflagração da revolta negra denominada Revolta da Vacina. A partir da Bélle Epoque o Rio de Janeiro entrou definitivamente para o clube das grandes e modernas cidades do planeta.
A população negra também sofreu o impacto da gentrificação, primeiro tendo que abandonar o local de moradia contra sua própria vontade e segundo, dentro do contexto cultural, onde as manifestações populares como samba e capoeira foram perseguidas e proibidas, devido ao forte recorte racial de seus praticantes. Também pela intenção das elites de europeizar o cenário das artes e da cultura na cidade, banindo a crescente cultura negra do cenário da urbano. Para tanto passaram a prender sambistas que portavam instrumentos musicais e verificavam se seus dedos possuíam calos adquiridos com a arte de tocar percussão. Todo esse contexto de gentrificação originou a criação de uma forte burguesia carioca, que repudiava qualquer manifestação de origem africana.
Com o passar dos anos, o samba foi se organizando e cada vez mais, passando a fazer parte da vida cultural da cidade. No início dos anos 1920 o carnaval de rua organizado era alegrado pelos ranchos carnavalescos da burguesia. Os desfiles aconteciam na moderna Avenida Central e eram um feudo exclusivo da elite e da classe média. O primeiro rancho a desfilar foi o “Reis de Ouro” de Hilário Jovino, que criou as figuras do Mestre Sala e Porta Bandeira e também o conceito de enredo, depois absorvidos pelas escolas de samba. Os pobres não podiam desfilar nos ranchos devido ao alto custo dispendido na confecção das fantasias e desfilavam em blocos e cordões compostos por maioria negra que viviam na região da Pequena África. Esses blocos mantinham a tradição de usar atabaques e tambores que marcavam o ritmo das batucadas africanas mescladas com elementos do Candomblé. As primeiras licenças para desfiles de blocos emitidas pela polícia datam de 1889 para os seguintes blocos: Grupo Carnavalesco São Cristóvão, Teimosos do Catete, Corações de Ouro e Piratas do Amor, entre outros.
Havia ainda os blocos de sujo, que assim eram denominados porque eram composto por trabalhadores que saíam do trabalho diretamente para o carnaval, sem tomar banho. Esses trabalhadores foliões compravam máscaras de Clóvis e saíam na frente dos cordões, abrindo o desfile dos blocos. Marchava sempre um grupo de foliões com máscaras de velhos, criando então o embrião das atuais Comissões de Frente.
Nos anos 1920 a contribuição da turma do Estácio foi fundamental para compreendermos o samba como é tocado hoje. Os sambistas da turma do Estácio eram famosos e também participavam dos saraus da casa da Tia Ciata, com destaque para Ismael Silva, Bide, Marçal e Brancura. Bide foi o criador do surdo de marcação, quando utilizou pela primeira vez uma lata de banha de 20 quilos vazia, colocou papel de saco de cimento molhado amarrou nas extremidades com barbante e arame, aquecendo o instrumento na fogueira. A marcação do surdo criado pela turma do Estácio retirou o ritmo maxixado do samba e manteve sua característica cadenciada que é utilizada até os dias atuais. Bide também alterou a estrutura do sambas das escolas que eram cantados de maneira improvisada, passando a ser compostos antecipadamente.
Em 1929, Zé Espinguela, o Pai de Santo da Mangueira e o sambista Paulo da Portela realizaram o primeiro encontro de escolas de samba, defronte à casa de Zé Espinguela no bairro do Engenho de Dentro. Juntos definiram critérios como Mestre sala e Porta Bandeira, Samba Enredo, Ala das Baianas em homenagem a Tia Ciata e Bateria, no que seria a gênese do que assistimos hoje nos sambódromos de todo o país.
Nos anos 1930 o desfile das escolas de samba eram desorganizados. Não havia uma metodologia definida e a única obrigação das escolas era passar defronte a casa da Tia Ciata na Praça 11 para reverenciá-la. Não havia um local pré-definido e nem premiação. passa a ter início a organização “profissional” das escolas de samba. Alguns sambistas eram muito respeitados pelo mundo do samba e poderiam ser chamados de embaixadores do samba, autênticos líderes de ébano, entre os quais se destacava Paulo da Portela.
Através de Paulo da Portela e outros sambistas que se dedicaram na organização das escolas de samba e seu desenvolvimento, o Presidente Getúlio Vargas, empenhado em demonstrar apreço pelo nacionalismo e pela cultura nacional, promoveu finalmente a descriminalização do samba durante o Estado Novo.
A partir desse momento as escolas de samba se proliferaram com força total, reunindo principalmente nos subúrbios agremiações como o Império Serrano, dissidência do Prazer da Serrinha no Morro do São José Operário em Madureira, Baianinhas de Oswaldo Cruz que depois se tornou Vai Como Pode e finalmente Portela também de Madureira/Oswaldo Cruz, Salgueiro na Tijuca que foi o resultado da fusão de três escolas dos morros da Grande Tijuca, Imperatriz Leopoldinense na Zona da Leopoldina em Ramos, tendo como base o Complexo do Alemão, Mocidade Independente de Padre Miguel da Zona Oeste, Unidos Vila Isabel do Martinho da Vila, Deixa Falar com sua enorme tradição que depois se tornou Estácio no Centro do Rio de Janeiro, Vizinha Faladeira que reivindica ser a primeira escola de samba e que introduziu o luxo nos desfiles, Beija Flor de Nilópolis, da Baixada Fluminense. A nova geração é composta pela União da Ilha do Governador, Unidos do Viradouro, Porto da Pedra, ambas do lado de lá da Baía de Guanabara, Grande Rio, Unidos da Tijuca e São Clemente, União da Ilha, Caprichosos de Pilares, Acadêmicos de Santa Cruz, Unidos de Lucas, entre muitas outras.
As escolas de samba seguem uma antiga tradição de se organizarem por famílias. Tirando a Mangueira como exemplo, podemos ver o poder da escola distribuído entre as famílias. Entre os principais clãs da negritude daquele território estão as famílias da Dona Neuma/Saturnino/Chininha e Guesinha, Geraldo da Pedra, Zé Criolinho, Zé Ramos, Cartola e Zica, Dória, Tia Fé/Gilda/Roberto Firmino e Guanaira, Nelson Sargento, Tinguinha/Elmo, Carlos Cachaça, Tantinho, Hélio Turco, Alvinho e Padeirinho. Todas famílias importantes na genealogia mangueirense que sempre mantiveram o poder entre si, com um ou outro pequeno hiato.
A Mangueira surgiu da união de diversos blocos e ranchos da comunidade. No morro já existia o rancho da Ialaorixá Tia Fé denominado Pérolas do Egito, que junto com outras lideranças religiosas como o Pai de Santo Zé Espinguela, Maria Rainha e Chiquinho Crioulo de Minan faziam celebrações sagradas e organizavam ranchos para as famílias da comunidade se divertir. Os bons sambistas ficavam de fora porque bebiam muito, brigavam e falavam palavrões, por esse motivo eram proibidos de participar dos ranchos e blocos. Por conta disso criaram um bloco liderados por Cartola denominado ‘Arengueiros’, onde os homens se vestiam de mulher e iam para o centro da cidade brigar com os outros blocos. Após muitos anos de surras e prisões os arengueiros decidiram entrar nos eixos e Cartola propôs a fusão de todas as organizações carnavalescas de Mangueira em uma só entidade, a Estação Primeira de Mangueira. Estação Primeira é devido ao fato de a estação de Mangueira ser a primeira estação de trem depois que o trem saía da Central do Brasil e encontrava o samba. As cores verde e rosa foram em homenagem ao rancho de seu pai o ‘Arrepiados das Laranjeiras’, que tinha as cores verde e rosa.
Segundo Carlos Cachaça, testemunha ocular de todos esses eventos, quem levou o samba para Mangueira foi o Mano Elói da Serrinha, de Madureira. Elói Antero Dias, assim como Paulo da Portela, se tornou um personagem de referência no samba carioca. Pai de Santo, sambista e líder do sindicato dos estivadores no cais do porto, Mano Elói assim como Paulo da Portela era simpatizante do Partido Comunista Brasileiro. Carlos Cachaça afirmou que Mano Elói foi quem cantou samba pela primeira vez em Mangueira na casa de Tia Fé.
O PCB sempre encontrou no samba uma estratégia de se comunicar com o operariado, contrariando a afirmação que o samba era motivo de alienação popular. Tanto que em 1946 promoveu um desfile com 22 de escolas de samba no Campo de São Cristóvão em homenagem a Luís Carlos Prestes, líder comunista, Deputado Federal e comandante da famosa coluna que levou o seu nome, a inimaginável Coluna Prestes.
Uma das características que as escolas de samba possuem e que poucas pessoas sabem são as famílias das baterias. As escolas possuem batidas diferentes e essa batidas são de acordo com os orixás de cada escola.
O avanço da profissionalização do samba continuou de maneira irrefreável, depois que o Jornalista Mario Filho, irmão do teatrólogo e Nelson Rodrigues, que criou a campanha para a construção do estádio do Maracanã organizou através de seu jornal Mundo Esportivo o primeiro desfile de escolas de samba no ano de 1932. Evento que passou a ser organizado a partir de então pelo jornal O Globo. No ano de 1935 houve a legalização das escolas de samba pelo Prefeito Pedro Ernesto, oficializando os desfiles que até os anos 50 eram vencidos em revezamento entre Portela e Mangueira. Com a profissionalização os temas passaram a ser controlados e os critérios de julgamentos passaram a ser mais criteriosos. Uma das exigências é que as escolas deveriam apresentar enredos sobre a História do Brasil, quando os sambas de enredo passaram a ser longuíssimos, desprezando qualquer poder de síntese, com enormes trechos desconectados da realidade histórica. Dizem que a expressão “samba do crioulo doido” surgiu dessas imprecisões históricas contidas nos sambas.
Enquanto as escolas de samba se estruturavam a passos largos rumo à profissionalização, os antigos ranchos e blocos de sujo também avançavam na sociedade. Os blocos faziam um desfile à parte para a população e entidades como o Cordão da Bola Preta, Bafo da Onça e o Cacique de Ramos dominavam o cenário dos blocos no carnaval no Rio de Janeiro, com destaque para o Chave de Ouro do Engenho de Dentro que saía somente na Quarta Feira de Cinzas, causando invariavelmente a prisão de seus componentes. Em Recife existem blocos tradicionais de grande expressão como o Galo da Madrugada e em Salvador os Filhos de Gandhi, Olodum e Ilê Aiyê. Nos últimos 30 anos centenas de novas agremiações surgiram para animar o carnaval de rua e blocos como o Simpatia é Quase Amor, Suvaco de Cristo, Bloco do Barbas, Spanta Neném, Carmelitas, Bloco da Preta, Bloco da Anita, Fogo e Paixão entre outros, arrastam milhões de foliões pelas ruas do Rio de Janeiro. Um bloco que se tornou de grande tradição foi o Bloco das Piranhas que desfilava nas ruas de Madureira durante o carnaval, onde todos os seus componentes desfilavam vestidos de mulher. Atualmente os blocos de carnaval configuram um novo fenômeno nas grandes capitais brasileiras mas não representam mais a negra, pelo contrário, são administrados pelos representantes da classe média da zona sul, que inclusive criaram uma liga para representar seus interesses, a Sebastiana.
O desfile das escolas de samba que antes tinha seu foco no Rio de Janeiro passou a acontecer em diversas unidades da federação. O governador do Rio de Janeiro Leonel Brizola solicitou ao seu fiel escudeiro e Vice-Governador o Antropólogo Darcy Ribeiro que encaminhasse a construção de um espaço fixo para o desfile das escolas de samba. A genialidade de Darcy Ribeiro uniu-se a de Oscar Niemeyer para criarem a Avenida dos Desfiles, depois Passarela de Desfiles e finalmente Passarela Professor Darcy Ribeiro. Mas como o próprio Darcy Ribeiro chamava, ficou popularizado com o nome sambódromo. Hoje existem sambódromos em todo o país que garantem o maior espetáculo da Terra.
Nos tempos atuais as escolas de samba tradicionais se tornaram grandes organizações culturais e econômicas, ode despendem milhões de reais para realizar o desfile no sambódromo com possibilidades de vitória. Seus principais profissionais são contratados a peso de ouro e entre eles podemos citar os carnavalescos, as rainhas de bateria, os diretores de bateria, Mestre-Sala e Porta bandeira, cantores e cantoras. No barracão de alegorias que é uma fábrica que trabalha febrilmente durante o ano inteiro há uma equipe especializada e bem remunerada como os ferreiros que cuidam dos chassis dos carros alegóricos, a equipe da fibra de vidro e resina que molda os personagens, a pintura de arte e os aderecistas. Muitas equipes trabalham fora dos barracões como o pessoal da chapelaria, sapataria e costura, que costumam ser nas própria s comunidades ou em seus arredores. Essas equipes de fora do barracão costuram as fantasias das alas, que geralmente são coordenadas pelas famílias mais importantes da escola.
A era digital propiciou que a s escolas elaborassem seus sites na Internet e se comunicassem com o mundo. As grandes escolas possuem dezenas de Embaixadas e Consulados no Brasil e em todo o planeta, de onde vem componentes para desfilar no carnaval carioca. A Mangueira possui sua filial em Portugal que é verde e rosa e se chama Trepa no Coqueiro, no Japão existe Yokohama Saúde Mangueira e3 em Londres existe há 30 anos a Unidos de Londres.
O que antes, nos anos 40, eram quadras de chão de saibro batido agora são verdadeiros palácios do samba, onde a população negra fica cada vez mais distante devido ao preço elevado dos ingressos e das bebidas e tira-gostos durante os ensaios. O padrão étnico das quadras das grandes escolas mudou radicalmente com a classe em média em peso, ocupando os espaços que antes era dos representantes da comunidade. As fantasias são caríssimas e a única opção para o negro pobre desfilar é conseguir uma fantasia na Ala da Comunidade que é financiada pela escola, ou então na “Ala da Força”, que empurra os carros alegóricos do barracão de alegorias até a avenida dos desfiles, durante os desfiles e retorno ao barracão. Obviamente que a bateria recebe as fantasias, assim como o casal de Mestre sala e Porta Bandeira e as Rainhas de Bateria.
O evento que antes era perseguido e discriminado agora é um espetáculo milionário que movimenta milhões de reais todos os anos em todos os estados da federação. Os negros não estão mais no centro das decisões, com algumas raras exceções. O samba se tornou uma indústria milionária assim como o cinema. E nesses casos os negros ocupam os degraus mais baixos da cadeia produtiva do carnaval.
Deu branco no samba.

quinta-feira, 6 de abril de 2023

O PORTAL DO TEMPO

O negro sabe muito bem onde o calo aperta. Um desses locais é a porta do banco. As portas e seus alpendres sempre foram locais de humilhação para o povo negro. Na época do império, nós alpendres das igrejas, havia uma pequena estrutura de ferro em forma de “T” cravada no chão. Nessa peça de metal os negros tiravam o barro dos pés para poder entrar na igreja. Daí então surgiu a expressão “pé rapado”, que é uma tradução popular para quem é despossuído de bens materiais, ou seja paupérrimo.
Na porta do céu tem São Miguel, anjo guerreiro que porta uma espada , cuja missão celestial é impedir a entrada nos campos do Senhor daqueles que não professam o catolicismo. Novamente grande parte dos negros também está fora do jogo, pois as religiões de matriz africana não possuem o cristianismo como referência espiritual.
Mas mesmo estando nos tempos modernos algumas portas são a representação viva da discriminação racial. Podemos citar como exemplo as portas das boates famosas, onde reina de maneira impávido um personagem que pode ser feminino ou masculino, que determina através da observação analítica de fenótipo quem pode entrar ou não no estabelecimento. Obviamente que os negros que não são famosos não passam por esta régua, não importando como estejam vestidos ou o quanto carregam de dinheiro em suas carteiras. Nesses ambientes, o que vale é a representação caucasiana, eurocêntrica, pele branca, onde os negros não têm vez.
A porta mais cruel que interfere mais diretamente na auto estima do povo negro é a porta dos bancos. Aquela porta giratória que parece ser aleatória e democrática mas não é. Pelo contrário, a porta de entrada dos bancos é a maior representação visível do racusmo estrutural que podemos constatar atualmente.
Enquanto o mundo gira e a civilização avança em seus primados de direitos humanos e diversidade, a porta giratória dos bancos insiste em girar no sentido contrário, na direção do passado, onde a população negra raspava os pés antes de entrar na igreja, onde os negros escravizados eram obrigados por lei a andarem descalços, para serem diferenciados das pessoas livres. 
A porta giratória dos bancos é como uma máquina do tempo, que gira no sentido contrário da história e remete o povo negro ao tempo da escravidão, à humilhação do tempo triste da senzala e da escravidão. Há uma dura e autêntica aula de história das civilizações no girar preconceituoso das portas dos bancos. Aquele movimento giratório demonstra o tempo histórico onde o capitalismo estruturou a política de dominação e segregação do povo negro, primeiro no continente africano e depois no Novo Mundo, para onde foram trazidos como seres escravizados. 
Não existem escravos, ninguém nasce na horrível condição de escravo. Todos os seres humanos nascem naturalmente livres, de acordo com a ordem primordial do universo. As pessoas também não se tornam escravas e sim são escravizadas. A ambição humana por acumulação de capital fez com que os brancos europeus empreendessem navegações exploratórias e dominadoras ao continente africano, em busca de poder e riquezas em novos territórios.
A dominação e partilha do continente africano entre as principais nações européias deu início ao olhar crítico e consequente desconstrução de uma cosmovisão milenar, que sempre viveu de acordo com suas tradições culturais, sem interferir na cultura de outros povos. Os europeus levaram ao continente africano culturas incompreensíveis como casas com muros, propriedade privada e acumulação obsessiva de capital. Levaram também o álcool como fator de impulsão anímica e a pólvora como componente irrefreável de conquista e morte.
Do século XVI em diante o que pudemos assistir foi uma barbárie incomensurável, onde a matança, conquista e escravização levou a humanidade a um patamar assombroso de irrealidade e crueldade. Nesse movimento histórico perverso o continente africano sofreu a espoliação contínua de suas riquezas inesgotáveis, transformando simples países europeus em grandes potências econômicas internacionais, além de retirar desse mesmo continente, durante 400 anos, seus melhores corpos e mentes, levados sob os grilhões dos navios negreiros através do Oceano Atlântico para a empreitada de construção do Novo Mundo.
Aquele povo livre, feliz e orgulhoso, outrora vivendo em nações livres, foram transformados em restolhos humanos pela insaciável ganância capitalista. A mancha histórica do colonialismo e da escravidão estará sempre manchando as bandeiras democráticas do chamado mundo livre. O deletério desmonte humanitário causado pelo colonialismo e por extensão pela escravidão, por mais que se promovam ações pontuais de reparações, jamais poderá ser compensado e esquecido.
A crueldade perpetrada contra o povo negro tanto no continente africano como na gigantesca afrodiáspora, permanece na sociedade contemporânea imanente e indissociável do tempo histórico. Por isso a porta giratória dos bancos apita quando um ser humano negro tenta atravessá-la. Ele não consegue pois está em uma dimensão diferente da dela. Ele está no futuro e ela está no passado. Ela ainda é a porta senhorial, colonial, imperial. Para a porta ele é o mesmo negro, da pele preta, do cabelo crespo, dos olhos de medo do passado.
Por mais que a civilização avance célere na direção do futuro, sempre existirão esses portais transdimensionais que sugarão a alma negra para o passado, para o tempo do colonialismo e da escravidão. O capitalismo possui conhecimentos sistematizados e avanços tecnológicos formidáveis, mas ainda mantém em seu id antropológico as digitais indeléveis da perversão. 
O povo negro tem sabedoria e organização suficientes para criar um mecanismo temporal que feche para sempre esse portal transdimensional das portas giratórias que crudelizam sua existência, que perpetua o racismo e a dominação. O conhecimento e a sensibilidade estão na alma negra, sempre estiveram na alma negra. O espírito e a ancestralidade desse povo histórico irão pavimentar através da diversidade um novo futuro, onde os sorrisos e abraços negros serão os autênticos portais da felicidade, onde a roda a girar será a da fortuna.