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O Espelho

quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Uma Rapsódia Africana

Sou um ser negro formado por imensos vazios de ancestralidade. Senão tantos vazios mas repletos de hiatos de atavismos. Minha sombra é um ectoplasma que se esquiva do real, na medida em que os sóis do meu universo não iluminam meus recantos, por estarem onde não deveriam estar.
Ser um homem negro é fingir não ver o abismo quando se vive dentro dele rodeado por todos os seres horrendos que o habitam. Sou um triste hiato africano consumido pela cruel diáspora global. Sou aquele que caminha pelos desvios que me são permitidos caminhar.
Posso mas não posso amar livremente. Sou um homem negro cujos passos são vigiados pelos olhos da branquitude, da sociedade perversa que somente permite amores ocasionais, interditos em gotas que usurfruo sofregamente em meu etéreo graal de esperanças.
Onde estará minha ancestralidade? Decerto nunca conhecerei as músicas e as danças da aldeia dos meus ancestrais, a comida, as estórias de assombrações; os cantos de glória e vitória dos meus antepassados, sou um pária atávico, um viajante sem-passado, a escravidão o tirou de mim.
Sou um homem negro em uma diáspora global hostil que não me ama e nunca me amará, pois represento na civilização parte do estoque étnico descartável, da sub-civilização contemporânea, da qual sou um mero personagem secundário e nunca  protagonista principal.
Existo em um labirinto antropológico onde a razão me faz evitar o minotauro eurocêntrico. Um labirinto de onde nunca sairei e que não se importa nem um pouco se sou feliz ou não em meu triste fado de não encontrar uma saída.
Sou um buraco negro existencial que consome todas as aflições do mundo em meu horizonte de eventos. Até a tênue luz da lua que teima em surgir nas noites estreladas é consumida pela voracidade da minha gravidade avassaladora.
Cruzo a vida como um velho veleiro navega em um mar de sargaços, lentamente, displicentemente, bamboleando na gávea, ansiando encontrar terra firme, um mundo livre diferente do mundo alvoroçado dos brancos. Sem a escravização do dinheiro, onde os lamentos de almas negras não sejam apenas meros sussurros desagradáveis, monótonos e dispensáveis.
Há um céu que me foi negado pela própria cristandade desde sempre. Não há céu para um negro pois o reino dos céus do cristianismo é branco. Me mostraram um Deus criador branco de barbas brancas, Seu filho que morreu para me salvar é louro de olhos azuis mesmo tendo nascido no Oriente Médio. Os anjos são brancos em um céu absolutamente branco. Para mim sobrou o mundo negro, a noite mais escura, o mal, a escuridão, a insídia e o purgatório na melhor das opções.
Nasci puro, com um sol radiante em minha alma, que aos poucos foi sendo esmaecido, apagado e trocado por um mundo plúmbeo, triste e sem luz, onde caíram mortas as estrelas vivas da minha felicidade.
Existo em uma diáspora africana que me permite não sonhar e me obriga a ser feliz para que possa ser visto como um ser humano servil, cordato e civilizado.
Mas não posso me prender nas lamúrias da egotrip. Tampouco me integrar ao motocontínuo da morte, caminhando em círculos afroferomõnicos, como as formigas, para enfim perder a vida pela exaustão. Talvez seja isso que o sistema quer que eu faça. Que fique girando em torno das questões cotidianas que o racismo estrutural nos apresenta e deixe de me organizar para lutar contra as estruturas de poder historicamente controladas pela branquitude. São sistemas que nós negros precisamos compreender cono a elaboração e execução do orçamento público, o controle dos aparelhos de repressão, o sistema educacional público, o funcionamento do parlamento nas três esferas de poder, a organização do Judiciário e o complexo arcabouço que rege o funcionamento dos partidos políticos. Enfim, são estruturas que permanecem imponentes enquanto nós giramos de forma messiãnica à sua volta, como os muçulmanos fazem na pedra negra de Meca. Os brancos nos permitem tudo, menos que ocupemos seus lugares privilegiados. O poder nunca é dado, tem que ser tomado. A via eleitoral se tornou uma quimera para os negros. Todo o ordenamento jurídico nacional é dirigido para privilegiar a branquitude. Continuamos a catar os miúdos dos porcos, os restolhos antropofágicos que nos são atirados  para fazermos nossa feijoada existencial. Continua tudo como sempre foi e como sempre foi resta-nos a rebelião e a revolução. 
A rebelião que grita em meu peito, me queima e me consome ao não sentir em meus irmãos e irmãs a chama lendária do espírito de Palmares.
Assim caminho na vida, solitário em meus anseios, sozinho em meus sonhos, tentando alcançar um horizonte reluzente que se afasta cada vez mais, quanto mais vou de encontro a ele.
Sou um homem negro que ouve os sons de uma rapsódia africana, extraída de uma sinfonia histórica imemorial, cujos acordes foram forjados pelos lamentos e pela tragédia colonial que os brancos nos impuseram
Passo pela vida catando os cacos de sonhos que encontro pelo caminho: uma companheira amiga, um lugar de paz, filhos felizes e um futuro que não seja marcado a ferro e fogo, calcinado pelo desterro, tatuado pelas marcas da opressão da branquitude na pele.
Não nasci negro, nasci com a pele preta, sem saber quem eu era realmente . Tornei-me refém de uma afrotautologia que me atirava inerte contra os paredões do destino, totalmente cego, sem saber por onde estava indo.
Enfim meus companheiros e companheiras de luta me resgataram de um mundo sem luz e retiraram a venda que cobria meus olhos. Venda que me impedia de enxergar e lutar contra as injustiças, o racismo e o preconceito.
Sem a cegueira antropológica que me impediu de enxergar a realidade gritante do racismo estrutural, pude enfim me erguer, virar as costas para a "síndrome do impostor" e me tornar um homem negro verdadeiro, livre das amarras do eurocentrismo e munido do escudo e da lanca para enfrentar o dragão do capitalismo.
Foram tantas lutas e refregas que jamais esquecerei do calor dos combates, do cheiro de suor dos companheiros e companheiras nas mais diversas trincheiras espalhadas mundo afora. Essas bravas pessoas negras me fizeram negro, pacientemente me tornaram negro, negro de verdade, alma de Zumbi, forjado no inconformismo, Xangô da rebelião, Ogum na revolução.
Muitos se foram e nós também iremos um dia. Assim como os heróis de Palmares, da centenária Tróia Negra também se foram. São Abdias, Lélias, Beatrizes, Mahins, Felipas, Benguelas, Marielles, Malês, Carolinas, Firminas, Antonietas, Dandaras, Aqualtunes, Solanos, Limas Barretos, Acotirenes,  Gangas Zumbas, João Cândido, Dragão do Mar, Manoel Congo e tantos personagens que lutaram incansavelmente pela liberdade, pela igualdade. Mas outros virão e orgulhosamente lhes passaremos os estandartes e as bandeiras de luta. São os negros mais importantes para nós, tanto quanto os que partiram são os que estão chegando, os negros do devir, afroguerreiros de um futuro que não tardará a acontecer. Corpos negros, esbeltos, fortes, sorrisos francos, com seus cabelos lindos, corpos cheios de energia, cantando canções de glória. Sim, são esses que continuarão a reverberar nossos gritos de liberdade com igualdade que nunca poderão ser silenciados.

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Se a espécie humana surgiu na África...

Diante da imensidão do universo somos mais fugazes que o tempo de existência de uma fagulha, ou seja, nada. Nosso tempo de vida é a coisa mais vã e desnecessária que se pode observar no universo. Ele, o universo, não se importa se somos brancos, pretos, pobres, ricos, felizes ou infelizes, cristãos ou muçulmanos. A única realidade inexorável é que iremos desaparecer definitivamente do planeta Terra enquanto que o universo continuará em sua magnificência infinita.

O tempo ínfimo que passamos aqui sobre este planeta, inexplicavelmente nos cobre de vaidades, soberbas, julgamentos, preconceitos, falsas verdades, egoísmos e desamores.

Não há uma explicação plausível para que esses sentimentos negativos nós preencham. Nesse aspecto somos mais defeitos que virtudes cotidianamente. A incapacidade de nos tornarmos perfeitos perante uma matriz existencial definida em um conjunto de possíveis virtudes nos exaspera.

Então criou-se o bem e o mal de acordo com as características de cada grupo humano. E assim a humanidade caminha referenciadas em verdades que determinam que a mulher é inferior, que negros e indígenas são inferiores, que a terra não pode ser de todos e que o amor pode ser comprado.

Para que possa existir em um cenário tão enigmático e opressor a espécie humana desenvolveu as religiões. Trabalhando com a metafísica do sagrado se consegue sobreviver nas turbulências da existência humana legando a uma divindade superior e imanente todos os momentos de felicidade ou infortúnio que perpassam nossas vidas.

A existência do dogma justificado pela metafísica faz da mulher um ser inferior. Impedida de comandar os ritos sagrados na maioria das religiões, segue sendo secundarizada pelo cristianismo dogmático por ter sido criada através da costela do homem, um subproduto do ser masculino dominante.

A merafísica determina que o que é sagrado tem que ser cumprido e não contestado. Então os homens baseados no princípio da dominação do sagrado criam leis, exércitos, processos de conquistas e opressões onde afirmam seus pseudo poderes.

Há uma desconexão proposital da efemeridade do ser humano com a infinitude do universo. Os livros que foram escritos narrando a existência de divindades não preveram os avanços tecnológicos e científicos que levam a humanidade casa vez mais distante no espaço profundo. Antes o planeta Terra era o centro de tudo e a Criação estava concentrada nele. Agora sabemos que nosso planeta é menor que um grão de areia na imensidão universal. Sabemos que existem mais estrelas no céu que grãos de areia na Terra.

São mundos infinitos em trilhões de galáxias que nunca chegaremos a descortinar. Nossa visão de centro do universo se estilhaçou e nós põe à prova quanto a imanência de um ser que tudo pode e que tudo vê. A incapacidade de entender ou saber qual o objetivo de nossa existência joga a resposta para o sagrado, pois somos incapazes de compreender o que viemos fazer aqui.

A incompreensão existencial gera por conseguinte os inúmeros desvios de caráter que permeiam a existência humana. Se o tempo de nossas vidas é tão curto, precisamos usufruir o melhor da vida. Então vivemos em uma sofreguidão por constituirmos bens, terras, imóveis, capital e outras formas de aquisição de poder.

O rótulo do sucesso prevê a acumulação de bens. O respeito civilizatório não se dá pelo conjunto de virtudes humanísticas de um ser humano mãe sim pela capacidade de constituir capital. A metafísica justifica essa posição ao afirmar que devemos dar à Cesar o que é de César e à Deus o que é de Deus.

Deus é a virtude, o amor, a solidariedade e a compaixão. César é o mundo difuso e plúmbeo do capital. Então vivendo entre esses dois mundos vamos tentando sair de um para entrar no outro sem porém abandonar um em detrimento ao outro.

Então a vida passa e os que estão perto do final analisam as batalhas interiores entre esses dois mundos que nos compõem. No fim pode parecer ridículo todo esse viver que nós atira constantemente nós paredões desses dois mundos que consideramos destino.

Em 200 anos no futuro ninguém que está vivo hoje nesse planeta estará vivo, terão desaparecido, transformados em cinza e pó. Enquanto isso o universo seguirá em sua marcha infinita, pouco se importando com nossas vaidades e arrogâncias que se foram envolvidas pelas cinzas.

 

O céu enquanto um local paradisíaco reservado aos que viveram uma vida dedicada a Deus não passa de uma meta e inteligente construção metafísica. A Bíblia diz que é mais fácil um camelo passar através de um buraco de agulha que um rico herdar o reino dos céus. Na luta de boxe chamam de golpe abaixo da linha de cintura. No popular se diz golpe baixo.

Sabemos que 1% dos mais ricos do planeta ficaram com 2/3 de toda a riqueza produzida no mundo, que sugnifica 43 trilhões de dólares, ou seja, seis vezes mais dinheiro que toda a população global estimada em 7 bilhões de pessoas.

Essas pessoas super ricas não poderão entrar no reino dos céus pelo simples fato de já estarem nele. As outras 99% lutam bravamente para não chegarem ao inferno, que na verdade está aqui na Terra e é muito fácil de entrar nele, basta perder o emprego e não conseguir outro ou depender da saúde pública em caso de doença.

Não conheço nada mais inteligente e eficaz que convencer o miserável a sentir pena do destino metafísico de um rico e se resignar com sua indigência, pois somente através dela alcançará o paraíso. Ao acreditar no excerto bíblico, o miserável jamais se levantará contra seus senhores, pois, a ele está destinado viver aos pés de Deus e da Virgem Maria em um ambiente puro, divino e livre de pecado. A ele foi apresentado um mundo invisível e fantástico como recompensa pelo seu comportamento resignado e servil aqui na Terra.


















 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 25 de agosto de 2023

O Caminho da Luz

 Os antigos afirmavam que existem dois lobos dentro de nós, um bom e outro mau. Eles estão em luta constante para se apoderar do nosso espírito, das nossas escolhas, da nossa vida. Qual deles vencerá? A resposta é simples, vence o lobo que você alimentar.

Se você optar por nutrir o lobo bom, seguindo por um caminho luminoso, reto e virtuoso, certamente ele vencerá a contenda e expulsará o lobo mau que insistia habitar seu interior. Agora, se ao contrário, o lobo mau for alimentado com hábitos destrutivos,  atitudes e pensamentos violentos, comportamento insidiosos e fazer seu cotidiano ser permeado por atos difusos e pejorativos, esse lobo mau vencerá e construirá, após a expulsão do lobo bom, um caminho de trevas e martírio em seu viver

Escolha sempre o caminho da luz. Esse caminho é como uma árvore frondosa que por muitas vezes nos oferece raízes amargas, causando-nos decepções e sofrimento, mas no final, se formos resilientes e mantivermos a fé, ela nos entregará doces frutos.

O caminho da luz é para todos indiscriminadamente. Nada tem a ver com posses ou riquezas materiais. A luz é interior e espiritual, sendo que muitas vezes, aliás, quase sempre, reside na simplicidade, na compreensão, na solidariedade e no amor verdadeiro, aquele que não exige nada em troca.

Muitos reis, milionários e poderosos, apesar de grande riqueza e conforto, vivem nas sombras, envoltos em um triste mundo frio e sem luz.

Por outro lado, podemos ver, que um humilde morador em situação de rua, pode viver feliz com seus cães, com seus amigos e com a vida simples, que o faz feliz em seu mundo repleto de calor e luz.

Nossa passagem pelo planeta Terra é efêmera. Uma simples fagulha no tempo imemorial da vastidão universal. O que nos cabe nesse diminuto lapso temporal nesse cantinho da galáxia é a escolha da forma como queremos viver, se nas trevas ou na luz. Seremos lembrados pelo que espalhamos de bom pela vida e não pelo que acumulamos em benefício próprio.

 A vida é simples e simples o caminho da luz que nos presenteia com a possibilidade de felicidade a cada novo amanhecer.

 

 

domingo, 20 de agosto de 2023

Guardiões da Humanidade

Segundo dados da ONU, os povos originários, ou indígenas sao 6% da população mundial, ou seja, 370 milhões de habitantes. Esse contingente humano fala 4 mil línguas, sendo que os territórios que ocupam representam 82% de toda a biodiversidade do planeta. Provavelmente sem esses formidáveis guardiões da natureza, a espécie humana não estaria caminhando hoje sobre a Terra.

sábado, 5 de agosto de 2023

Van Gogh Museum


O ambiente do Van Gogh Museum é canônico e grandioso. Um espaço dedicado à glória humana, onde se sente a atmosfera inebriante do espírito de Van Gogh e seu mundo caoticamente brilhante, cravejado por suas luzes que espocam em nossas almas como relâmpagos divinos.

No meu caso, não consegui descortinar um painel artístico definido diante da grandiosidade de sua obra, pois, me vi desconcertado diante daquele mundo salpicado de maravilhas que foram produzidas e até paridas sob sentimentos e momentos de intensa dor.

Talvez a grande arte seja assim, nasce como nascem nossos filhos, que encantam e iluminam nossas vidas , mas que para vir ao mundo rompem um mundo quente e confortável, infligindo uma dor profunda inesquecível e maravilhosa.

Somente o amálgama da dor com a inspiração pode parir luzes tão primordiais como as que vemos na obra de Van Gogh. Talvez seja um fado destinado aos grandes artistas, quando podemos constatar a mesma dor em Beethoven, Tolstoi, Ezra Pound e Ana Cristina Cesar.

O artista deixou mais que o legado artístico. Em sua vida atribulada, financeiramente trágica e mantida pelo irmão Theo, transmitiu um legado  às gerações futuras mostrando que a vida não pode e nem deve ser cativa ao dinheiro. Van Gogh é a mais completa representação da necessidade de se fazer arte por amor, puramente por amor e não por pecúnia. Quando dirijo meu olhar sobre suas obras, nunca esqueço que em seu desespero por afeto e talvez até por amor, retirou uma prostituta com seus filhos das ruas e os levou para morar consigo, construindo um arremedo desesperado de lar e família possível.

Todas as vezes que me detenho sobre sua obra, lágrimas afloram em meus olhos, diante de tanta magnificência construída na mais absoluta simplicidade. Van Gogh no meu entender é o que existe de mais próximo entre o píncaro da arte humana e a energia divina que rege o universo.

Uma Saga Africana

Negras e negros africanos livres
Sequestrados, escravizados, acorrentados
Levados para o Novo Mundo
Aquele novo governado pelo velho
Aquele velho fazendo trabalho imundo
Impuseram os seus deuses
Renegaram nossa fé
Fundamentos de Luanda
Zangbetos do Benin
Amazonas do Daomé
Negros afroinsurreptos
Winnie, Agostinho Neto
Impuseram santos brancos
Novos cantos de louvor
Nosso povo é Rás Tafari
Etiópia, Salvador
Haile Selassié
Lutou contra o opressor
Contra o colonialismo
Contra o dominador
Senegal lanca seu brado
Renegando o invasor
Atacaram a autoestima
O sonho de liberdade
Oprimiram as mulheres
Mas não a sororidade
Mil guerreiras geledés
Africanas de verdade
Colonizadores do mal
Mataram, pilharam, humilharam
Nossa ancestralidade
Mancharam a cosmovisão
Nossa ancestralidade
Restou nosso sentimento
De igualdade e irmandade
Lutamos o bom combate
Na ilha de Madagascar
Togo, Guiné e Mali
Cabo Verde, Zanzibar
Luta pela liberdade
Contra o colonizador
Sankara, Samora, Lumumba
Amilcar, Leopold Senghor
Angola, Benguela, Bahia
Uma só comunidade
Mia Couto, Agualusa, Abdias
Fela, Solano Trindade
Palmares! Soweto! Iansã!
Selma! Ogum! Haiti!
Luther King, Malcolm X
Garvey, Muhammad Ali
Graça Machel, Rosa Parks
Patrice Lumumba, Zumbi
O poder negro não é quebrado
Por nada que há nesse mundo
É guardado pelos orixás
Pelas Três Senhoras no Orum profundo
Pelas pretas benzedeiras
Por Xangõ pelas pedreiras
O grito de guerra se espalha
A rebelião na senzala
O fogo da noite faz dia
Angola Janga, Bahia
Ganga Zumba desce a serra
 Morre pela covardia
Confiou no invasor
Na palavra do traidor
A mulher negra é a mãe da Terra
Em seu olhar a vida brilha
Viajante das estrelas
Onde é mãe e sempre filha
Tem o poder das ervas santas
No Ifá o futuro vê
Sabedoria do astral
Príncipe Logunedê
Canto a glória de Oyá
Senhora do vendaval
Protegei os vossos filhos
Na diáspora global
Que esperam o chamado
Da reparação final
A chama acesa é o sinal
Forca revolucionária
Alma subsahariana
História de liberdade
Uma saga africana
Transformando a humanidade
Consagrando a união
Senegal, Gana, Nigéria
Congo, Angola, Sudão
É o chamado de Mandela
É o poder da favela
Negros heróis libertários
Fanon alma da Martinica
Bob Marley na Jamaica Moçambique terra rica
Steve Biko inquieto
Viva a lua de Luanda
Amor de Agostinho Neto
Lutando contra o racismo
Derrotando o apartheid
Pela ordem da história
Força da diversidade
Pela poder do amor
Pelo bem da humanidade
O destino do povo negro
Está escrito nas estrelas
Na herança dos Dogons
De poder viver e vê-las
Assim caminha nossa história
Nosso povo, nossa gente
É destino de guerreiros
De remar contra a corrente
Aimé Césaire, vive!
Kwane Nkrumah evoé!
Zangbetos do Daomé
Cabo Verde Pedro Pires
Trovoada em São Tomé
A grande África Mãe
Deusa da ancestralidade
A grande África Mãe
Berço da humanidade
Palmares! Soweto! Nanã!
Selma! Ogum! Haiti!
Congo! Sudão! Iansã!
Luther King! Sankara! Zumbi!
Palmares! Soweto! Nanã!
Saladino! Maleico Salam!

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Poeira de Estrelas

Aos jovens é concedido o prazer da experimentação da vida. A existência de um jovem pulsa forte como a energia de uma estrela de nêutrons. Tudo é muito intenso, os hormônios estão ocupadíssimos em seus processos de desenvolvimento químico e orgânico e nada, absolutamente nada, poderá detê-los em seus destinos construtores. Os jovens de Esparta ansiavam e eram preparados para a guerra, os jovens africanos para a caça e os indígenas para os rituais que o permitiam estar e conviver com os mais velhos. Os jovens do presente vivem a quimera da felicidade eletrônica, da justiça social, da igualdade, da democracia, da terra prometida em um mundo ideal e solidário que jamais conhecerão, enquanto que os jovens do futuro serão os defensores da Terra e em alguma escala de de tempo futura estarão aqui soluçando sobre os escombros gerados pelas guerras do capitalismo. Estarão empenhadíssimos na hercúlea tarefa de construir amorosidades e entrelaçamentos em um planeta plúmbeo e mortiço. A saga do renascimento da humanidade descortinará em um futuro próximo jovens expeditos brilhando nas brumas da incompreensão humana, como as flores perfumadas que vicejam em pântanos fétidos que nada mais é que o milagre da Criação nos mostrando o quanto devemos ser resilientes, persistirmos, mesmo que os pântanos da vida sejam os mais assombrosos e inamistosos possíveis.
Nossos jovens nos observam bem de perto, constatam que nós os adultos, estamos destruindo o planeta do futuro que não nos pertence pois não estaremos mais aqui. Sim, enquanto viventes pretéritos, estamos promovendo a destruição do planeta deles, que pertencerá somente a eles. Por isso a tristeza e a incompreensão dos jovens com a irracionalidade dos adultos. Por isso o choque geracional onde a revolta torna-se a face mais acentuada de um grupo humano e vívido, silenciado através do ageísmo cruel emanado pelos espíritos opressores das têmporas gris.
Enquanto fractais da criação, nossos jovens não podem perder o brilho nem a força da similaridade na energia em consonância com o vácuo estelar, da matéria escura que nos envolve, onde o universo repousa e ao mesmo tempo é o tudo e o nada, na qual estamos conectados e emaranhados, onde repousam as soluções de todos os enigmas e mistérios.
Uma única célula humana possui cerca de 220 bilhões de átomos, assim como as galáxias do universo que abrigam mais de 200 bilhões de estrelas cada. São universos em expansão, tanto na relatividade quanto no mundo quântico, jovens e galáxias, os dois rumando céleres para os braços do grande atrator, que não sabemos e ninguém sabe onde está e quando ou se será encontrado, para nos mostrar enfim qual a finalidade do milagroso balé quântico da vida.
A razão da existência de jovens, galáxias, estrelas e tudo que existe nos é inexplicável e não é nós permitido saber. Qual o sentido da exegese do fecundar, nascer, viver e morrer de uma borboleta em tão ínfimo período de tempo? Não há ao menos tempo para entender e muito menos para explicar o quão tudo é tão profundo e inexplicável ao se referir ao milagre da vida. Uma verdade mimética onde ao menos sabemos se estamos vivendo e porquê e para quê, ou se já morremos e estamos em uma outra dimensão paralela ou definitivamente não há explicação para estarmos vivos. A morte não existe no universo, é apenas o fim de um ciclo onde nossa estrutura de carbono, nossa matéria, deixa de existir e retornamos ao estado de energia. A matéria é um arcabouço temporal em escala desprezível perante a infinitude da energia em baixa intensidade que abrigamos. Somos a prisão de carbono dessa energia misteriosa e imortal. Átomos não morrem quando a vida corpórea termina. Na verdade muitos “voltam para casa”, para o insondável primordial do universo, para as estrelas, supernovas, pulsares, nebulosas e buracos negros. Dentro do caldeirão primordial do renascimento formam e se reformam como em uma forja infinita dos poderes da criação. Então a estrutura atómica que constituía os frágeis humanos, se tornam ao se libertarem do jugo do carbono, oceanos, árvores, animais, planetas, estrelas, outros seres humanos e as mais diversas configurações universais, representando o complexo jogral constitutivo, admirável, mimético, multidimensional e impenetrável da vida.
Enquanto que crianças são o graal da Criação, os jovens são os avatares, os dínamos orgânicos de algo superior onde o acaso não encontra abrigo. Espaço contrito onde o mistério da vida nos assombra com a consonância que há entre o farfalhar obsessivo de uma jovem crisálida no afã se tornar imago e o momento da vida dos jovens que como os pulsares agiganta os sentimentos nós corações dos jovens motocontinuamente, pulsando em uníssono como um inimaginável e fiel entrelaçamento quântico.Talvez a maior e mais evidente representação da singularidade do entrelaçamento dessas energias nos humanos seja o amor. Sim, o amor, sentimento inexplicável que acontece por si mesmo, independendo de seu hospedeiro. Como explicar o encontro entre duas pessoas estranhas quando então em uma simples troca de olhares as energias enlouquecidas bagunçam a matéria, fazendo os corações dispararem, criando nós nas gargantas enquanto que o tempo e espaço param o mundo para que os dois que se encontraram energeticamente possam embarcar na fruição prazeroza de endorfinas, serotoninas, dopaminas e oxitocinas.
O casal apaixonado ama-se loucamente e se for confirmado o entrelaçamento quântico que muitos chamam de encontro de almas, partem para dividir a vida sob o mesmo teto, gerando filhos que são o ápice e a consolidação do processo bioquímico e energético que completa a saga humana na grande jornada da vida.
A vida, ah! Esse sabor da vida! Ajustado na dimensão do espaço/tempo, avançando sem ousar ou temer recuar, pois a grande determinação não permite que aconteça. Avante Vida! Nas crisálidas, na natureza, nos jovens e no cosmos. Vida regida pelo tempo, sempre avançando inexorável rumo ao inexpugnável grande atrator, onde não o habitam nem o tudo e nem o nada. Existimos então para quê se nós é concedido viver em tão brevíssimo espaço de tempo ou agradecer por nos ser permitido viver essa tão espetacular experiência que é o milagre da vida?
Somos educados para não nos conhecermos. Sócrates morreu também por afirmar convicto que o ser humano deve conhecer a si mesmo antes de qualquer coisa. Sim, primeiro deveríamos ser instruídos a nos conhecer desde os primórdios, analisar nossas capacidades, nossa maneira de enfrentar a vida. Mas não, nós enfiam em crenças e religiões onde um Deus vingativo e cruel deve ser temido ao invés de amado.
Viver assim é estabelecer conssonância com qual objetivo existencial que não seja formação de mão de obra para o mercado de trabalho? O que deveria ser uma vida livre, feliz, serena e integrada com a natureza torna-se um martírio enfadonho onde passa-se a metade do dia nos apertos do transporte públicos, outro tanto no ambiente de trabalho, outro pedaço do tempo dormindo e praticamente nada para a fruição do lazer, da poesia, do teatro, da literatura e das artes e esportes de uma maneira geral. A Revolução Industrial foi uma adaga com dois gumes que decepou a convivência dos trabalhadores com a casa e a família ao construir os grandes espaços fabris. A partir de então fomos perdendo a essência e o brilho. A promessa de um mundo de luzes exarada pelo Iluminismo não se concretizou senão para poucos. A grande massa trabalhadora ao abandonar a manufatura manual e caseira assinou a pena capital de sua liberdade, tornando-se escrava do tempo Edo dinheiro.
Com a saída do lar para as fábricas, os individualismos e as solidões aumentaram e a humanidade ao viver e conhecer o capitalismo passou a conhecer a competição desumana e então passou a ser triste e melancólica, violenta, intolerante, desagregadora, punitiva e cruel.
A modernidade trouxe satisfação para os que fizeram fortuna explorando os trabalhadores. Não há um grande empreendimento sequer que não tenha em algum momento de sua história se beneficiado ou da escravidão ou da exploração análoga à escravidão de seres humanos. A pobreza, a fome, a desigualdade e a injustiça não vieram das estrelas onde tudo é ordenado para que tudo possa coexistir da melhor forma possível, comoa Terra e a Lua, eternamente enamoradas e sem nunca se acariciarem.
Ao negar aos jovens a reflexão sobre sua verdadeira origem e a complexidade que os constituem, a cátedra comete um desvio na jornada do conhecimento. Trocam o esforço e o método da ciência que caminha tecendo as redes de conhecimento por narrativas metafísicas de cobaras que falam e de uma humanidade gerada a partir de seres constituídos por homens-tijolos e mulheres-costelas. Maria Montessori dizia que nossas crianças são educadas para a competição e esse é o princípio das guerras. Precisam ser educadas para a cooperação, para a solidariedade e para o amor, que são os sentimentos basilares da paz.
A fé e as crenças pertencem ao âmago de cada um e devem ser solenemente respeitadas. Porém negar aos jovens o conhecimento da criação primordial continua ser a velha trucagem de trocar a mecânica quântica, a astronomia e a astrofísica pela metafísica, a evolução pela criaçao, empilhando crenças onde o mêtodo científico está consolidado. Perdidos dentro desse labirinto antropológico nossos jovens crescem sem saber nada de si, que são poeira de estrelas e que podem e devem brilhar hoje e para todo o sempre.