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O Espelho

quarta-feira, 28 de junho de 2023

Ideologia e Negritude na Luta Antirracista

O livro “ Ideologia e Negritude na Luta Antirracista” apresenta como pano de fundo dois aspectos fundamentais e necessários para construir a luta antirracista no país.  Discorrendo com propriedade sobre a caminhada histórica do povo negro desde a chegada do primeiro navio negreiro no século XVI até os dias atuais, o livro apresenta  a necessidade de não dissociarmos a luta  antirracista da luta anticapitalista, até mesmo pela mera impossibilidade real de fazê-lo.

A história humana é pródiga em nos mostrar que através do mercantilismo, e depois com a expansão  capitalista pelas grandes navegações, foi gestado um processo avassalador de conquistas de novos territórios, que  consolidou o estabelecimento de poderosos projetos coloniais nas novas paragens encontradas.

A chegada em territórios antes desconhecidos como os do Novo Mundo, da Ásia e do Continente Africano, provocou um grande impulso nas redes de comercialização europeias, que ansiavam por commodities  como açúcar, café, madeiras, minerais, pedras preciosas e todo o tipo de especiarias, que abasteciam as manufaturas e entrepostos comerciais do velho continente.

A expansão do sistema mercantilista gerou uma economia pujante, que transformou os principais países da Europa em grandes potências internacionais.

 O período de grande enriquecimento europeu impôs um fardo muito pesado em seus territórios coloniais, causando a deterioração e até extinção  do modo de vida de inúmeras sociedades milenares, como as de vários países africanos e de populações autóctones nas Américas e Caribe principalmente.

A invasão e colonização do Continente Americano e Caribe pelos europeus, ocasionou um dos maiores genocídios de populações originárias da história da humanidade.

Para que pudessem obter sucesso comercial e financeiro em seus empreendimentos coloniais, as nações européias utilizaram  o instituto da escravização de seres humanos, inaugurando o pérfido recurso do tráfico transatlântico de africanos escravizados para o Novo Mundo.

Estima-se que entre os séculos XVI e XIX, foram trazidos entre 12 e 20 milhões de africanos escravizados  para o Novo Mundo. Foram levados principalmente para as Américas, com ênfase para o Brasil, Estados Unidos, colônias da América Espanhola  e Caribe. Desses milhões de africanos escravizados, estima-se que entre 1 e 2 milhões perderam a vida durante a travessia transatlântica, quando tiveram as águas escuras e gélidas do Oceano Atlântico como última morada.

Durante mais de 300 anos, países como Brasil, Portugal, Espanha e Estados Unidos, retiraram do Continente Africano como escravos, os melhores corpos e mentes, causando um enorme déficit de população economicamente ativa e apta intelectualmente para a manutenção das instituições, das cosmovisões e das estruturas sociais das nações africanas impactadas pelo colonialismo escravista.

 Outro golpe profundo que esgarçou ainda mais o combalido tecido social africano, foi a partilha surreal do continente pelas potências europeias durante a Conferência de Berlim. A divisão de um continente composto por dezenas de nações independentes e milenares, realizada de maneira abusiva e aleatória, desrespeitou princípios básicos como  fronteiras, identidades, religiões, e lideranças locais, ampliando e acirrando ainda mais o fosso político que existia entre diversos povos africanos.

A falta de capacidade de compreender a fantástica metafísica do sagrado africano e a intrínseca cosmovisão de um mundo diferenciado, multicultural e pluriétnico, levou os europeus submetidos ao monocórdio plúmbeo da Inquisição, exortar o povo africano à penitência e à culpa por viver a constante alegria da convivência íntima com o politeísmo e uma liberdade existencial imanente e de certa maneira lúdica em seu paganismo.

Enquanto isso nas colônias americanas e caribenhas do além mar, a empresa colonial europeia atuava ativamente na utilização de mão de obra escravizada na tarefas de produção de commodities voltada para suprir o ávido e carente mercado consumidor europeu.

O período colonial, tanto em África como nas Américas e Caribe, imprimiu marcas centenárias que nunca foram sanadas e que persistem em existir no cotidiano da sociedade atual.

As rebeliões quilombolas e urbanas, o processo abolicionista e as pressões da Inglaterra para o fim da escravidão, tornaram o processo emancipatório irreversível, ressaltando que o Brasil foi o último país das Américas e Caribe a por fim em seu processo escravista.

Após a abolição da escravidão, o Brasil empreendeu um projeto governamental de embranquecimento de sua população. O processo foi impulsionado através do incentivo à imigração de europeus, que receberam do governo brasileiro um conjunto de subsídios como cessão de terras agricultáveis, sementes, fertilizantes, máquinas, equipamentos e empréstimos subsidiados pelo Banco do Brasil e outras entidades estatais de fomento.

A prova mais evidente que confirma a intenção do Brasil de promover o apagamento do povo negro de sua história foi o envio de dois representantes ao Congresso Universal das Raças realizado em Londres no mês de julho de 1911, onde o médico brasileiro João Batista de Lacerda que compunha a delegação, previu que após três gerações, ou seja, dentro de um período de 100 anos, não nasceriam mais pessoas negras no Brasil. Lacerda enfatizou que devido ao intenso processo de mestiçagem e a predominância da etnia de origem europeia, teria fim o nascimento de negros no Brasil. Esse foi o projeto de embranquecimento de nossa população que foi levado a termo pelo governo, que avaliava o ano de 2011 como o marco temporal para o nascimento do último negro brasileiro.

O fato inconteste da participação brasileira e a posição eugenista dos nossos representantes nesse congresso, mostra que a população negra nunca foi amada no Brasil. Na verdade os negros e negras sempre foram utilizados como objetos, como seres inferiores e sem alma, recebendo tratamento inferior ao dispendido aos animais. Nunca nos amaram e nunca nos desejaram enquanto seres humanos. Desde o século XVI quando nossos ancestrais chegaram aqui acorrentados, só conhecemos a exploração, a violência física, as sevícias, o ódio e a indiferença governamental.

Deveriam ter tido um mínimo de decência após a decretação do fim da escravidão e ao menos minorar o sofrimento que causaram ao povo negro durante mais de três séculos.

Comprovando o asco que nutriam à população negra do país que lhes enriqueceu, a elite branca virou as costas para o contingente negro depauperado e investiu na imigração de europeus brancos com todas as benesses possíveis. Enquanto isso, ao mesmo tempo, o povo negro que estava aqui trabalhando escravizado há 350 anos, foi relegado à miséria absoluta, sem políticas públicas de inclusão como geração de trabalho e renda, ensino profissionalizante, programas habitacionais e garantia de direitos básicos fundamentais.

Por conta do abandono estatal, a população negra recém liberta se viu relegada ao abandono, ficando sem qualquer tipo de apoio e vivendo por sua própria conta, sem futuro, sem trabalho, sem cidadania e sem esperanças.

À população negra brasileira foi concedido o sabor amargo da vida precária, vivendo descartada nas distantes periferias e favelas das cidades. O trabalho urbano era estranho à maioria de negros e negras oriundos das lidas rurais de onde vieram em busca de solução para a própria sobrevivência.

Restou então ao povo negro a submissão e resignação à segunda escravidão, travestida de serviços domésticos, embutida no subemprego dos estabelecimentos comerciais e industriais ou então descartado no fatídico e crônico desemprego na jovem e imberbe república.

O fim da escravidão não interrompeu o ciclo da luta racial no país. Enquanto que antes a luta era quase que exclusivamente por liberdade, com o advento da Lei Áurea o movimento passou a adquirir novas configurações e contornos, quando então a população negra passa a reivindicar por direitos como integração social e econômica, melhores condições de trabalho, liberdade religiosa e cultural e igualdade na diversidade.

Por mais que tenha havido um avanço significativo na integração da população negra na sociedade brasileira, o país continua sendo um dominado pelo mito da democracia racial enquanto é governado pelo racismo estrutural, que privilegia a etnia branca no que concerne a estabilidade financeira, protagonismo social e poder político. Por mais incrível que possa parecer, o projeto colonial português ainda está vigente em nosso país, apesar da república e mesmo com a contemporaneidade com seus avanços científicos e sociais.

Em pleno século XXI, negros e negras continuam relegados aos territórios precarizados das cidades. Persistem sendo oprimidos nas periferias e favelas por grupos paramilitares, pelo narcotráfico e através dos aparelhos de repressão de Estado. O povo negro representa a grande maioria da população carcerária do país que é a terceira maior do mundo, ficando atrás apenas dos EUA e China. A juventude negra é submetida a um verdadeiro genocídio, onde a cada absurdos 23 minutos morre um jovem negro no país vítima da violência.

No mercado de trabalho negros e negras ocupam a base da pirâmide laboral brasileira, sendo que as mulheres negras recebem 1/3 do salário que recebem os homens brancos para exercerem a mesma atividade. As universidades públicas continuam sendo um grande feudo da elite brasileira e reproduzem diuturnamente o ensino colonial, conservador e não inclusivo nos cursos de Medicina, Direito e Engenharia, por exemplo.

Fica evidente que apesar dos avanços reconhecidos pela comunidade negra, o Brasil segue a doutrina neoliberal que orienta a gestão política e social dos países capitalistas do hemisfério norte. O povo negro historicamente sempre foi a principal vítima dos crimes humanitários cometidos pelo sistema capitalista, desde o século XVI até os dias atuais.

A cumplicidade entre a Igreja Católica e os impérios Português e Espanhol, gerou uma bula papal denominada “Dum diversas”, emitida pelo Papa Nicolau V, que autorizava a escravização dos povos africanos. A justificativa para o cometimento do crime de lesa humanidade que é a escravidão, foi devido a imputação ao negro a dolorosa condição de ser despossuído  de alma, de ser um objeto falante.

As famílias que controlam a economia capitalista brasileira são em sua grande maioria as mesmas que estão aqui desde as capitanias hereditárias. Essas famílias foram beneficiadas e enriqueceram através da escravidão e do tráfico negreiro, sendo que hoje controlam as terras do país, as indústrias, os bancos, as corporaçoes de mídia, os parlamentos, o Judiciário e outras instituições de Estado, inclusive o Alto Comando das Forças Armadas.

Ao povo negro foi destinado o carimbo da cidadania de terceira classe, vivendo em habitações precárias, espremido no transporte público, recebendo remunerações indignas e insuficientes, sendo oprimido pela polícia, discriminado pela branquitude e atirado constantemente ao degredo do desemprego e da invisibilidade.

Todo esse panorama deletério sempre foi e continua sendo ocasionado pelo projeto neoliberal oriundo das economias centrais do mundo capitalista. Portanto, fazer a luta antirracista desacoplada da luta anticapitalista, sem compreender  a luta de classes e a dialética marxista pode ser um trabalho de Sísifo na organização social e mobilização da luta racial.

É imperioso internalizar que o racismo é uma das inúmeras metástases de um tumor maligno denominado capitalismo. Este tumor continua espalhando suas extensões na sociedade em diferentes formas como o patriarcado, o machismo, a homofobia, o capacitismo, a gordofobia e tantos outros malefícios sociais que atentam contra a cidadania e contra os direitos humanos.

Para o povo negro torna-se paradoxal lutar contra o racismo sem lutar contra o capitalismo e seus mecanismo de opressão.

O livro “Ideologia e Negritude na Luta Antirracista”, mostra a necessidade da simbiose política entre ideologia e negritude como componente essencial na construção da luta antirracista em nosso país erigido sob a égide do racismo estrutural e institucional. A publicação traz inúmeras inquietações e desafios, enquanto se propõe ao conjunto da militância antirracista como um subsídio adicional e reflexivo, para que possamos construir através do entrelaçamento diaspórico um Brasil verdadeiramente diverso, igualitário e sem racismo, para as gerações atuais e para negras e negros do porvir.

 

 

segunda-feira, 19 de junho de 2023

Memórias de um Velho Griot


Antônio Gramsci disse que entre o mundo velho que está morrendo e antes do novo que está por nascer há um interregno, sendo que nesse período é quando surgem os monstros.
Para nós negros, depois que passamos a ter contato com a raça branca, sempre foi e sempre será um interregno, pois, desde então, após o início das monstruosidades perpetradas pelos europeus ao povo negro, primeiramente em África e depois na diáspora, só nos foi concedido conhecer o terror, o sofrimento, a escravidão e a morte.
Os brancos chegaram em até nós em seus barcos grandes, com uma cruz vermelha estampada nas velas brancas, a cruz da Ordem de Cristo. Foram gentilmente recebidos apesar da desconfiança e do assombro, com alegria e festa. Assim que chegaram nos mostraram um livro onde dizia estar depositada a salvação da humanidade. Não entendíamos bem do que o livro iria nos salvar e porquê precisávamos de salvação. Além do livro nos mostraram um homem magro pregado em uma cruz de madeira, um carpinteiro disseram, afirmando de forma solene que aquele homem era filho de um deus que criou o universo. Mas foi determinado por seu pai que morresse daquela maneira dolorosa para nos salvar. Mais uma vez não entendíamos do quê e porquê ele iria querer nos salvar.
Os brancos vestiram nossos corpos nus dizendo que viver na natureza da mesma forma como viemos ao mundo era pecado. Mais uma vez não entendíamos o porquê das roupas desconfortáveis e quentes e o que era pecado. Diziam isso enquanto rezavam para o seu deus, mas pegavam nossas mulheres à força e as obrigavam a fazer sexo com eles.
Falavam de dinheiro e riquezas para nós que tínhamos tudo que precisávamos, pois a natureza nos era generosa e farta. Buscavam metais e pedras que diziam ser preciosas, que estavam no subsolo mas que para nós não tinham o mínimo valor.
Foram chegando cada vez mais e com mais frequência, sendo que agora com armas mortais que cuspiam fogo. Nos tomaram a terra, nos escravizaram, roubaram todo o nosso conhecimento milenar e nos atiraram em navios como escravos para trabalhar como cativos até a morte em um mundo distante depois do mar.
Durante mais de 300 anos retiraram de nosso continente os melhores corpos e as melhores mentes como seres humanos escravizados para construir o Novo Mundo. Utilizaram nossos corpos para realizar seus sonhos de riqueza, dominação, ambição e poder. Foram mais de 200 milhões de africanos entre colonizados, escravizados e mortos, tanto em África como na escravidão no Novo Mundo. Milhões de africanos perderam a vida nas gélidas, escuras e profundas águas do oceano atlântico. Levaram nosso povo de África para um destino assustador. Todos acorrentados e espremidos nos pérfidos navios negreiros. Esses mártires africanos serviram de alimento para os tubarões, que alteraram sua histórica rota milenar para seguir os navios negreiros, pois sabiam que haveria carne fresca dos corpos dos escravos que eram atirados ao mar, quando adoeciam ou morriam.
Destruíram nossas famílias e nosso modo de vida. Assumiram o controle dos nossos países e nos obrigaram a falar o idioma deles. Condenaram nossa espiritualidade, amaldiçoaram nossos deuses e nos obrigaram a ser cristãos. Assim passaram a nos brandindo a Bíblia em uma das mãos e nos açoitando com o chicote na outra. Os brancos então destruíram nossos sonhos, nossa ancestralidade e nossa cosmovisão. Tudo em nome do dinheiro, do vil metal, do capital e do poder. Em nome desse poder arrasaram a nossa amada mãe natureza que sempre nos embalou. Revolveram a terra, destruíram florestas e contaminaram nossos rios e lagos.
Aproveitaram-se de nossa ingenuidade e roubaram nossa sabedoria ancestral para reescreverem a história universal como se fosse deles e nos subjugar através dela com uma outra roupagem obsessiva e dominadora. Somos unbuntu, somos o todo no um e o um no todo. Somos coletivos, solidários e camaradas. Os brancos são pela competição, pelo individualismo e pelo enriquecimento a qualquer custo.
Dividiram nosso continente entre eles em uma mesa de comensais, como se fôssemos a iguaria principal do banquete. Pilharam nossas riquezas, nossos tesouros, que hoje estão nos museus europeus e pelo mundo afora. Disseram que nos civilizar era um fardo que o homem branco estava carregando pelo bem da história e da religião.
Usurparam nossas identidades, mudaram nossos nomes, alteraram nossas fronteiras, venderam nossos jovens e crianças como escravos, nos consideraram seres bestiais, bárbaros sem alma, com o apoio do cristianismo e dos intelectuais mercantilistas.
Os brancos destruíram nosso milenar modo de vida africano. Arrasou com nossa autoestima, nos fez nos considerarmos feios esteticamente, bruxos espiritualmente, beócios filosoficamente e idiotas cotidianamente. Os brancos fizeram ao povo africano todo o mal que pode ser feito contra um continente e seu povo. Cometeram o crime de lesa humanidade que conjugou invasão, colonialismo, genocídio e escravidão.
Estamos em pleno século XXI e o mundo passa por transformações incríveis onde a ciência através da tecnologia saiu do planeta e viaja em sondas espaciais entre as estrelas. O truste financeiro global do capitalismo levou à derrocada todos os sistemas políticos de orientação socialista com a queda do Muro de Berlim. O modelo neoliberal se tornou hegemônico em escala planetária e as grandes corporações econômicas globais passaram a ditar as normas de conduta da sociedade contemporânea controlando mídias, governos e parlamentos.
Apesar dos formidáveis avanços em todos os campos da ciência, a situação do continente africano e dos afrodescendentes da diáspora global continua tão precária e desesperadora como no século XVIII. Destarte os avanços sociais como o fim da escravidão humana e do colonialismo, o sistema capitalista continua mantendo sua histórica opressão sobre os povos e países negros. Os efeitos produzidos pelos mais de 300 anos de escravidão e colonialismo no Novo Mundo e depois no continente africano, criaram chagas históricas que teimam em não cicatrizar.
A condição de miserabilidade que o colonialismo europeu deixou em África com o fim do processo colonial e as condições sub-humanas delegadas aos negros da afrodiáspora confirmam que o capitalismo utilizou o continente e o povo negro para transformação e enriquecimento de uma Europa outrora pobre, bárbara e inculta.
Os povos negros foram mantidos à margem do processo de desenvolvimento civilizatório durante todo esse tempo, sendo-lhes negado cidadania, educação, cultura, lazer e saúde de qualidade. Para continuar com o projeto de opressão sem escravidão oficial, confinaram a população negra em territórios precarizados dito favelas, sem qualidade de vida e sanitização. Ao relegar negros e negras escravizados em grandes sistemas de plantations durante centenas de anos, criou uma massa de milhões de negros analfabetos que após a abolição da escravidão se viram desempregados nas metrópoles dos países por falta de programas de qualificação profissional e inserção social. O projeto governamental de embranquecimento da população brasileira culminou com a vinda de imigrantes europeus enquanto que os negros que erigiram a nação foram relegados à margem da sociedade brasileira.
A partir de então, apesar de libertos mas não livres, os negros passaram então a ser perseguidos pela polícia e ser vítimas indefesas do racismo estrutural e do racismo ambiental. O capitalismo legou aos negros uma cidadania de restolhos, o subemprego, a humilhação, o cárcere, a miséria, enfim, a sub cidadania eterna.
O processo político atual através das organizações negras da sociedade civil exige reparações históricas, econômicas e sociais urgentes, que devem se materializar através de compensação financeira ao continente africano por um fundo financeiro global composto pelos países que se beneficiaram e enriqueceram com o colonialismo e a escravidão.
Por um outro lado as reparações devem também se materializar por meios de programas de inclusão social e econômica dos povos da afrodiáspora geridos pelo Fórum Permanente de Afrodescendentes da ONU, pelos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável também da ONU e por suas agências como Unicef, UNESCO e Habitat, entre outras. Ainda dentro do sistema das Nações Unidas os países membros devem se comprometer com a implantação das recomendações do Plano de Ação da Conferência Mundial contra o Racismo, realizada na cidade de Durban na África do Sul em 2001, além de se comprometer com documentos similares exarados no âmbito da OEA, como no caso de países membros das Américas e Caribe, onde a escravidão de africanos foi mais intensa e predatória.
Aqui despeço-me de vocês. Sim, despeço-me em desalento com a natureza humana. O dom da vida é o diamante mais brilhante da Criação. Seu brilho só pode ser mantido através do amor. O amor é o combustível que o universo nos dotou para que pudéssemos saborear esse breve instante mágico de nossa passagem por este planeta tão lindo e vivo. Porém existem outros sentimentos plúmbeos que insistem em tornar o brilho da aura humana difuso.
A Criação nos dotou de muitos dons, entre eles poder desenvolver a ciência, a tecnologia, desvendar os segredos das florestas para produzirmos medicamentos que curem nossas moléstias e dores. Disponibilizou o conhecimento de que o amor, a união e a solidariedade são fundamentais para que sejamos felizes. Porém, também nos dotou com a ambição, com a avareza e com sentimentos de posse que somente servem para nos destruir.
Não é concebível que um povo se declare civilizado quando seu enriquecimento se deu através da dominação e escravidão de outros povos. A lição que a energia universal nos ensina é que o essencial é invisível, que o poder não pode ser visto ou tocado e que nossa capacidade intelectual é absolutamente ilimitada perante a grandiosidade universal.
Somos seres interestelares, somos compostos por elementos não existentes na Terra, forjados em processos de fusão nuclear no interior das estrelas. Somos poeira de estrelas, por isso devemos brilhar, para iluminar a escuridão dos espíritos das pessoas de má vontade. Nossa missão é semear e espalhar o amor.
Estou cansado e minha caminhada aqui no planeta está chegando ao fim. Peço aos que ficam que procurem viver em
 harmonia, que pequenas diferenças sirvam para nos juntar e nos elevar e nunca nos separar. Que a tolerância e o respeito com o outro que pense de maneira diferente sejam praticados, pois, em breve, nos próximos 100 anos, todos seremos cinzas e ossos e nada restará de nossa prepotência e arrogância. Na nova dimensão não precisaremos de nada material e tudo que acumulamos aqui nesta vida não poderemos transportar para onde iremos. Não levaremos nada desse planeta a não ser o resultado do amor que semeamos e que depois de partirmos se transformará em lindas flores chamadas saudades.
Que todas as pessoas possam viver em paz e harmonia. Que todas as etnias possam celebrar o grande momento da vida. Que todas as pessoas possam viver com dignidade, sem fome, sem miséria e sem preconceito. Somos todos poeira das mesmas estrelas, que tal brilharmos todos juntos!

sábado, 17 de junho de 2023

O Negro e o Burguês Branco em Crise

Alguns brancos desconhecem ou fingem desconhecer que o real motivo do seu próprio fracasso na sociedade contemporânea, nada mais é que a extensão do fracasso do sonho capitalista vendido pelos EUA desde os anos 50. O sonho americano foi o canto de sereia que os governos estadunidenses venderam como propaganda política para as sociedades da periferia das economias centrais do capitalismo. O verdadeiro motivo escondia-se atrás de um biombo conturbado denominado Guerra Fria, onde Capitalismo e Socialismo disputavam ferozmente o alinhamento político desses países em desenvolvimento.
Nosso bravo cidadão branco, brasileiro, encantado com o canto de sereia do capitalismo, cresceu acreditando que o céu seria o limite. Sempre acreditou que bastava seguir a doutrina libertadora do grande irmão do norte, com suas metodologiaa de administração e gestão desenvolvidas por Adam Smith, Henri Ford, Peter Ducker, Steve Jobs e Bill Gates entre outros doutrinadores e empreendedores do sonho americano. 
Aprender, seguir e praticar esses conceitos, seria a base necessária suficiente que pudesse erigir e concretizar seu sucesso pessoal e profissional.
Como todo processo autofágico, o capitalismo se desenvolve e ao mesmo tempo vai se destruindo. A avidez insaciável por poder e lucro infinito faz a ciência desenvolver tecnologias cada vez mais sofisticadas, que se constituem como verdadeiros interditos para as pequenas e médias empresas por conta de seu elevado custo. Sendo assim, o sistema capitalista vai acumulando cada vez mais poder político e financeiro nas grandes corporações multinacionais, enquanto sufoca de maneira inexorável o pequeno empreendedor que fenece sob os grilhões insensíveis do mercado financeiro.
Como se envergonha e não pode sentir orgulho do próprio fracasso, o cidadão positivista branco e conservador de meia-idade, naufraga em seus próprios sonhos de enriquecimento. Precisa desesperadamente encontrar alguém responsável pelo seu infortúnio.
Oriundo da filosofia da branquitude, onde a raça branca, o ser branco é o padrão universal de sucesso, eficácia e poder, o bravo cidadão branco já agora um náufrago no mar do desespero, encontra consolo nos ecos irradiados pelo extremismo político. 
O discurso extremista afaga seu ego erodido, consolando suas quimeras e sonhos de restauração social. O bravo caucasiano abraça então a causa que promete lhe devolver os dias de bonança e glória de sua pátria, revigorando a economia do país, resgatando os bons costumes, valorizando o militarismo e lutando incansavelmente contra o grande inimigo da pátria e da família que é o famigerado comunismo.
O cidadão branco de meia idade entra na segunda onda de sonhos impossíveis. O primeiro foi a possibilidade de se tornar milionário através das leis do mercado com o capitalismo, missão na qual fracassou vigorosamente . Agora com a vida em frangalhos tenta restaurar sua vida desagregada navegando nas águas turbulentas e frívolas do nazifascismo. 
A virada de chave deu um nó na cabeça do exaurido homem branco. Ele agora deixa de ser somente um privilegiado na sociedade capitalista eurocêntrica, para se tornar um guerreiro militante contra os representantes da etnia negra e das minorias. O fracasso de sua vida não foi decorrente de suas crenças vãs e de um modo temerário de gestão pessoal e profissional. Mas sim pelo fato do povo negro periférico viver às custas, segundo ele, das políticas assistencialista do estado, que novamente segundo ele, não deveria dar o peixe e sim ensinar a pescar. Logo ele que quando nasceu recebeu um barco novinho em folha, modernos equipamentos de pesca, professor particular da arte de pescar, um lago particular herdado de seus pais repletos de peixes e a venda dos nesmos garantida para o abastecimento dos supermercados de sua família.
A crise endêmica do capitalismo contemporâneo interrompeu o ciclo virtuoso de acumulação de capital da classe média, nicho referencial da branquitude. Processos modernos como a automação e o fenômeno da rede mundial de computadores, a Internet, transformou o parquinho dos burgueses em uma terrível arena competitiva. Antes o burguês explorava a humilde costureira negra da comunidade que costurava roupas destinadas a classe média. Agora as ex-madames residentes nas regiões privilegiadas das cidades, compram suas roupas nas gigantes do e-commerce como Shoppe, Shein e Ali Babá. O burguês que antes vivia no fausto da exploração da força de trabalho da massa negra, viu seu negócio ruir por conta da concorrência "desleal" dos “malditos amarelos”.
 Enquanto os chineses se matavam  de trabalhar em condições sub humanas nas pastelarias da cidade,  estava tudo bem, tudo estava em seu lugar. Mas assim como os negros, os chineses comunistas são responsáveis pelo fracasso do branco burguês.
Negros e amarelos são agora os inimigos viscerais do neofascista inflamado pelo canto de sereia do nazifascismo extremista 
Os negros são um caso à parte de acordo com a ótica enviesada do branco burguês. Ele os considera doentes, preguiçosos e afeitos ã feitiçaria. São malandros e nunca valorizaram os estudos insiste. Os negros no seu entendimento gostam mesmo é de samba, futebol e cachaça. O pobre burguês só consegue enxergar o mundo de acordo com o que conhece e geralmente seu conhecimento é bastante limitado. Para ele os 350 anos de escravidão que ocorreram no Brasil faz parte de um passado que há uito se perdeu nas brumas do tempo. Defende que com o fim da escravidão as chances se tornaram iguais para todos e os que se empenharam conseguiram se estabelecer na sociedade. 
Não é incomum que se ouça ressaltar o esforço de seus antepassados que vieram da Europa fazer a vida no Brasil. Narra com orgulho as dificuldades que seus bisavós enfrentaram no passado quando aqui aportaram com uma mala surrada lotada de esperanças.
O burguês não consegue refletir sobre as condições de chegada dos bisavós dos negros de sua mesma idade. Chegaram acorrentados, seminus, considerados sem alma, expostos em praça pública para serem vendidos em leilões como gado. 
O burguês branco oculta a divergência étnica que ocorreu entre sua família e a família do negro de sua idade no passado. Ele esquece, ou finge esquecer, de dizer que seus antepassados europeus receberam terras e insumos agrícolas subsidiados do governo brasileiro dentro de um processo político governamental de branqueamento da raça brasileira. Também não cita que seus antepassados compraram no mercado negreiro os antepassados do homem negro da sua idade atual e que os fizeram trabalhar gratuitamente até à morte como escravos e assim produzir a riqueza dos seus antepassados brancos.
O burguês branco narra com orgulho a saga de seus antepassados e o projeto de estudos de toda a sua família, mas não tem coragem de dizer que seus antepassados não permitiram que os negros escravizados de propriedade de sua família pudessem estudar,  gerando   inúmeras gerações de populações negras não alfabetizadas, completamente apartadas do conhecimento acadêmico e por assim ser tornaram-se absolutamente vulneráveis. 
A enorme perfídia epistemológica gerou as imensas assimetrias raciais e sociais que hoje incidem sobre a população negra brasileira travestidas de nornaludade pelo imanente racismo estrutural.
Retornando ao nosso burguês branco neofascista, ele culpa tudo e todos pelo seu ocaso existencial. Os negros, os chineses, os comunistas, humanistas, os candomblecistas as feministas e se puder até os sambistas por seu retumbante fracasso financeiro e social. Envergonhado e necessitando mostrar para a família que possui alguma utilidade enquanto cidadão, torna-se um quixote moderno a declarar um patriotismo distópico inserido no conjunto de movimentos sociais extremistas. Combate firmemente qualquer iniciativa progressista e democrática oriunda da sociedade, investindo contra elas apoplético lança em punho, como o velho personagem de Cervantes investindo contra seus moinhos de vento.
Com as lufadas do nazifascismo sendo sopradas através da Internet, junta-se a milhares de outros iguais e passa a desfraldar um movimento extremista com viés nazifascista, positivista, falso patriótico e religioso. Quando declara com ardor o compromisso com os símbolos nacionais, assim como com os ícones sagrados, rejeita o marco jurídico soberano da Suprema Corte, pregando abertamente a necessidade de um golpe de estado, instando a emulação das forças armadas através de uma intervenção militar direta com o fechamento do Congresso Nacional e o fim das garantias constitucionais democráticas.
Para garantir a manutenção do encarceramento em massa e o genocídio da juventude negra, defende a aplicação de instrumentos inconstitucionais pelos órgãos policiais como política de repressão de estado e a eliminação física pura e simples da etnia negra. Acredita que a ação da necropolítica governamental seja a panacéia para o fim da violência e de todos os males que grassam na sociedade. Imputa aos negros o estado de violência social mas não compreende que está dirigindo na estrada da vida olhando somente através do parabrisa, esquecendo-se de observar o passado, ou seja, olhar também pelo retrovisor.
Quem criou o ressentimento no povo negro foi o branco. Quem esmagou o sonho dos negros foram os brancos. Quem humilhou, torturou, estuprou, escravizou e matou o negro foi o branco. Tantas mortes nos navios negreiros, tantas mortes nas plantações, no eito, tanta morte nos quilombos e em todos os lugares, enfim, todos os infirtúnios infligidos ao povo negro desde o século XV até hoje, são responsabilidade direta dos brancos.
A história do negro no Brasil tem mais tempo de escravidão que de liberdade. O destino do negro no Brasil sempre esteve ligado com a morte por execução e por desesperança. O viver do negro no Brasil sempre significou humilhação, encarceramento e genocídio.
A presença do negro no Brasil é eivada de desconfortos e desconfianças. Ser negro no Brasil significa existir com um atestado natural de eterna burla de civilidade. Significa que a vítima histórica que deveria passar por reparação, sofre sim preconceito e opressão. 
Ser negro no Brasil é aceitar o paradigma naturalizado do branco protagonista, do branco vencedor, aquele que desenha e escreve a história. Quem se levanta contra essa matriz eurocêntrica com seus proselitismos absurdos é taxado de racista só contrário. É a mesma coisa que a pessoa debilitada transfundir seu sangue para o sadio.
Nesses 523 anos de Brasil, passamos mais tempo de escravidão do que de liberdade. Somente no ano de 2276 os negros brasileiros completarão o mesmo tempo em liberdade que o mesmo tempo passado sob a escravidão. Até entao estremos perdendo feio para a escravidão.
O burguês branco não pensa nessas coisas ridículas segundo sua ótica. Para ele o discurso por reparações e antirracista é pensamento de negro derrotado, ou seja, na verdade considera tudo isso um grande mimimi. 
Quem sofre discriminação é o negro, quem trabalha nos piores empregos é o negro, que estuda nas piores escolas e é atendido nos piores hospitais é o negro. Quem é parado pela polícia é o negro, quem morre nas favelas é o negro, quem chora seus mortos pela violência são os negros.
O branco criou o negro triste, o negro miserável e o negro revoltado. Ninguém nasce para ser assim. Ninguém merece um destino tão cruel, ninguém pode ficar impune diante de tanto pecado, tanta perversão. Se há um Deus e certamente existem deuses no Orum nos aguardando e professando a justiça divina, esses pecados da branquitude não passarão incólumes, jamais serão perdoados. Serão sim cobrados e a paga será terrível, pois nunca se sofreu tanto por tão pouco. Todo esse sofrimento que perpassa os séculos, foi criado para construir a vida de conforto e privilégios do branco burguês sobre os escombros antropológicos da alma negra 

sexta-feira, 16 de junho de 2023

Racismo Ambiental

"A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer.Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece” (Antonio Gramsci)

 Racismo ambiental é um termo cunhado em 1981 pelo líder estadunidense de direitos civis Dr. Benjamin Franklin Chavis Jr., que foi assessor de Martin Luther King Jr. Chavis. No final da década de 1970, já ordenado pastor, dirigia a Comissão pela Justiça Racial da Igreja Unida de Cristo em Warren County, Carolina do Norte. Em 1987 Chavis publicou o livro “Rejeitos Tóxicos e Raça nos Estados Unidos da América”, no qual evidenciava a amplitude da questão para as comunidades negras de todo o país.

O ativista definiu a expressão racismo ambiental ao pesquisar de perto a o quanto a população negra dos EUA estava sendo exposta a resíduos tóxicos. O conceito adquiriu força nos Estados Unidos dentro do contexto das manifestações raciais contra injustiças ambientais em territórios negros.

Chavis Jr. disse que o racismo ambiental é a discriminação racial na elaboração de políticas ambientais, na aplicação de regulamentos e leis, e no direcionamento deliberado de comunidades negras para espaços contíguos às instalações de lixo tóxico, com risco de vida para as comunidades afrodescendentes e a exclusão de negros da liderança dos movimentos ecológicos.

Ao excluir e afastar os negros da elaboração de políticas e movimentos ambientais, o sistema capitalista faz a opção por privilegiar outros grupos étnicos de raiz caucasiana. Ao aplicar o sistema de seleção dirigida, entende que a etnia negra não compreende um grupo humano que deva ser protegido, como sempre definiu o colonialismo, o capitalismo e a globalização. O sistema precisa que esses contingentes humanos ocupem esses territórios precarizados, pois ali está a mão de obra necessária para trabalhar nas plantas industriais poluentes que operam nos espaços adjacentes às suas residências.

As comunidades impactadas pelo racismo ambiental são compostas majoritariamente por população negra, que historicamente sempre foi preterida nos projetos nacionais de educação. O processo de desemprego em massa trazido pelos ventos da globalização com suas políticas neoliberais e flexibilizadoras, causou um verdadeiro tsunami na organização sindical brasileira a partir dos anos 80. Com o avanço de tecnologias industriais como a automação, por exemplo, as oportunidades de trabalho formal nos parques fabris está rareando cada vez mais e por conseguinte as exigências dos trabalhadores por melhores condições de trabalho também diminuíram, destarte o esforço de suas representações como centrais sindicais e seus sindicatos de base. O movimento sindical desde então vive em constante crise existencial, mergulhado em um profundo declínio temporal, tendo perdido parte da interlocução com as bases devido à dificuldade de comunicação entre os antigos socialistas da era analógica e os novos trabalhadores nativos da novíssima geração digital. Sobrevivendo entre as mais diversas dialéticas contemporâneas e enfraquecido cada vez pela política conservadora do Congresso Nacional, do Judiciário e pelas instituições patronais com suas agressivas pautas de reivindicações, o sindicalismo tornou-se um gigante com pés de barro. 

Com o enfraquecimento dos anseios trabalhistas da massa trabalhadora, encontramos a população negra sofrendo as ações dos vetores poluidores nas plantas industriais instaladas no entorno das comunidades negras.  Essas indústrias poluidoras possuem relação direta com a saúde degredada dos seus trabalhadores e dos seus impactos nessas comunidades. A população negra que sofre sob os impactos do racismo ambiental é tornada duplamente invisível pelo sistema capitalista na medida em que é ocultada enquanto comunidade e como massa trabalhadora.

O sociólogo estadunidense Robert Bullard estendeu o conceito de racismo ambiental ao referir-se a qualquer política, prática ou diretiva, que atue negativamente a diversos grupos ou comunidades baseados em sua origem ou cor da pele. Bullard escreveu um livro muito importante acerca da justiça ambiental denominado “The Legacy of American Apartheid and Environmental Racism (O Legado do Apartheid Americano e do Racismo Ambiental). O racismo ambiental foi e continua sendo objeto de vários estudos, sendo que há uma notada convergência que aponta para situações comuns como territórios localizados onde os vetores ambientais são mais agressivos à vida humana, como lixões, aterros de lixo sanitários e controlados, depósitos de resíduos químicos, ausência de condições sanitárias mínimas como saneamento básico, emissões industriais descontroladas, indústrias químicas poluidoras, falta de ordenamento urbano e paisagístico, drenagem fluvial e controle de doenças contagiosas.

O racismo ambiental expõe de maneira desproporcional uma etnia ou classe social sendo uma forma de discriminação baseada em raça, etnia e classe social a riscos ambientais. Está para além da luta de classes e passou a ser também um problema de castas, como os “dalits” na Índia. No nosso caso podemos apontar as pessoas negras periféricas que são consideradas pela branquitude como casta inferior. Essas pessoas negras são as mais vulneráveis aos impactos ambientais e que realizam os diversos trabalhos infames que a branquitude renega exercer. A população negra desses espaços vive confinada em senzalas contemporâneas ou campos de concentração do capitalismo que são as favelas, território abandonado pelo estado que comparece cotidianamente com a polícia para causar medo e opressão ao moradores. A população negra das favelas é um contingente humano considerado como estoque étnico descartável, para o qual a discriminação e a injustiça ambiental estão irremediavelmente destinadas. O ambiente degradado afeta e adoece as pessoas que habitam esses espaços, caracterizando de maneira definitiva como uma ação racializada negativamente pelo estado.

A história mostra que o surgimento das primeiras favelas no Rio de Janeiro foi provocado pela ocupação das encostas dos morros do Centro do Rio pelos militares que combateram na Campanha de Canudos e pela massa de escravos liberta através da Lei Áurea. Com o fim da Campanha de Canudos (1896-1897) os soldados que retornaram esperavam receber casas para morar que foram prometidas pelo governo. Como a promessa não foi cumprida, os soldados que se abrigavam temporariamente no entorno do Ministério da Guerra ao lado da Central do Brasil não tiveram outra alternativa a não ser juntar madeiras que coletaram pela cidade e construírem seus barracos no Morro da Providência, que já abrigava os que foram defenestrados dos cortiços derrubados pelo Prefeito Pereira Passos.

Os negros e negras recém libertos não possuíam vínculos trabalhistas e tampouco recursos financeiros para adquirir um lote de terra para construir uma casa. A solução encontrada era ocupar um espaço de terra em uma das encostas dos morros da cidade e construir uma habitação frágil e improvisada com madeiras que eram coletadas pelos entulhos de lixo da cidade.

Por um outro lado, o Rio de Janeiro passava por um intenso processo de modernização denominado Bota Abaixo, onde o Prefeito Pereira Passos de maneira arbitrária determinou que mais de 2000 casas e cortiços da população negra e pobre fossem derrubados para dar lugar a construções de avenidas e bulevares modernos que imitavam a cidade de Paris.

Em seu livro “Planeta Favela” (Boitempo, 2006), o californiano Mike Davis apresenta um estudo baseado em dados da ONU que aponta para dados surpreendentes. O principal é que as favelas estão recebendo 25 milhões de novos habitantes por ano, número que passa a engrossar o contingente de pessoas que sofrem com o apartheid urbano. Segundo Davis, a neogentrificação faz parte do novo modelo de desenvolvimento hegemônico do capitalismo, que trata a humanidade como objeto e a utiliza de todas as maneiras possíveis em busca do lucro desenfreado. Enquanto uns são utilizados como peões em um tabuleiro de xadrez, outros são solenemente ignorados na fria qualidade de estoque étnico descartável.

O pesquisador Costa Pinto desenvolveu um estudo na década de 50 no Rio de Janeiro que apontou que em cada 100 habitantes da cidade 27 eram “de cor”, enquanto que nas favelas o indicador era invertido para 71 negros para cada 100 moradores. Costa Pintpo denominou esses dados como segregação étnica.  No ano de 2001 o pesquisador Ney Santos Oliveira utilizando dados da Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar – PNAD, do Morro do Estado em Niterói, revela que 27,4% dos moradores da comunidade são brancos enquanto que a população negra representa 72,6% dos moradores. Enquanto que nas áreas nobres de Niterói os dados se invertem com 72% de moradores brancos e 28% de moradores negros.

A elite gosta da favela, não para frequentar, mas por ser um território extremamente precarizado, sem os requisitos mínimos necessários de civilidade e controlado por poderosas facções criminosas que impõem suas próprias leis e submetem à comunidade um regime de terror e violência. É um território onde há submissão total dos moradores ao poder paralelo, que é o principal emulador das normas locais vigentes. Para a burguesia isso é bom, pois, seus serviçais recebem em seus próprios territórios as “lições de servilismo e obediência” necessárias para lidar com o poder enquanto que estabelece uma relação de alteridade social que diz a quem devem obedecer. A subserviência e o conformismo impostos pelo terror, mostra para aquela população de maioria negra que a rebelião não é uma possibilidade. Devem compreender e assimilar que seus destinos estão traçados de maneira inexorável e que não podem tentar se organizar e se rebelar para transformar a situação em que vivem.

A existência das favelas é fundamental para a sobrevivência das elites. A dicotomia civilizatória define para a população pobre daqueles territórios a impossibilidade de qualquer ascensão social que equipare suas vidas as de seus patrões. Por isso a inconformidade das elites com o sistema de cotas, pois o sistema democrático faz com que seus filho frequentem as mesmas salas das universidades que os filhos de seus empregados.

A favela é o marco civilizatório que define o fim da rebelião. Viver em seu seio com a violência cotidiana do narcotráfico e com a guerra cotidiana promovida pelos aparelhos de repressão de estado, ou seja, as polícias, mostra que todos estão entregues à própria sorte, sem amparo ou justiça social. Como se não bastasse o conjunto de assimetrias sociais, agregue-se ainda a discriminação pelo Código de Endereçamento Postal – CEP. O recurso que tem como objetivo facilitar a identificação de logradouros para o endereçamento postal, tornou-se um outro indicador que podemos chamar de Código de Envolvimento Perigoso, que serve como marcador social para os sistemas de avaliação de crédito, risco bancário e contratação pelos setores de RH das empresas e de contratação de trabalhadoras e trabalhadores domésticos por seus patrões. O racismo ambiental faz com que os trabalhadores que habitam territórios negros sejam obrigado a renegá-los  em busca de uma chance no mercado de trabalho. São levados a buscar endereço de parentes que moram em outras áreas da cidade para que possam apresentar um endereço “condizente”.

O filósofo camaronês Achile Mbembé desenvolveu o conceito de necropolítica, onde nesses territórios precarizados o estado através dos seus sistemas de repressão possui licença para matar.

As crianças desses territórios não são expostas somente à violência cotidiana das armas. Vivem ameaçadas pelos mais diversos vetores ambientais negativos que podem afetar aquele agrupamento humano. A convivência em habitações por vezes diminutas e insalubres, que abrigam várias pessoas, propícia a disseminação das mais diversas doenças contagiosas como por exemplo a tuberculose, que em certas comunidades do Rio de Janeiro está em situação alarmante.

A ausência de saneamento básico no Brasil no ano de 2019 sobrecarregou o SUS com quase 280 mil internações com 2.734 óbitos. A incidência de internações foi de 13,01 casos por 10 mil habitantes, gerando um custo adicional ao país de R$ 108 milhões no mesmo ano. O estudo Saneamento e Doenças de Veiculação Hídrica do Instituto Trata Brasil foi realizado a partir de dados públicos do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento – SNIS e DATASUS no portal do Ministério da Saúde. A região Nordeste, que em números gerais registrou mais internações, teve a maior despesa com esse tipo de internação - R$ 42,9 milhões. Na sequência, o Sudeste teve R$ 27,8 milhões com gastos desse tipo, contra R$ 15,2 milhões do Norte, R$ 11,7 milhões do Sul e R$ 10,2 milhões do Centro-Oeste.

A falta de acesso à água tratada e esgotamento sanitário ocasionou a morte de 907 pessoas no Sudeste, 331 no Sul, 214 no Norte, 213 no Centro-Oeste e mais de mil no Nordeste por doenças de veiculação hídrica, entre elas estão as diarreicas, dengue, leptospirose, esquistossomose e malária.

O estudo do Trata Brasil mostra que quase 35 milhões de pessoas vivem em locais sem acesso à água tratada, 100 milhões de pessoas sem acesso à coleta de esgoto e somente 49% dos esgotos no país são tratados.

Os indicadores do estudo demonstram que há um país partido. De uma lado o Brasil da Bélgica com elevados padrões civilizatórios e de outro o Brasil da Índia, abandonado pelo estado e submetido à crueldade dos seus governantes, que condenam à morte e ao sofrimento milhares de brasileiros todos os anos por conta de sua origem étnica e cor da pele.

Outros fatores concorrem para o aumento das doenças da população que habita essas áreas deletérias. As ruas sem calçamento despertam processos alérgicos em grande parte da comunidade que é obrigada a conviver coma a poeira tóxica cotidianamente durante anos a fio. Esses territórios são escolhidos pelas empresas para abrigarem suas plantas industriais com o falso argumento da geração de empregos. Óbvio que esses empregos gerados pelas plantas industriais alocadas nesses territórios obedecem a uma hierarquia laboral. Os melhores postos de trabalho não são destinados aos moradores dessas comunidades. Pelo contrário, a “inteligência” da empresa e seus cargos de direção está reservada para as pessoas da burguesia, que certamente não moram nessas comunidades. Para os habitantes desses territórios são reservadas as atividades insalubres, expostas a produtos químicos e manipulações perigosas. Outro fator que estimula as empresas a se estabelecerem no entorno das comunidades é a não necessidade de arcar com os custos patronais do auxílio transporte e da vantagem da proximidade. Todas essas espertezas são encobertas pelo manto de uma característica da modernidade empresarial denominada responsabilidade social. Mas como o capitalismo sofistica-se de maneira contínua, o termo mais usado atualmente é responsabilidade socioambiental.

A ironia é que essas empresas não consideram o ser humano como parte do ambiente. Destina-lhe atividades perigosas e insalubres, não colabora com a elevação de sanitização da comunidade, polui o meio ambiente, adoece as famílias e recebe da burguesia e do capitalismo o selo de ambientalmente e socialmente responsável.

Essas empresas costumam despejar seus efluentes tóxicos nós rios e riachos dessas comunidades, contaminando o lençol freático que é utilizado pela comunidade como fonte de abastecimento de água através de poços escavados no solo.

Enquanto sistema, o racismo ambiental opera em todas as direções possíveis e necessárias ao projeto de sofisticação e expansão do capitalismo. Ataca e depaupera o modo de vida dos povos originários com mega projetos de mineração e extração de madeiras. Marisqueiras e pescadores artesanais, quilombolas, ribeirinhos e agricultores familiares. Esses povos são condenados ao exílio em seus próprio país, são desterrados de seus territórios e agregados em reservas de confinamento cada vez menores. Com o tempo são alcançados pelas periferias das cidades e passam a conviver com lixões, fábricas poluidoras e efluentes tóxicos. No Mapa de Conflitos Causados pelo Racismo Ambiental (http://www.justicaambiental.org.br/_justicaambiental/pagina.php?id=1555) a grande parte das denúncias são referentes a conflitos fora dos centros urbanos, onde a mídia não está presente com sua cobertura jornalística.

Apesar de todos os óbices naturais, o Racismo Ambiental fez parte da pauta da 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP26), em Glasgow, Escócia em 2021. O Movimento Negro Brasileiro participou com uma comitiva bastante representativa. Organizações como a Coalizão Negra por Direitos que representa mais de 250 entidades negras, apresentaram as demandas da população negra que sofre com os impactos gerados pelo Racismo Ambiental. O Brasil possui mais de 3.100 comunidades quilombolas e somente 13% deste total foi regularizada pelo INCRA e órgãos estaduais de terras. O Brasil necessita titular 1490 processos de regularização fundiária de com unidades quilombolas até o ano de 2030.

A participação da delegação brasileira na conferência foi bastante expressiva. Na COP 27 em Cairo no Egito o debate foi mais focalizado nas mudanças climáticas, transição energética, desmatamento e frotas de veículos elétricos. De uma maneira geral há uma enorme preocupação com os ecossistemas, biomas e florestas. Porém, no que tange à proteção de populações negras impactadas pelo racismo ambiental o debate ainda é bastante tímido. O grande desafio que há pela frente será transportar para a agenda nacional o que foi acordado nas cúpulas do clima e no Acordo de Paris. As propostas acordadas e aceitas pelo Brasil, de uma maneira ou de outra, impactam positivamente no cotidiano e bem estar das populações negras que habitam os territórios mais precarizados de nosso país. 

A sociedade civil organizada enfrenta a questão do racismo ambiental em diferentes frentes de luta e disseminação de informações. Uma dessas referências é o Mapa de Conflitos envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, projeto da Fiocruz coordenado pela pesquisadora Tânia Pacheco.

No âmbito das Nações Unidas há o “Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos – Habitat. O programa apoia comunidades como Complexo do Alemão, Maré, Chapadão, Pedreira, Vila Kennedy, Lins, Penha, Cidade de Deus, Jacarezinho e Rocinha. Esses territórios são cobertos pelo “Programa Territórios Sociais”. O Fundo da ONU para a Infância, Unicef, também colabora nessa iniciativa que atua em 10 assentamentos informais. Os idosos, incluindo acamados e com problemas cardíacos, receberam cestas básicas, desinfetantes, sabonete líquido, desodorante, xampu e escovas de dentes com o apoio da Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro. A seleção do grupo foi baseada na recolha de dados produzidos pelo Programa Territórios Sociais.

Nesse processo, a ONU-Habitat Brasil ajudou as atividades em comunidades para garantir que a assistência chegasse aos mais pobres e fragilizados.

O panorama do racismo ambiental é um mosaico horroroso que marca de maneira profunda a desigualdade social brasileira. Enquanto os moradores desses espaços precarizados não assumirem o protagonismo político da gestão dos territórios impactados nada mudará. O que podemos assistir é a visita de políticos durante o período eleitoral procurando cooptar as lideranças comunitárias ou celebrar pactos sombrios com o poder paralelo local.

Para que o sol possa brilhar de maneira equânime para todos os habitantes das cidades brasileiras torna-se necessário que todos se envolvam no processo da nova e verdadeira abolição que é nosso devir, nós do povo negro.

Há uma inequívoca vontade por parte dos governos de que tudo deva permanecer como está. São criados mil projetos, ações sociais, intervenções locais mas tudo permanece como sempre esteve. É uma demonstração de anomia governamental misturada com ausência de força anímica, que estabeleça junto com essas comunidades um pacto de governança local e estudos que possam transformar esses espaços arquitetônicos caóticos em exemplos de urbanização e ordenação social.

Não se pode aceitar que essas cidades com tantas universidades e centros de pesquisas não possam ser provocadas pelo poder público para estabelecer parcerias com os habitantes desses territórios na elaboração de projetos de infraestrutura, com novos equipamentos sócias funcionais como escolas, creches, organizações sociais e postos de saúde eficientes. Com ruas amplas e sinalizadas e habitações dignas. Não se pode cobrar e tampouco pensar um mundo melhor quando que o que se oferece àquelas populações é o restolho social do banquete antropológico da branquitude.

 *Amauri Queiroz é Escritor e autor dos livros “Racismo Tropical”, “Se a Negritude Fosse um Banco o Racismo Não Existiria”, “A Revolta dos Blacks”

“Egotrip”, “Fallen Angel”e

“Ensaios Sobre o Fascismo Brasileiro”.

quinta-feira, 8 de junho de 2023

Ovelhas Negras de Pele Branca


Uma amiga querida de longa data me responde com certa ironia: “... parei de ler sua mensagem na metade do título”. Pensei com meus botões em que mundo eu estou habitando? Enviei o texto esperando uma manifestação positiva sobre uma reflexão que considerei importante e o que recebo de volta é a mais nítida comprovação que vivemos um outro tempo.
Carrego comigo milhares de anos de ancestralidade africana e outras centenas de anos de colonialismo e cativeiro infame. Como me calar? Como reduzir minhas palavras? Minha indignação? Meus gritos de rebelião?
Refletindo sobre ser um ser prolixo, entendo contrariado que a etnocentria venceu de goleada. Não há mais tempo para nossa cosmovisão africana se manifestar através de nossos risos largos e estridentes, nosso caminhar malemolente e antigravitacional, nossa comunicação interminável sobre os segredos do Orum e suas divindades. Sim, o capitalismo eurocêntrico venceu e ao vencer nos reduziu aos arremedos monossilábicos dos brancos. Lenta e silenciosamente o sistema vem construindo nossos arquétipos sob o manto da ordem caucasiana, onde sempre seremos seres periféricos e jamais estaremos participando da mesa principal como protagonistas. A mesa do banquete antropológico é restrita e para ocupá-la há que superar as réguas do gradiente da pigmentocracia. Muitos de nós se esforçam para atingí-la, procurando viver como os brancos, com a naturalidade dos brancos, com a mesma aflição dos brancos, mas sem as benesses e a tranquilidade que a vida oferece aos brancos, até porque o normal é ser branco.
Não devemos constituir um libelo contra os brancos. Mas sim um alerta em favor dos negros: vivam nosso jeito de ser e abandonem um mundo que nunca será de nosso. A cosmovisão eurocêntrica é antagónica à nossa. É radicalmente contra nosso modo de viver, além de ser historicamente opressora e aniquiladora de nossa cosmovisão.
Para o afrodescendente que consegue galgar alguns degraus a mais na pirâmide social é tentador compartilhar o mundo branco, receber algum reconhecimento e ser apontado como “diferente” da “massa negra”. É mais ou menos como ser a “ovelha branca” da imensa família que é nossa comunidade negra.
Adentrar no mundo branco sem marcar o caminho de volta com miolos de pão é uma operação muito arriscada. É um mundo com tecnologia, dinheiro, poder e muita fascinação. Mas ao mesmo tempo é um mundo de ilusão. O capitalismo atira iscas aos incautos que se materializam na forma de promessas de sucesso, riqueza e prosperidade. Engodos sutis que aos poucos vão se revelando inúteis devido a ausência de um sistema que ofereça educação pública de qualidade, assim como saúde pública universalizada que proteja a todos com eficiência. Finalmente para acabar com os sonhos emitidos pelos cantos de sereia do capitalismo que envolvem o povo negro, tem a grande barreira melanínica, que é o acesso às boas oportunidades no mercado de trabalho. Como há o interdito da educação de qualidade, o mercado de trabalho capitalista reage de maneira firme, naturalizando a meritocracia e trazendo para si através de sistemas de seleção endógenos e privilegiados, seus filhos diletos que são as pessoas brancas.
O grande desafio que o povo negro pode ou deve enfrentar será transformar o mundo em crise sem utilizar os nesmos cânones eurocêntricos que sempre permearam os processos ditos civilizatórios. A vocação anímica do eurocentrismo para a guerra, para a conquista, dominação e exploracao de territórios deve ser combatida com a filosofia e o modo de viver africano. A sabedoria africana é aquela que respeita a ancestralidade, preserva o planeta e principalmente o solidarismo através do bem comum, do modo coletivo, do compartilhamento de sonhos e experiências existenciais. Não se render ao caos do modo de viver capitalista deve ser um dos principais objetivos do nosso povo.
 Temos a obrigação de dar continuidade aos pressupostos históricos e ancestrais que nos foram legados pelos mais antigos. Apresentar possibilidades de caminhos para transições virtuosas que pavimentem o solo que será cruzado pelas gerações futuras de negras e negros.
O sistema capitalista eurocêntrico nos exaure cotidianamente para que nossa postura nos espaços criativos de reflexão e lazer nos entreguemos à preguiça e ao apagamento do inconformismo. Assim nos desviam de nossa missão primordial que sempre será a rebelião e a libertação de nosso povo. O apagamento da chama libertadora e do nosso poder palmarino de rebelião é a grande aposta do capitalismo eurocêntrico, que vitoriosa gera mais miséria, opressão, tristeza e dor.
O capitalismo fez a trucagem de trocar a senzala pela favela para não arcar com o custo da manutenção do sistema escravista Na verdade em sua eficiência maquiavélica terceirizou a escravidão dos negros para os próprios negros A verdadeira abolição ainda está por se cumprir e portanto, abolir a escravidão contemporânea que tanto nos oprime e nos mantém cativos em um moto continuo de miséria e doença, faz parte do nosso compromisso com Palmares e todos os que tombaram lutando pela liberdade.
A escravidão moderna nos faz correr insanos, sem parar para pensar, nos ensinou a não-ler, não-ouvir e não-pausar a vida. O correr obrigatório passou a ser motivo de orgulho, com isso deixa-se de refletir sobre o próprio motivo que faz correr, sobre como lutar contra o sistema que noz faz ficar assim. É um modelo de escravização cruel e eficiente, onde o cativo se volta contra seu igual em defesa do primado de seu próprio opressor.
Precisamos voltar o olhar para o continente africano e rever nossas convicções acerca de nossa ancestralidade e nosso modo vida dentro do sistema capitalista. Há tempo para que possamos ressurgir como uma fênix negra alçada das cinzas das piras eurocêntricas e assim celebrar a saga de Palmares, louvar Palmares, eternizar Palmares, ter orgulho e amor por Palmares
Vamos retomar o oceano, não temer o oceano, passar a amar novamente o oceano que tanta tristeza e medo causou aos nossos ancestrais. Vamor retomar o oceano com as velas enfunadas da restauração, porque navegar é preciso. Navegar e mudar o modo de viver no mundo capitalista. A humanidade está destruindo o planeta de todos para fomentar a riqueza de poucos. Estão destruindo mares, rios e floresras em troca de dinheiro, de capital. Os povos negros e indígenas nunca destruíram a mãe natureza como os brancos agora fazem com esta sanha predatória e antiespiritual
Não conseguir ler uma frase de um texto é tudo que o sistema capitalista quer de nós. Não ter paciência para ouvir um áudio de bom dia é uma excrescência que o sistema nos doutrina Estão nos adestrando para que Nossos laços afetivos estejam contidos em emojis e memes e isso basta na sociedade doentia do deus capital. Seremos robôs humanos em um mundo sem face e sem amor. Um mundo onde ler um.livro tornou-se um pecado contemporâneo porque a vida que gera valor agregado e orgulho é a vida corrida, pois a pessoa que corre se orgulha de estar se comportando segundo as regras do mundo adâmico que reprova a quem reflete e transforma em aflições o deleite do usurfruto do tempo do prazer.

quarta-feira, 7 de junho de 2023

A Bolha Luminosa das Crianças Negras

Toda criança negra, como a maioria das crianças, recebe o novelo mágico da vida e passa a tecê-lo amorosamente, transformando seus fios luminosos em brilhantes e esperançosas teias existenciais. Essas crianças não sabem que por um motivo qualquer vieram habitar um mundo perverso e segregador. Não conseguem vê-lo, pois estão envolvidas em seus devaneios fantásticos, tecendo de maneira lúdica e inocente a maravilhosa teia da vida.
Esses fios luminosos são lindos entrelaçamentos espirituais e quânticos, frutos de suas inocências e do ambiente de uma bolha superprotetora criada por suas famílias.
Na medida em que crescem, essas crianças negras vão deixando aos poucos a bolha luminosa que vai perdendo sua luminosidade. Perdem-na lentamente, como o escorrer do tempo na ampulheta, lento, contínuo, inexorável e infinito. A luminosidade da criança negra é como um graal que lhe é transmitido através da herança ancestral. São culturas e modos de vida poderosos que possuem cosmovisão própria e bastante particular. O correto é que deveriam estar sendo envolvidas por esta cosmovisão dentro da bolha luminosa, mas não é o que acontece.
A bolha luminosa flutua em um tecido que funciona como um grande atrator, onde toda sua energia é sugada inexoravelmente, quando nem a luz que a compõe consegue escapar da singularidade.
Ao perder sua luz para o grande atrator, a bolha causa um profundo pesar naquelas crianças negras, que sem a luminosidade ancestral, são impedidas de verem a si próprias, como são seus ancestrais e suas culturas. Todo esse cenário é envolvido por esse mundo difuso e assustador que o grande atrator proporciona.
O mundo que a criança negra consegue ver à sua volta é lastreado pelos dogmas etnocêntricos do eurocentrismo, que impregna e confunde sua cosmovisão, fazendo com que seu universo de desejos e representações lúdicas fique restrito ao imanente mosaico da branquitude.
Enquanto se desenvolvem em seus habituais cotidianos, vai ocorrendo um adensamento do imaginário albínico que compõe o ambiente cognitivo dessas crianças. O mundo de fantasia que vivenciam, passa a ser permeado por referenciais positivados pelo processo da branquitude como anjos brancos, Deus branco, santos brancos, príncipes e princesas nórdicas, reis rainhas eurocêntricos, heróis e heroínas despigmentados, afetos, bondades, ética, compromisso com a verdade e cidadania legitimada, tudo referenciado pela matriz anglo-ibérica.
As crianças negras são introduzidas lentamente no espaço externo periférico da bolha já então não-luminosa e começam a perceber que o mundo não é tão irradiante quanto lhes fizeram parecer. Através de um processo planejado e cruel a sociedade etnocêntrica entranha-se no espírito da criança negra, sussurrando em seus ouvidos que o quanto é lindo é ser branco, lindo é o branco. Os comerciais de TV, os filmes e outras representações e manifestações culturais sempre produzem a catarse anímica do prazer referenciada no caucasianismo. Não existe caixa-branca e sim caixa-preta, a ovelha desgarrada é a ovelha negra, passado triste é passado negro e assim como outras referências deletérias em relação ao grupo étnico ao qual a criança negra faz parte.
Mais que ser submetida aos processos das propostas de branqueamento da pele, pintar e alisar os cabelos, utilizar roupas e acessórios diferentes dos de sua cultura, repudiar e amaldiçoar as práticas e manifestações religiosas, a sofisticação da impregnação do eurocentrismo vai até ao “ser mais profundo” das crianças, ao âmago dessas crianças, retirando-lhes a ancestralidade, a cosmovisão africana, seus referenciais pluriétnicos e multiculturais e sua essência unbuntu.
Ao abandonar o devir unbuntu e o conjunto de valores ancestrais que as orientariam na afrodiáspora, a criança ou jovem negro, segrega ao limbo valores culturais e existenciais africanos como a força comunitária e a vocação coletiva. Deixam de lado o poder e a necessidade do solidarismo ancestral em prol da competição, trocam o espírito da compaixão pelo desejo de vingança, abandonam o fortalecimento do grupo pela solidão egoísta da individualidade, abandonam a chama primordial do “todos serem um” enquanto que ser um significa ser todos, a chama visceral unbubtu onde finalmente trocam o “nosso” pelo “meu” e o “conseguimos juntos” pelo “venci sozinho”, que é o supra sumo do poder capitalista, a política do eu sozinho. Ao propor esta política o capitalismo repete o velho axioma de dividir para controlar, para governar.
Submetidas a esses bombardeios albinos diários, as crianças negras em suas fragilidades cotidianas passam a sentir desamor por si próprias. São tomadas por sentimentos de inferioridade e de negação das belezas de seus estereótipo físicos e de suas interjeições naturais. O sistema é perverso e além de deter o poder da comunicação na sociedade, diz como deve ser o modelo comportamental da juventude através dos meios de comunicação de massa como novelas, minisséries e programas de variedades. Utiliza também os canais de Internet para espelhar o modo de vida pelo qual os jovens devem orientar seus comportamentos. Esses referenciais estarão sempre focados no eurocentrismo e na branquitude, pois fazem parte do conjunto estratégico de dominação do capitalismo. Assim, sem ter referenciais que os posicionem na sociedade em que estão inseridos, as crianças e a juventude negra se tornam ectoplasmas geracionais, onde estão onde não deveriam estar pois são o que não deveriam ser.
O processo de parir esse novo “cidadão cordial” pode ser descrito como a retirada silenciosa da alma, do espírito livre, da iluminação do protagonismo. Um processo que descaracteriza crianças e jovens negros de suas cosmovisões, de suas culturas e de suas ancestralidades. Portanto, podemos considerar que a estratégia de transformar desde sempre gerações de negras e negros genuínos em “falsos meios brancos”, deve ser considerado como um crime de lesa humanidade. Crime sim porque corta violentamente o cordão umbilical epistemológico, que fazia a ligação irrigada com seus mundos, seu atavismo e seu antepassados.
Ao engendrar o frívolo processo de “falso reposicionamento étnico”, com a aquiescência ingênua de grande parte da juventude negra, a branquitude fortalece o pacto capitalista de dominação e opressão, que orienta as relações sociais e econômicas do nefasto poder político, regente das relações sociais e econômicas do país desde o período colonial. O intento nada mais é que a preservação do sistema escravista imperial que mantém acesa a chama da égide do antigo mercantilismo, aperfeiçoado pela sofisticação do capitalismo contemporâneo. Há muito afastados da bolha luminosa perdida resta à juventude negra tentar encontrar sua ressignificação no mundo branco que a envolve, que dela desconfia e que sempre terá um dedo em riste lhe apontando e acusando de alguma conduta inoportuna ou irregular. Impondo-lhe margens e balizas do mundo branco, normas da branquitude, leis feitas para segregar e atitudes de acordo com os modos opressores do sistema capitalista eurocêntrico.
Resta aos jovens negros a saberia de seus gritos. Nas têmporas grisalhas correm os rios de sabedoria onde devem navegar. O conhecimento acumulado na adversidade e na compreensão de viver em um mundo hostil geraram sabedoria e filosofia cotidiana de como sobreviver compartilhando o planeta com seres tão destrutivos. A mensagem será sempre a cultura da paz. O racismo e o preconceito são retrovalores de povos sem cultura, sem espiritualidade e sem amor. A solução para nossa juventude negra é se empoderar no amor, na força da cultura, na ciência da afrodiáspora, no pensamento decolonial africano, em todas as formas de resistência da não-violência.
No Brasil morre um jovem negro a cada 23 minutos. São mortes violentas que não deveriam acontecer. Estamos perdendo milhões de cientistas, pesquisadores, atletas, filósofos para a violência do cotidiano. Essa violência é gerada pelo capitalismo, que estimula cada vez mais a competição, que pretende lucrar cada vez mais com menos investimentos, que coloca máquinas no lugar do ser humano como opção laborativa.
A luta contra o racismo está diretamente ligada à luta contra o capitalismo. Os dois sistemas são siameses e um irriga o outro de maneira contínua. O racismo necessita do poder financeiro do capitalismo para construir o arcabouço jurídico que mantenha a população negra acuada e sem acesso ao poder enquanto que o capitalismo necessita do racismo estrutural para garantir a estrutura do sistema e o fluxo financeira que alimenta seus lucros 1ue irrigam a capilarização institucional que garante sua própria sobrevivência.
As bolhas luminosas continuam nascendo, brilhando, iluminando e fenecendo cotidianamente. Nossas crianças negras continuam sofrendo ao sair das bolhas luminosas e mais ainda, com a decepção do apagamento de suas luzes. As luzes são a igualdade, a felicidade comum, os espaços de todos e a pontificação da democracia na diversidade.
Para que nossas crianças e jovens possam crescer de maneira saudável e consigam ousar existir sem as armaduras internas que das quais são dotadas ao abandonar de vez o refugo de suas bolhas antes luminosas, será necessário um investimento incansável na transmissão do letramento racial, na decolonialidade, na ancestralidade, na cultura e filosofia umbuntu e por fim na desconstrução de uma África deletéria que nos é internalizada que gera baixa auto-estima e a remoção dos óbices que promovem a fuga de referenciais atávicos.
O primeiro grande passo foi dado há 20 anos atrás com a promulgação da Lei 10.639/03 que determina o ensino da história do continente africano, da cultura afro-brasileira e dos grandes vultos negros de nossa história. Porém não é suficiente, apesar de ser importante. Há que se fazer um vigoroso investimento na formação de docentes no que tange ao cumprimento do marco jurídico da Lei 10.639/03 para além de sua aplicação pura e simples. Caminhado par e passo com a capacitação de docentes, urge o fortalecimento dos Núcleos de Estudos Afro-brasileira e Indígenas – NEABI, no ámboro dos estabelecimentos de ensino.
Outro ponto de inflexão no pensamento da metodologia de educação racializada no ambiente escolar é construir o debate sobre a produção do livro didático no país, que ocorre através do programa governamenral denominado Programa Nacional do Livro e Material Didático, que anualmente distribui 170 milhões de livros didáticos para cerca de 50 milhões de alunos de todas as escolas públicas do país.
A produção dos materiais e livros didáticos que servem de suporte aos alunos das escolas brasileiras foi entregue pelo Ministério da Educação a um conjunto de editoras privadas que são responsáveis pela contratação dos autores e da produção de todo o material. Para que a transmissão do conhecimento requerido pela Lei 10 639/03 possa ser efetivamente assegurado, seria necessário uma ampla consulta nacional nas redes da educação básica do país. Talvez a partir de então as bolhas luminosas possam voltar a iluminar a consciência de nossas crianças negras, nossos jovens negros, que merecem respeito a ter uma educação digna e verdadeira da qual possam se orgulhar.