DEPOIS DO GURUFIM EXISTE UM CÉU SÓ DE SAMBISTAS LÁ NO FUNDO DO NOSSO QUINTAL
Sambista não tem velório, tem mesmo é gurufim.
Gurufim é um ritual de celebração dos povos de origem africana, que celebram em
corpo presente a morte do representante de suas comunidades. O termo gurufim,
segundo Luis da Câmara Cascudo, é uma corruptela de ‘golfinho’, cetáceo que em
diversas culturas, conduz, faz a passagem dos espíritos dos mortos para uma
outra vida.
Segundo Luis Antônio Simas, aqui no Brasil é comum
na religiosidade dos bantos e iorubás a cerimônia do axexê, que é um rito, uma
comemoração, uma festa para a morte. Simas explica que a crendice popular diz
que a morte nunca leva somente uma pessoa. Na verdade gosta de levar três.
“Então o povo canta, bebe e brinca para enganar a morte”. É uma malandragem,
para que a morte não perceba que tem um morto sendo velado naquele local. Então
a morte ao observar a festa, não percebe o engodo, vai embora sem levar outras
pessoas.
A maior pesquisadora viva do samba, Marília
Trindade Barboza, diz que o maior gurufim que sem tem notícia foi o do sambista
Paulo da Portela, fundador da escola de samba cujo nome incorporou. As exéquias
aconteceram no ano de 1949 e infelizmente não puderam ser realizadas na sede da
escola de samba, pois, segundo Marília Barboza, a recém viúva não permitiu que
o corpo fosse velado na quadra da agremiação por conta de quizilas entre a
escola e seu falecido marido, fundador da instituição, coisas do samba. A
imprensa da época noticiou que 15 mil pessoas lotaram as ruas de Madureira para
acompanhar a passagem do funeral.
O gurufim foi na rua mesmo. O comércio cerrou as portas em respeito e
homenagem ao ilustre sambista. O povo cantava e bebia enquanto caminhava
acompanhando. Segundo Marília Barboza muita gente ganhou um bom dinheiro no
bicho ao apostar no milhar da sepultura, que por incrível que por mais incrível
que possa parecer, deu na cabeça. Mas gurufim que isto impossível, ser
encerrado com o milhar da sepultura dando na cabeça.
O memorável sambista Padeirinho da Mangueira também se referiu ao
gurufim em um de seus sambas, especificamente o “Linguagem do Morro”: “Briga de uns e outros/Dizem que é burburim/Velório no morro é
gurufim”.
Dona Neuma a grande dama do samba de Mangueira narrava que também fazia
parte do gurufim algumas brincadeiras: “A gente tirava a porta da sala principal e
deitava sobre os caixotes. Colocava o morto ali em cima rodeado de gente
sentada em bancos. Quando a cachaça comia solta, nego dormia e os outros
pintavam a cara dele com uma rolha queimada”
Luiz Antônio Simas diz que essas brincadeiras costumavam ter o mar e os peixes como tema, pois os golfinhos carregam a tradição de transportar as pessoas para outros mundos. Em uma delas o capitão perguntava: “Gurufim veio?” e em coro todos respondiam: “não, não veio” e perguntava novamente: “Baleia veio? “Não, não veio” respondiam, e então quem veio? E o grupo apontando para alguém: “olha a sardinha aqui”...e cada um era apelidado pelo nome de um animal marinho. A pessoa que era a sardinha então tinha que responder, e passar adiante. Quem não respondesse ao chamado, tinha que pagar uma prenda, como levar um tapa na mão, conhecido como “bolo”, explica Simas.
Velório no Morro” (Raul
Marques e Tancredo Silva)
A morte está presente no
cotidiano dos poetas do samba. Nelson Cavaquinho cantava: “...Depois que eu me chamar saudade/Não preciso de vaidade/Quero
preces e nada mais”, e “Quando eu passo/Perto das flores/Quase elas dizem assim: Vai
que amanhã enfeitaremos o seu fim”.
Então o poeta traz
essa epistemologia de um novo céu para abrigar a sua gente, os sambistas, o céu
dos sambistas. Não basta o gurufim, há que haver um céu especial.
Pois é amigos e
amigas, o samba sempre foi o coração cultural do povo. O samba hoje ficou menor
com a partida de Ubirany do Fundo de Quintal.
A trajetória do Fundo
de Quintal se mistura com a história do samba. Por ele passaram Almir Guineto,
Arlindo Cruz, Sombrinha, Walter 7 Cordas e Jorge Aragão entre outros bambas. E
vou dizer uma coisa, se falar em samba tem que falar neles e com muito
respeito. O samba não tinha tantã de mão e um dia Ubirany chegou com a
novidade. Os partideiros tomaram gosto pela peça e hoje é praticamente
impossível não ter o instrumento em uma boa roda de samba.
Ubirany sempre foi
joia rara, amigo leal, sambista de boa cepa, sorriso malandro, não dava bom dia
a cavalo nem entrava em bola dividida.
Unanimidade no mundo
do samba, deixa um vazio danado onde antes era só companheirismo, talento e
alegria.
A essa hora já chegou
no Céu dos Sambistas. Duvido que São Pedro não tenha criado um. Se não houvesse
criado, São Pedro certamente receberia a demanda de Paulo da Portela que com
certeza protocolou um requerimento solicitando a criação do espaço.
No Céu dos Sambistas
é diferente. A rapaziada fica de boas nas nuvens, tirando uns acordes para
mostrar pro São Cartola e realizando exercícios vocais.
No Céu dos Sambistas
a coisa toda não é tão rigorosa, Noel Rosa sempre fuma um escondido e Geraldo
Pereira sempre dá um jeito de tomar umas e outras com Nelson Cavaquinho,
Padeirinho só acompanha mas já parou.
Dona Neuma organiza
tudo e é quem manda de verdade no Céu dos Sambistas. Paga esporro pra geral e
enquadra todo mundo no fundo da quadra. Dona Zica também tem grande poder e dá
uma moral na feijoada de sábado que o Natal da Portela adora. O medo do pecado
da gula passa longe do Céu dos Sambistas. Lá rola Tripa Lombeira, Barriga de
Porco, Sarapatel, Rabada, Mocotó, Buchada de Bode e como ninguém é de ferro
sempre rola um prato leve como Angu à Baiana com chouriço.
No Céu dos Sambistas
não há como ter tristeza. Isso é com os ‘zé ruela’ que ficaram lá embaixo
reclamando da vida. Aquela coisa né, de vida eterna, não andar duro, tudo suave
nos conformes, chapéu panamá, sapato bicolor, camisa de seda, mulheres no
salto, não tem como não sair samba bom. Aí depois que os sambas ficam prontos
eles mandam os anjos do samba colocarem nas cabeças dos compositores e
compositoras da Terra, aqueles sambas danados de bom.
Se for um anjo
sambista meio preguiçoso, ele entrega o samba durante o sono do compositor, dá
menos trabalho assim. Se for uma anja daquelas guerreiras, sagazes, ela é como
uma luz que chega de repente com a rapidez de uma estrela cadente e zumpt!
Enfia o samba na criatura que tem que se arvorar em encontrar caneta e papel
nos lugares mais esdrúxulos e inimagináveis.
Ubirany já chegou no
Céu dos Sambistas. Imagine a alegria de Almir Guineto, que conseguiu segurar em
tempo, pelas asas, quem desceria para buscar o Arlindo Cruz, ainda não era
hora! Anjo apressado. Na verdade era um anjo estagiário. Mas conseguiram
reverter em parte o ‘mico’ do anjo. Tá uma alegria danada na turma do Cacique
de Ramos no Céu dos Sambistas. Beth Carvalho, a eterna Madrinha, Beto Sem
Braço, Guilherme de Brito e o povo das redondezas como Luisinho Drummond da
Imperatriz.
Ubirany sempre foi
considerado, pedra 90, ás de ouros, gente fina da melhor qualidade, fina
estampa. Nem precisou passar pela entrevista de acesso para saber se podia
entrar e ficar no Céu dos Sambistas, entrou direto, pois no ônibus do samba
Ubirany sempre andou na janela.
Está de boas no Céu
dos Sambistas. Luis Carlos da Vila acabou de compor um belo samba para sua
chegada. Quem está cantando é o Tantinho acompanhado por Mijinha e Elizeth
Cardoso.
Todos estão
perfilados, em trajes de gala, com as bandeiras e estandartes das agremiações.
Só o Jamelão que está resmungando da falação do povo. Mas está tudo muito
bonito, esmerado, preparado com carinho pela Dodô da Portela que acabou de
ralhar com o Delegado que estava conversando com Candeia e João Nogueira sobre
samba e futebol.
Todos engalanados
para receber Ubirany sob as bênçãos do Comandante em Chefe do Céu dos
Sambistas, Paulo da Portela. O samba está triste na Terra e há festa no Céu dos
Sambistas.
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