Postagem em destaque

Eu Negro

quarta-feira, 21 de abril de 2021

 

DEPOIS DO GURUFIM EXISTE UM CÉU SÓ DE SAMBISTAS LÁ NO FUNDO DO NOSSO QUINTAL


Sambista não tem velório, tem mesmo é gurufim. Gurufim é um ritual de celebração dos povos de origem africana, que celebram em corpo presente a morte do representante de suas comunidades. O termo gurufim, segundo Luis da Câmara Cascudo, é uma corruptela de ‘golfinho’, cetáceo que em diversas culturas, conduz, faz a passagem dos espíritos dos mortos para uma outra vida.

Segundo Luis Antônio Simas, aqui no Brasil é comum na religiosidade dos bantos e iorubás a cerimônia do axexê, que é um rito, uma comemoração, uma festa para a morte. Simas explica que a crendice popular diz que a morte nunca leva somente uma pessoa. Na verdade gosta de levar três. “Então o povo canta, bebe e brinca para enganar a morte”. É uma malandragem, para que a morte não perceba que tem um morto sendo velado naquele local. Então a morte ao observar a festa, não percebe o engodo, vai embora sem levar outras pessoas.

A maior pesquisadora viva do samba, Marília Trindade Barboza, diz que o maior gurufim que sem tem notícia foi o do sambista Paulo da Portela, fundador da escola de samba cujo nome incorporou. As exéquias aconteceram no ano de 1949 e infelizmente não puderam ser realizadas na sede da escola de samba, pois, segundo Marília Barboza, a recém viúva não permitiu que o corpo fosse velado na quadra da agremiação por conta de quizilas entre a escola e seu falecido marido, fundador da instituição, coisas do samba. A imprensa da época noticiou que 15 mil pessoas lotaram as ruas de Madureira para acompanhar a passagem do funeral.

O gurufim foi na rua mesmo. O comércio cerrou as portas em respeito e homenagem ao ilustre sambista. O povo cantava e bebia enquanto caminhava acompanhando. Segundo Marília Barboza muita gente ganhou um bom dinheiro no bicho ao apostar no milhar da sepultura, que por incrível que por mais incrível que possa parecer, deu na cabeça. Mas gurufim que isto impossível, ser encerrado com o milhar da sepultura dando na cabeça.

O memorável sambista Padeirinho da Mangueira também se referiu ao gurufim em um de seus sambas, especificamente o “Linguagem do Morro”: Briga de uns e outros/Dizem que é burburim/Velório no morro é gurufim”.

Dona Neuma a grande dama do samba de Mangueira narrava que também fazia parte do gurufim algumas brincadeiras: “A gente tirava a porta da sala principal e deitava sobre os caixotes. Colocava o morto ali em cima rodeado de gente sentada em bancos. Quando a cachaça comia solta, nego dormia e os outros pintavam a cara dele com uma rolha queimada”

Luiz Antônio Simas diz que essas brincadeiras costumavam ter o mar e os peixes como tema, pois os golfinhos carregam a tradição de transportar as pessoas para outros mundos. Em uma delas o capitão perguntava: “Gurufim veio?” e em coro todos respondiam: “não, não veio” e perguntava novamente: “Baleia veio? “Não, não veio” respondiam, e então quem veio? E o grupo apontando para alguém: “olha a sardinha aqui”...e cada um era apelidado pelo nome de um animal marinho.  A pessoa que era a sardinha então tinha que responder, e passar adiante. Quem não respondesse ao chamado, tinha que pagar uma prenda, como levar um tapa na mão, conhecido como “bolo”, explica Simas. 

Velório no Morro” (Raul Marques e Tancredo Silva)

 Lá no morro quando morre um sambista

É um dia de festa e ninguém protesta
As águas rolam a noite inteira
Pois sem brincadeira o velório não presta
Tem também um gurufim
Que no fim acaba sempre em sururu
Mas é gozado pra chuchu (…)
(...) Já encomendaram ao anjo Gabriel 
Um novo céu para dar abrigo a sua gente 
Que morre assim constantemente, de repente.

 

A morte está presente no cotidiano dos poetas do samba. Nelson Cavaquinho cantava:...Depois que eu me chamar saudade/Não preciso de vaidade/Quero preces e nada mais”, e Quando eu passo/Perto das flores/Quase elas dizem assim: Vai que amanhã enfeitaremos o seu fim”.

Então o poeta traz essa epistemologia de um novo céu para abrigar a sua gente, os sambistas, o céu dos sambistas. Não basta o gurufim, há que haver um céu especial.

Pois é amigos e amigas, o samba sempre foi o coração cultural do povo. O samba hoje ficou menor com a partida de Ubirany do Fundo de Quintal.

A trajetória do Fundo de Quintal se mistura com a história do samba. Por ele passaram Almir Guineto, Arlindo Cruz, Sombrinha, Walter 7 Cordas e Jorge Aragão entre outros bambas. E vou dizer uma coisa, se falar em samba tem que falar neles e com muito respeito. O samba não tinha tantã de mão e um dia Ubirany chegou com a novidade. Os partideiros tomaram gosto pela peça e hoje é praticamente impossível não ter o instrumento em uma boa roda de samba.

Ubirany sempre foi joia rara, amigo leal, sambista de boa cepa, sorriso malandro, não dava bom dia a cavalo nem entrava em bola dividida.

Unanimidade no mundo do samba, deixa um vazio danado onde antes era só companheirismo, talento e alegria.

A essa hora já chegou no Céu dos Sambistas. Duvido que São Pedro não tenha criado um. Se não houvesse criado, São Pedro certamente receberia a demanda de Paulo da Portela que com certeza protocolou um requerimento solicitando a criação do espaço.

No Céu dos Sambistas é diferente. A rapaziada fica de boas nas nuvens, tirando uns acordes para mostrar pro São Cartola e realizando exercícios vocais.

No Céu dos Sambistas a coisa toda não é tão rigorosa, Noel Rosa sempre fuma um escondido e Geraldo Pereira sempre dá um jeito de tomar umas e outras com Nelson Cavaquinho, Padeirinho só acompanha mas já parou.

Dona Neuma organiza tudo e é quem manda de verdade no Céu dos Sambistas. Paga esporro pra geral e enquadra todo mundo no fundo da quadra. Dona Zica também tem grande poder e dá uma moral na feijoada de sábado que o Natal da Portela adora. O medo do pecado da gula passa longe do Céu dos Sambistas. Lá rola Tripa Lombeira, Barriga de Porco, Sarapatel, Rabada, Mocotó, Buchada de Bode e como ninguém é de ferro sempre rola um prato leve como Angu à Baiana com chouriço.

No Céu dos Sambistas não há como ter tristeza. Isso é com os ‘zé ruela’ que ficaram lá embaixo reclamando da vida. Aquela coisa né, de vida eterna, não andar duro, tudo suave nos conformes, chapéu panamá, sapato bicolor, camisa de seda, mulheres no salto, não tem como não sair samba bom. Aí depois que os sambas ficam prontos eles mandam os anjos do samba colocarem nas cabeças dos compositores e compositoras da Terra, aqueles sambas danados de bom.

Se for um anjo sambista meio preguiçoso, ele entrega o samba durante o sono do compositor, dá menos trabalho assim. Se for uma anja daquelas guerreiras, sagazes, ela é como uma luz que chega de repente com a rapidez de uma estrela cadente e zumpt! Enfia o samba na criatura que tem que se arvorar em encontrar caneta e papel nos lugares mais esdrúxulos e inimagináveis.

Ubirany já chegou no Céu dos Sambistas. Imagine a alegria de Almir Guineto, que conseguiu segurar em tempo, pelas asas, quem desceria para buscar o Arlindo Cruz, ainda não era hora! Anjo apressado. Na verdade era um anjo estagiário. Mas conseguiram reverter em parte o ‘mico’ do anjo. Tá uma alegria danada na turma do Cacique de Ramos no Céu dos Sambistas. Beth Carvalho, a eterna Madrinha, Beto Sem Braço, Guilherme de Brito e o povo das redondezas como Luisinho Drummond da Imperatriz.

Ubirany sempre foi considerado, pedra 90, ás de ouros, gente fina da melhor qualidade, fina estampa. Nem precisou passar pela entrevista de acesso para saber se podia entrar e ficar no Céu dos Sambistas, entrou direto, pois no ônibus do samba Ubirany sempre andou na janela.

Está de boas no Céu dos Sambistas. Luis Carlos da Vila acabou de compor um belo samba para sua chegada. Quem está cantando é o Tantinho acompanhado por Mijinha e Elizeth Cardoso.

Todos estão perfilados, em trajes de gala, com as bandeiras e estandartes das agremiações. Só o Jamelão que está resmungando da falação do povo. Mas está tudo muito bonito, esmerado, preparado com carinho pela Dodô da Portela que acabou de ralhar com o Delegado que estava conversando com Candeia e João Nogueira sobre samba e futebol.

Todos engalanados para receber Ubirany sob as bênçãos do Comandante em Chefe do Céu dos Sambistas, Paulo da Portela. O samba está triste na Terra e há festa no Céu dos Sambistas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário