No início tudo era um grande
mistério. Havia um universo frio, gigantesco e insondável comandado por
Olodumaré que certo dia convocou Obatalá e lhe entregou o saco da criação,
determinando com isso, a tarefa de construir o Aiyê, um mundo rochoso e cheio
de oceanos, que a partir de então abrigaria os seres mortais, animais, humanos,
flora e toda a vida que pudesse haver nele.
Obatalá ficou feliz com a
missão e partiu sem fazer as oferendas devidas a Exú, o comunicador entre os
dois mundos. Exú ofendido, se vingou, produzindo um encantamento que fez
Obatalá sentir uma sede incontrolável. Obatalá então, muito sedento, furou o
tronco de um dendezeiro com seu paxorô, o cajado de estanho que o acompanha,
extraindo da árvore bastante vinho de palma que bebeu avidamente. Por conta
disso se embriagou e adormeceu profundamente.
Oduduwa pegou o saco da
criação confiado a Obatalá e denunciou a Olodumaré a grande irresponsabilidade
de Obatalá com a missão determinada. Foi incumbido então, ele próprio, de criar
o Aiyê, no ainda inexistente mundo dos humanos. O processo de criação teve
início e onde havia água ele despejou terra marrom que tirava do saco da
criação. Oduduwa retirou do saco da criação uma concha cheia de areia, para
logo após soltar uma galinha de pés de cinco dedos e uma pomba, que
imediatamente começaram a ciscar a areia para fora da concha, criando o que são
hoje os continentes com seus mais variados tipos de relevos. Enquanto isso
Obatalá despertava de seu sono profundo, se desculpando envergonhado com
Olodumaré. Como prêmio de consolação foi incumbido de criar a espécie humana,
modelando os seres humanos a partir do barro, fazendo com isso a ocupação do
Aiyê com seus primeiros habitantes. Cada ser humano criado deveria ser único, assim
jamais haveria um igual ao outro. Além das formas físicas ele transferiu aos
humanos que criou os diversos aspectos do seu próprio caráter.
Assim o mundo foi criado e
dessa maneira os animais e a espécie humana espalharam-se pelo mundo a partir
das terras dos reinos de Ifé e de Oyá.
O velho griot conta que um
dia o povo branco chegou vindo do outro lado do mar, com seus barcos e um livro
chamado Bíblia Sagrada. O livro que diziam ser a salvação da humanidade que
contava a história onde havia um grande e único deus branco, criador do céu e
da Terra, que entregou seu filho para ser crucificado em um madeiro em forma de
cruz, com o propósito de salvar a humanidade. Eles os brancos tinham o livro e os
negros tinham a terra. Os negros fecharam seus olhos para rezar e louvar o deus
branco, quando abriram os olhos depois de tanto rezar, os brancos tinham se
tornado os donos das terras e os negros ficaram com o livro.
Foram séculos de sofrimentos
em que o povo negro passou por terríveis martírios nas mãos dos brancos.
Guerras, perda das terras, apagamento da cosmovisão do sagrado africano e a
famigerada escravidão mercantil. Esse foi o pérfido legado deixado pelo homem
branco nas terras do povo negro, o Continente Africano.
Trazido para o Brasil como
escravizado, o povo negro perdeu tudo que lhe era mais sagrado: sua liberdade,
suas culturas, suas crenças e até suas línguas foram proibidas pelo branco
escravista. Mas no silêncio da senzala, nas festas dos quilombos e na rotina
extenuante do eito de trabalho, passava silenciosamente todos os fundamentos sagrados
transmitidos pelos orixás desde o início dos tempos.
Os navios trouxeram de
África junto com os escravizados os tambores africanos, responsáveis pela boa
comunicação dos trabalhos do Candomblé entre os dois mundos. Os tambores pariram
o samba, ritmo profano que produz a magia do encantamento entre corpo, alma e o
universo metafísico, transformando lágrimas de dor em diamantes iluminados e
cintilantes, dores em alegrias, desamores em amores e felicidades. Esse samba
que junto com o futebol e a cerveja, formam uma riquíssima trindade no mosaico da
cultura nacional, segue em frente empunhando o estandarte de resistência da
cultura brasileira diante dos ataques alienígenas anódinos e sem vida.
O samba esse menino
travesso, malandreado, veio no embalo do mar do sem fim, no sacolejo dos
vapores de Cachoeira, do Recôncavo Baiano, de Santo Amaro da Purificação, na
dança da umbigada angolana chamada semba. Esse samba do negro retinto, do
pé rachado, dos sem eira nem beira, quem diria, ganhou o mundo adentrando nos
salões da elite empertigada.
João Gilberto, um dos
pais da Bossa Nova, cantava que o samba havia nascido na Bahia. Pode ser, pois
a Bahia talvez seja a maior parideira da riqueza cultural brasileira. De
Salvador ao Recôncavo Baiano, de Ilhéus a Cachoeira, a Bahia de todos os deuses
sempre nos brindou com verdadeiras maravilhas culturais, como o Samba de Roda,
a Tropicália, o Maracatu, o Cinema Novo, a Timbalada, os Blocos Afros, os
famosos ilês de axé, além de grandes personalidades de nossa história e do
país.
O Candomblé baiano foi a
maior fonte de inspiração e contribuição para a formação da nossa brasilidade.
Os tambores Rum, Pi e Lê ditaram e comandam o ritmo primordial da sagrada
prática iorubana/angolana/brasileira. Seus elementos significantes foram os
pilares antropológicos que sustentaram a força da matriz africana em seu
entranhamento inapelável e definitivo na gênese da matriz indo-afro-ibérica,
que constituía até então, o delicado tule da identidade brasileira durante os
primórdios do período colonial.
A prática da religião
africana nos territórios colonizados era realizada de maneira bastante
discreta, visando burlar o esforço da empresa colonial e da Companhia de Jesus,
voltada para a conversão ao cristianismo dos africanos sequestrados em África e
escravizados no Brasil. Nos encontros clandestinos nas matas ou no silêncio da
senzala o exercício da religião era passado através dos tempos, como um
oráculo, tornando-se guardião imemorial do legado sagrado dos territórios
negros do Daomé, de Oyá, Sudão e do Benim.
No meio desse turbilhão
cultural fantástico por sua força atávica e driblando a adversidade histórica,
nosso samba foi dando seus primeiros passos, bem de mansinho, mamando nas tetas
generosas das iaôs, nos colos acolhedores das Ialaorixás, nas carícias de ogãs
e alabês, na feijoada do quintal de preto, nos gurufins, nas comidas de santo e
fundamentalmente no rufar dos tambores dos terreiros.
Os vapores saíam da Bahia
de Todos os Santos, do Recôncavo e do Cais de Salvador para o Rio de Janeiro,
trazendo em seu ventre a prenhez da mãe África, o jongo, o samba, a culinária,
a capoeira, as ervas santas, o poder da adivinhação das contas do Ifá, as
danças profanas e o canto mágico, que transformaram para sempre a cultura
brasileira.
O babalaô africano
conhecido como Bamboxé foi o primeiro a abrir uma casa de santo no Rio de
Janeiro. Com o advento da abolição da escravatura ele retornou para a África
compondo o contingente dos ‘Agudás’, que quer dizer em dialeto nagô, aqueles
que retornaram. Depois dele a casa de santo mais conhecida na região da Pequena
África foi a de João Alabá, cujas filhas de santo mudaram para sempre o
panorama da vida cultural carioca e do país. Entre suas filhas de santo mais
famosas podemos citar Tia Amélia, mãe de Donga, sambista que gravou o primeiro
samba no país, chamado de ‘Pelo Telefone’. Tia Bebiana, organizadora dos
desfiles de blocos e ranchos no Largo de São Domingo, Tia Perciliana, mãe de
João da Baiana e Tia Ciata a primeira dama do samba, a parideira do samba
carioca.
Tia Ciata é a grande
referência do samba no Rio de Janeiro. Os sambistas a consideram a grande
matriarca do samba carioca. Sua casa na Pequena África, no centro da cidade,
era o local de encontro dos autênticos e pioneiros sambistas do Rio de Janeiro,
o berço do samba carioca. Sua casa era frequentada por artistas e músicos de
boa cepa como Ataulfo Alves, Heitor dos Prazeres, Paulo da Portela, Cartola,
Carlos Cachaça, Natal da Portela, Zé com Fome, Silas de Oliveira, Pixinguinha,
Ismael, Bid, Marçal e a turma do Estácio. A turma do Estácio foi quem mudou o
ritmo do samba para a forma que é tocado até hoje nas baterias das escolas de
samba. Antes o samba que se dançava era um ritmo amaxixado, como podemos
constatar no primeiro samba gravado no Brasil por Donga, o famoso “Pelo
Telefone”. Muitos sambistas torcem o nariz para esse samba, dizendo que o mesmo
é um maxixe. Tia Ciata além de grande festeira, era uma Mãe de Santo respeitada
pelo povo do santo no centro do Rio de Janeiro. Sua fama correu chão, após ter
curado com suas ervas e unguentos uma ferida renitente na perna do presidente
do Brasil à época, Wenceslau Brás. Por esse motivo a polícia foi proibida de invadir
e terminar com a reunião de sambistas que acontecia em seu terreiro.
Nesse ambiente metafísico
e cultural o samba carioca deu seus primeiros passos. Acontecia logo após o
encerramento das celebrações e sessões do sagrado, quando havia um pausa
necessária para a organização do terreiro. Os frequentadores faziam um
intervalo de descanso para logo depois fazerem a conversão dos atabaques, antes
comprometidos com o sagrado, eram entregues felizes aos ritmos e cânticos
profanos, sendo surrados inclementes durante toda a noite por dedicados ogãs e
alabês, cumprindo seus relevantes papéis de manter a massa em alegria, quando
de suas couradas rugiam maxixes, sambas e polcas até o dia raiar. Além do
prazer de usufruir da própria riqueza musical e da alegria reinante, naquela
época não havia transportes durante a madrugada que levassem o pessoal de volta
para casa. Os frequentadores dos terreiros então aproveitavam que deveriam
aguardar o dia amanhecer para fazer a festa, cantar, dançar e se fartar da
“água que passarinho não bebe” “aquela que matou o guarda”. A casa de Tia Ciata
assistiu as transformações da música e do samba. A turma do Estácio, por
exemplo, ensaiava seus sambas defronte a uma escola de formação de normalistas
no Largo do Estácio, nas franjas da Pequena África. Daí saiu a alcunha de
“escola de samba”, que é utilizada até os dias atuais.
Noites memoráveis foram
vividas na casa da Tia Ciata. João da Baiana, seu sobrinho, era o principal
animador do arrasta pé. Tantos outros grandes sambistas passaram por aquele
terreiro. Podemos lembrar de Zé Espinguela, o Pai Olufá do candomblé da Mangueira.
Esse mesmo Zé Espinguela que com Paulo da Portela realizou o primeiro encontro
de escolas de samba no Rio de Janeiro em 1929 no bairro do Engenho de Dentro,
que foi o embrião dos atuais desfiles de escolas de samba.
Pois é, todos partiram
para o Orum nos enchendo de saudades. Sambista de verdade gosta mesmo é de um
ajuntamento, de burburinho, de gente rindo e falando alto de felicidade, de
corpos suados e muita batucada. Certamente que um dia chamaram o Obatalá
velha–guarda conhecido como Oxalufam, que traz consigo seu paxorô e sempre
vestido de branco, para uma resenha respeitosa. Obatalá como todos sabem é o
orixá que foi encarregado por Olodumaré para o milagre da criação, aquele um do
saco da criação, que através de Ododuwa deu origem ao mundo. Costuma ser muito
generoso sendo um orixá bom de entendimento. .
Com a resenha garantida,
convocaram Paulo da Portela para desenrolar a ideia com o homem. Tia Ciata foi
junto, pois era muito considerada no Orum por conta de suas oferendas luxuosas
que sempre agradaram muito aos orixás que faziam questão de baixar em seu
terreiro. Obatalá ficava muito feliz com a canjica, acaçá e mugunzá, seus
petiscos preferidos, regados a um bom vinho branco doce que Ciata lhe oferecia,
além de velas brancas, frutas, coco verde, mel e flores.
Um pedido dela contava
muito no Orum e Obatalá entendeu que o pedido era muito justo. Em sua sabedoria
compreendeu a importância da solicitação, alertando porém que gostaria de
consultar outros orixás antes da decisão.
Foi uma correria só, os
orixás entrariam em concílio e todos deveriam estar contentes com os sambistas
para votarem a favor do espaço que aqueles pretos escandalosos estavam
reivindicando. Para Oxum velas brancas, azuis ou amarelas. Flores e frutos de
todos os tipos, essências de rosas, champanhe e licor de cereja. Para Oxóssi
velas brancas, verdes ou rosas, mas também adora que lhe ofereçam cerveja,
vinho doce e licor de caju, bem como flores do campo e frutas. Xangô não pode
ser contrariado e todos se empenharam em produzir um padê especial com velas
brancas, vermelhas ou marrons. Flores de todas as espécies, cerveja escura,
vinho doce e licor de ambrosia. Obaluaiê o senhor da evolução é agradado com
ofertas de velas brancas, vinho rosé, água pura, coco fatiado com mel e
pipocas, rosas, margaridas e crisântemos. O guerreiro Ogum gosta
de velas brancas, azuis ou vermelhas, cerveja, vinho licoroso e cravos.
Iemanjá A dona das águas fica feliz com velas brancas, azuis ou rosas,
champanhe, calda de ameixa ou pêssego, manjar, arroz-doce, melão e rosas
brancas. Iansã senhora das emoções intensas, recebe com prazer velas
brancas, amarelas e vermelhas. Também gosta de champanhe branca, licor de
menta, aniz ou cerejas, rosas e palmas amarelas. Nanã regente da
maturidade e da razão humana muito se satisfaz com velas brancas, roxas e
rosas, champanhe, calda de ameixa ou figo, uva, melão, melancia, figo ou
ameixa. Omulu orixá que rege nossa passagem para o mundo espiritual
deve ser agradado com velas brancas, vermelhas ou pretas, água pura, coco,
vinho doce, mel, pipoca e sal grosso.
A turma de sambistas se
dividiu para correr atrás e desenrolar todas as oferendas necessária para
agradar aos orixás. A coordenação da missão ficou por conta de Tia Perciliana
que sempre foi respeitada pelas entidades do Orum. Do jeito que era organizado,
Paulo da Portela apresentou um projeto para o grupo e cada um saiu em sua
missão de conseguir as oferendas necessárias para agradar os orixás que iam
participar do concílio.
No dia combinados estavam
todos lá, todos os deuses assentados em seus imensos tronos, imponentes e
compenetrados. Alguns impacientes pois tinham muitas demandas para resolver no
estelífero e na Terra. Recebiam pedidos de seus filhos mais diletos como
promover a justiça, evitar acidentes e consertar casamentos. Outros cuidar de
enfermos, evitar guerras, proteger viagens entre tantas outras obrigações.
Xangô não estava muito satisfeito com a situação pois achava um absurdo o
concílio se reunir para garantir um espaço exclusivo para os sambistas no Orum.
A todo momento olhava de lado para Nanã Buruquê a senhora dos pântanos que em
seu imensurável poder se mantinha impassível, aguardando o momento das falas.
Obatalá abriu o concílio
colocando a necessidade da reunião para julgar o pedido, pois os solicitantes
sempre foram muito dedicados aos trabalhos espirituais na Terra, e por conseguinte
durante a vida terrena fizeram generosas e verdadeiras oferendas para todos os
orixás. Obatalá lembrou a Xangô filho de Orumilá, aquele que altera o dia
morte, dono do trovão,
conhecedor dos caminhos do poder secular, governador da justiça e senhor do
castelo de cem colunas de bronze, dos famosos amalás que Ciata lhe preparava com
muito carinho, escolhendo os melhores quiabos pensando na satisfação de seu
dono. Xangô grunhiu qualquer coisa mas realmente não estava muito satisfeito
com toda a situação. Sua esposa Oxum sentou-se a seu lado e
lhe acariciou os cabelos revoltos. Aos poucos a raiva foi dando lugar a um
semblante mais tranquilo e o concílio seguiu seu curso.
Oxum de cara amarrada não
gostava quando não falavam de Carmem do Xibuco, sua filha dileta do terreiro de
João Alabá que assumiu a liderança religiosa da Pequena África com o retorno
para a África do agudá Bamboxé. Tia Carmem era rezadeira como Tia Ciata e
depois dos 21 anos de feita no santo foi introduzida nos mistérios das Yami
Osorongá, dos pássaros da madrugada. Como Tia Carmem não estava no Orum do
Samba, Oxum não apoiaria de jeito nenhum a iniciativa que deixava de fora aquela
filha que cuidara tão bem de seus abians e iaôs, dos quelês e deloguns daqueles
que trançavam os mais lindos mocans de palha da costa e fiavam fios de contas
douradas ou de âmbar. Oxum ficava era feliz vendo seus filhos depois da
obrigação de 7 anos ver seus egbomis ganharem as novas contas como Humjebe
Lagdbá, Brajá, Âbar e Mojoló. Tanta coisa bonita, tanto xirê dourado, tanta
entrega de deká, tanta puxada de muzenza, onde já se viu tirar a filha Carmem
do Xibuco que veio de Amaralina, desse tal Orum do Samba que nem se sabe
direito seus fundamentos, ainda mais que Carmem era rezadeira das boas e cantadeira
junto Tia Bebiana e Tia Amélia nos arrasta-pés mais famosos da Pequena África.
Oxum quando diz não a terra
treme e as águas se levantam e os deuses e deusas temem sua ira e a ira dos
pássaros da noite, a fúria incomensurável do poder devastador das Três Senhoras.
Oxum, a segunda esposa de
Xangô, dona do Jogo de Búzios, da sabedoria e do poder, não estava gostando nem
um pouco dessa novidade de samba no Orum. Iemanjá senhora da fertilidade e protetora das
crianças não entendia bem o que aquele povo queria fazer no Orum, já que tudo
estava em seu lugar, sem alteração há milhares de anos. Oxum acompanhou Iemanjá
na interrogação e Ogun pediu a palavra, primeiro pedindo assentimento a Omulu
que estava sentado ao seu lado. Ogum fez um longo discurso em defesa dos
sambistas, pois sempre protegia seus filhos perseguidos e prejudicados pelas
leis injustas dos homens brancos na Terra. Lembrou que nos momentos mais
difíceis da perseguição ao culto aos orixás esses sambistas nunca renegaram sua
fé. Estiveram firmes nos trabalhos de terreiro, com suas oferendas e seus
okiris, desenvolvendo novas iaôs com amor e dedicação. Lembrou da dinheirama
que gastaram para montar os padês e tantas outras oferendas, as flores, as
bebidas finas, o melhor de tudo sempre. Cuidaram de suas casas, de seus
barracões com amor e carinho. Desenvolveram centenas de filhos e filhas de
santo, prestaram caridade durante toda a vida e agora no Orum só querem um
pequeno espaço na imensidão para se reunirem e brincar sem preocupação, em paz,
como nunca aconteceu na vida terrena. Nanã a senhora das águas paradas, pediu a
palavra e lentamente se dirigiu para o centro do círculo sagrado. O fogo lhe
iluminava as faces antigas e graves. Rompeu o silêncio dizendo em tom grave que
nunca se deve abandonar os seus. Aqueles bravos sambistas cumpriram com louvor
e dedicação a vida terrena e agora podem sim ter seu espaço para ter um pouco
de alegria depois de uma vida tão sofrida. Em um silêncio absoluto Nanã Buruquê
voltou para seu assento e olhou para Obatalá como que perguntando o que estava
faltando para atender o pedido dos nossos filhos diletos? Obatalá então colocou o pedido em votação e todos
aprovaram por unanimidade a criação do Orum do Samba.
Desfeito o concílio com o
anúncio da aprovação, os orixás partiram em diferentes direções do universo
estelífero, cavalgando raios de luzes e em tempestades solares. Um cenário
indescritível de poder e glória. Obaluaê transmitiu as salvaguardas do concílio
onde somente poderiam participar do Orum do samba os sambistas que na vida
terrena tiverem tido compromisso com os orixás, além de bom comportamento e
respeito ao sagrado. Determinou também que não fosse interrompido no mundo
material a cultura do gurufim que ele particularmente muito apreciava. Obaluaê
disse que sambista que se preza não tem velório, tem mesmo é gurufim. Velório é
coisa de branco, de tristeza dos povos do gelo.
O gurufim é um ritual de
celebração dos povos de origem africana, que celebram em corpo presente a morte
dos membros de suas comunidades. O termo “Gurufim”, segundo Luis da Câmara
Cascudo, é uma corruptela de ‘golfinho’, cetáceo que na cultura do Egito Antigo,
conduz ou faz a passagem dos espíritos dos que morrem para uma outra vida. Luis
Antônio Simas diz que aqui no Brasil é comum na religiosidade dos bantos e
iorubas a cerimônia do axexê, que é um rito, uma comemoração, uma festa para a
morte. Simas explica que a crendice popular diz que a morte nunca leva somente
uma pessoa, na verdade gosta de levar três. “Então o povo canta, bebe e brinca
para enganar a morte”. É uma malandragem, para que a morte não perceba que tem
um morto sendo velado naquele local. Então a morte ao observar a festa, não
percebe o engodo, vai embora sem levar outras pessoas.
O bairro de Madureira no
Rio de Janeiro fez o maior gurufim que se tem notícia. Foi o evento que marcou
a passagem do sambista Paulo da Portela, fundador da escola de samba cujo nome
incorporou. As exéquias aconteceram no ano de 1949 e infelizmente não puderam
ser realizadas na sede da escola de samba, pois a viúva não permitiu que o
corpo fosse velado na quadra da agremiação por conta de quizilas entre a escola
e seu falecido marido, fundador da instituição, coisas do mundo do samba. A
imprensa da época noticiou que 15 mil pessoas lotaram as ruas de Madureira para
acompanhar a passagem do cortejo fúnebre.
No caso de Paulo da
Portela o gurufim foi na rua mesmo. Enquanto o comércio cerrava as portas em
respeito e homenagem ao ilustre líder sambista, o povo cantava e bebia enquanto
caminhava acompanhando o cortejo. Muita gente ganhou um bom dinheiro no jogo do
bicho ao apostar no número da sepultura de Paulo da Portela, que por mais
incrível que possa parecer, deu a milhar na cabeça. Mais gurufim que isto
impossível, a homenagem ao morto ser encerrada com o milhar da sepultura dando
na cabeça no jogo do bicho.
O memorável sambista
Padeirinho da Mangueira também se referiu ao gurufim em um de seus sambas,
especificamente o “Linguagem do Morro”: “Briga de uns e outros/Dizem que é
burburim/Velório no morro é gurufim”.
Dona Neuma a grande dama
do samba de Mangueira narrava que também fazia parte do gurufim algumas
brincadeiras: “A gente tirava a porta da sala principal e deitava sobre
os caixotes. Colocava o morto ali em cima da porta, rodeado de gente sentada em
bancos. Quando a cachaça comia solta, nego dormia e os outros pintavam bigodes
de gato na cara dele com uma rolha queimada”
Luiz Antônio Simas diz que essas brincadeiras
costumavam ter o mar e os peixes como tema, pois os golfinhos carregam até hoje
a tradição do Egito Antigo de transportar as pessoas para outros mundos. Em uma
delas o capitão perguntava: “Gurufim veio?” e em coro todos respondiam: “não,
não veio” e perguntava novamente: “Baleia veio? “Não, não veio” respondiam, e
então quem veio? E o grupo apontando para alguém: “olha a sardinha aqui”,
quando então cada um era apelidado pelo nome de um animal marinho. A
pessoa que era a sardinha então tinha que responder, e passar adiante. Quem não
respondesse ao chamado, tinha que pagar uma prenda, como levar um tapa na mão,
conhecido como “bolo”, explica Simas.
“Velório no Morro” (Raul Marques e Tancredo Silva)
Lá
no morro quando morre um sambista
É um dia de festa e ninguém protesta
As águas rolam a noite inteira
Pois sem brincadeira o velório não presta
Tem também um gurufim
Que no fim acaba sempre em sururu
Mas é gozado pra chuchu (…)
(...)
Já encomendaram ao anjo Gabriel
Um novo céu para dar abrigo a sua gente
Que morre assim constantemente, de repente.
“Gurufim” (Cláudio Camunguelo)
Eu vou fingir
que morri
Pra ver quem vai chorar por mim
E quem vai ficar gargalhando no meu gurufim
Quem vai beber minha cachaça
E tomar do meu café
E quem vai ficar paquerando a minha mulher
Quando o
caixão chegar
Eu me levanto da mesa
E vou logo apagar
As quarto velas acesas
E vou dizer pra minha mãe
Não chora
Amigo a gente vê é nessa hora
A morte está presente no
cotidiano dos poetas do samba. Nelson Cavaquinho cantava: “...Depois que eu me
chamar saudade/Não preciso de vaidade/Quero preces e nada mais”, e “Quando eu
passo/Perto das flores/Quase elas dizem assim: Vai que amanhã enfeitaremos o
seu fim”.
Concluindo as tratativas do Orum do samba, Obaluaê
ficou muito satisfeito com a manutenção do gurufim no mundo dos mortais e se
retirou com Nanã Buruquê para seus afazeres no Orum.
Foi decretado pelo
concílio e por todos os orixás em seus assentos de baobá de 5 mil anos
marchetados e incrustados de pedras preciosas que Paulo da Portela, Zé
Espinguela, Dona Neuma e Clementina de Jesus seriam os responsáveis pela
coordenação do espaço. Paulo da Portela que sempre foi muito organizado,
rapidamente escreveu um estatuto que foi submetido à aprovação pelo coletivo.
Chico Porrão da Mangueira redigiu o Regimento Interno e finalmente o
funcionamento do espaço foi garantido.
No Orum do Samba a coisa
acontece de maneira diferente. Os sambistas ficam de boas nas nuvens, tirando
uns acordes aqui outros ali. Pedindo orientações a São Cartola e realizando
exercícios vocais com Dona Ivone Lara. O regulamento não é lá muito rigoroso e
sempre funciona a política das comadres e dos compadres. Noel Rosa sempre fuma
escondido um cigarrinho da marca Celestial e Geraldo Pereira dá um jeito de
tomar “umas e outras” com Beto Sem Braço. Vivem felizes em infinitas resenhas
entre Mijinha, Preto Rico, Padeirinho, Zé Criolinho e Geraldo Babão. Dona Neuma
da Mangueira organiza tudo e é quem manda de verdade no Céu dos Sambistas junto
com Tia Ciata. Paga esporro geral pra todo mundo, enquadra qualquer vacilo quando
é necessário e trabalha sempre na parceria com Dona Zica, mulher de Cartola,
que também tem grande poder e dá uma moral na feijoada de sábado que o Natal da
Portela adora. O medo do pecado da gula passa longe do Orum do Samba. Lá rola
Tripa Lombeira, Barriga de Porco, Sarapatel, Rabada, Mocotó, Buchada de Bode e
como ninguém é de ferro sempre surge um prato leve como Angu à Baiana com
chouriço para abrir o apetite.
No Orum do Samba não há
como ter tristeza. Isso é com os ‘Zé Ruela’ que ficaram lá embaixo reclamando
da vida. Lá em cima não tem miséria, vida eterna é bom demais, ninguém anda
“duro” pois não precisam de dinheiro, tudo corre suave, nos conformes, chapéu
panamá, sapato bicolor, camisa de seda, mulheres no salto, cabelos nos
trinques, não tem como não sair samba bom.
Os sambas elaborados são
os mais lindos já compostos. Depois que os sambas ficam prontos, eles pedem
aos Exús para descerem até a Terra e colocarem os sambas nas cabeças dos
compositores e compositoras. Mas é tudo samba danado de bom! Se for um Exú mais
paciente ele entrega o samba durante o sono do compositor. Se for um daqueles
sagazes, faz como naquele samba que diz que a inspiração é como uma luz que
chega de repente, com a rapidez de uma estrela cadente e zumpt! Enfia o samba
na cabeça do poeta, que tem que se arvorar em encontrar caneta e papel nos
lugares mais esquisitos e inimagináveis da vida, para poder escrever o samba
que chegou inesperado, para não esquecer. Assim procediam Almir Guineto, Luiz
Carlos da Vila, Tantinho, Canuto, Casquinha, Alberto Lonato, Xangô da
Mangueira, Ventura, Gradim, Zé com Fome, Zé Espinguela, Casquinha, David
Correia, Candeia, Mario Lago, e Waldir 59, além do povo guerreiro da Serrinha,
povo de Dona Eulália, Vó Joana e Tia Maria do Jongo, Roberto Ribeiro, Darcy do
Jongo, Mestre Fuleiro, Mano Elói, Silas de Oliveira, Manacéia, Mano Décio e
Molequinho.
Tá uma alegria danada na
turma do Cacique de Ramos que está no Orum do Samba. Oxóssi deixou plantar uma
tamarineira e nela se reúnem Beth Carvalho, Ubirany, Guilherme de Brito e o
povo das redondezas da Zona da Leopoldina como Luisinho Drummond o eterno
presidente da Imperatriz. O pessoal tá numa animação só. O samba na Terra está
meio triste, acabaram de subir Wilson das Neves, Nelson Sargento, Hélio Turco
da Mangueira, Monarco da Portela e Djalma Sabiá do Salgueiro. Mas no Orum do
Samba é uma festa só, pois estão preparando uma festa interminável para
recebê-los. Todos estão perfilados, em trajes de gala, com as bandeiras e
estandartes das agremiações. Até o Bide do Estácio se empenha afinando com
cuidado o surdão de primeira que marcará o momento solene da chegada. Só o
Jamelão que está reclamando com o Toco da Mocidade sobre a falação do povo. Mas
está tudo muito bonito, esmerado, preparado com carinho pela Dodô da Portela
que acabou de ralhar com o Delegado que estava conversando com João Nogueira
sobre samba e futebol. Todos engalanados sob as bênçãos do Comandante em Chefe
do Orum do Samba, Paulo da Portela.
Mas o Orum do Samba tem
seus regulamentos. Se chegar e disser que é sambista tem que provar que é bom
malandro para o Wilson Batista. Vai ter que batucar para o Mestre André da
Mocidade e Alcir do Prato, cantar para o Cartola e Nelson Cavaquinho, sambar para
Gargalhada e Delegado e beber com Carlos Cachaça. Se for aprovado receberá um
crachá para viver eternamente feliz e poder frequentar a Kizomba, a festa da
Vila Isabel do Céu comandada por Noel.
A riqueza da cosmovisão africana diante da
morte é um grande exemplo da capacidade de construção de um universo onírico
maravilhoso, onde a realidade se funde com a metafísica e as dores são
transformadas em alegrias e saudades. Esse poder de alquimia transcendental é
próprio de um povo que elege a alegria como instituto basilar da vida que
através do encantamento existencial ameniza suas dores e aflições oriundas do
cotidiano do povo preto, inclusive enganando a morte.