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O Espelho

segunda-feira, 13 de maio de 2024

O Espelho

Eu negro quando me olho no espelho costumo não gostar do que vejo. Meu eu negro se reflete em estilhaços, em uma grande entropia de cristais, que representam o desmonte de minha frágil e inconstante psiquê.

Me eu negro quando se reflete no espelho, traz consigo uma carga imensa de sofrimentos ancestrais. Em cada estilhaço do espelho meu eu negro reflete dores primordiais da alma negra, violentada, flagelada e crucificada após uma ultrajante e pérfida via crucis sociológica.

Quando meu eu Negro defronta-se diante do espelho estilhaçado, tenta se reconhecer em meio a tantos eus disformes e assimétricos. São ‘não eus’ que recusam compor minha verdadeira alteridade física e emocional, como o instrumento desafinado em meio a uma maviosa orquestra.

Não consigo estabelecer um acordo com meu eu no espelho estilhaçado, porque além da recusa diante da impossibilidade normativa, há uma realidade distópica atuando em moto contínuo que não abre espaço para concertações humanas.

A triste saga do meu eu negro carrega consigo as cicatrizes de batalhas atávicas memoráveis. Traz consigo o luto antropológico e a perversão do cativeiro. Tanto mar salgado batendo em minha alma. Tantos porões desumanos no ventre dos navios negreiros. Tanto mar...tanto mal. Tanto sofrimento que durante séculos de perversão humana, formatou um sísifo existencial, que exaure minha mente nas infinitas e contínuas escaladas dos rochedos do existir.

Meu eu negro que permanece no espelho em estilhaços, vive uma teogonia voltada para o lado humano, que passou a compreender o destino que sempre cumpriu, sempre preso a uma hermenêutica construída pelo proselitismo caucasiano, que insiste em apagar e destruir minha cosmovisão ancestral, multicultural e pluriétnica.

Meu eu negro insiste em se descobrir humano em um mundo de reflexos inumanos e hostis. A visão turva oriunda de uma falsa deidade de sociopatas eugênicos, me faz caminhar lento e claudicante nas vielas tortuosas de um mundo triste e decadente.

É assustador ver e não se reconhecer. De qual mundo? Existe um mundo? Ou somente seguir em manada até o destino final? Apagar o passado soturno? Varrer para debaixo do tapete os restolhos cínicos das diferenças fenotipicas? Viver eternamente no porão enquanto outros refestelam-se em. suntuosos palácios?

Interrogações seculares que permanecem e me cobram através do reflexo do espelho. Me atiçam em chamas, cobrando um modo de ação carbonário e revolucionário. Gritam em meus ouvidos, sangram meu corpo, esmagam os recônditos de minha alma. As interrogações são bárbaras e desumanas. Partem dos estilhaços do espelho como raios certeiros, tendo como alvos principais o coração e a psiquê negra.

Penso em deixar tudo para depois. Sabendo me engananar assim como as mães fazem ao dizer para o filho insistente em pedir uma guloseima: “na volta a gente compra”. Sim, na volta talvez eu lute, na volta talvez eu sorria, na volta talvez me encontre.

sábado, 11 de maio de 2024

A criação do mundo, do Orum do Samba e da magia do gurufim na tradição iorubá.

No início tudo era um grande mistério. Havia um universo frio, gigantesco e insondável comandado por Olodumaré que certo dia convocou Obatalá e lhe entregou o saco da criação, determinando com isso, a tarefa de construir o Aiyê, um mundo rochoso e cheio de oceanos, que a partir de então abrigaria os seres mortais, animais, humanos, flora e toda a vida que pudesse haver nele.

Obatalá ficou feliz com a missão e partiu sem fazer as oferendas devidas a Exú, o comunicador entre os dois mundos. Exú ofendido, se vingou, produzindo um encantamento que fez Obatalá sentir uma sede incontrolável. Obatalá então, muito sedento, furou o tronco de um dendezeiro com seu paxorô, o cajado de estanho que o acompanha, extraindo da árvore bastante vinho de palma que bebeu avidamente. Por conta disso se embriagou e adormeceu profundamente.

Oduduwa pegou o saco da criação confiado a Obatalá e denunciou a Olodumaré a grande irresponsabilidade de Obatalá com a missão determinada. Foi incumbido então, ele próprio, de criar o Aiyê, no ainda inexistente mundo dos humanos. O processo de criação teve início e onde havia água ele despejou terra marrom que tirava do saco da criação. Oduduwa retirou do saco da criação uma concha cheia de areia, para logo após soltar uma galinha de pés de cinco dedos e uma pomba, que imediatamente começaram a ciscar a areia para fora da concha, criando o que são hoje os continentes com seus mais variados tipos de relevos. Enquanto isso Obatalá despertava de seu sono profundo, se desculpando envergonhado com Olodumaré. Como prêmio de consolação foi incumbido de criar a espécie humana, modelando os seres humanos a partir do barro, fazendo com isso a ocupação do Aiyê com seus primeiros habitantes. Cada ser humano criado deveria ser único, assim jamais haveria um igual ao outro. Além das formas físicas ele transferiu aos humanos que criou os diversos aspectos do seu próprio caráter.

Assim o mundo foi criado e dessa maneira os animais e a espécie humana espalharam-se pelo mundo a partir das terras dos reinos de Ifé e de Oyá.

O velho griot conta que um dia o povo branco chegou vindo do outro lado do mar, com seus barcos e um livro chamado Bíblia Sagrada. O livro que diziam ser a salvação da humanidade que contava a história onde havia um grande e único deus branco, criador do céu e da Terra, que entregou seu filho para ser crucificado em um madeiro em forma de cruz, com o propósito de salvar a humanidade. Eles os brancos tinham o livro e os negros tinham a terra. Os negros fecharam seus olhos para rezar e louvar o deus branco, quando abriram os olhos depois de tanto rezar, os brancos tinham se tornado os donos das terras e os negros ficaram com o livro.

Foram séculos de sofrimentos em que o povo negro passou por terríveis martírios nas mãos dos brancos. Guerras, perda das terras, apagamento da cosmovisão do sagrado africano e a famigerada escravidão mercantil. Esse foi o pérfido legado deixado pelo homem branco nas terras do povo negro, o Continente Africano.

Trazido para o Brasil como escravizado, o povo negro perdeu tudo que lhe era mais sagrado: sua liberdade, suas culturas, suas crenças e até suas línguas foram proibidas pelo branco escravista. Mas no silêncio da senzala, nas festas dos quilombos e na rotina extenuante do eito de trabalho, passava silenciosamente todos os fundamentos sagrados transmitidos pelos orixás desde o início dos tempos.

Os navios trouxeram de África junto com os escravizados os tambores africanos, responsáveis pela boa comunicação dos trabalhos do Candomblé entre os dois mundos. Os tambores pariram o samba, ritmo profano que produz a magia do encantamento entre corpo, alma e o universo metafísico, transformando lágrimas de dor em diamantes iluminados e cintilantes, dores em alegrias, desamores em amores e felicidades. Esse samba que junto com o futebol e a cerveja, formam uma riquíssima trindade no mosaico da cultura nacional, segue em frente empunhando o estandarte de resistência da cultura brasileira diante dos ataques alienígenas anódinos e sem vida.

O samba esse menino travesso, malandreado, veio no embalo do mar do sem fim, no sacolejo dos vapores de Cachoeira, do Recôncavo Baiano, de Santo Amaro da Purificação, na dança da umbigada angolana chamada semba.  Esse samba do negro retinto, do pé rachado, dos sem eira nem beira, quem diria, ganhou o mundo adentrando nos salões da elite empertigada.

João Gilberto, um dos pais da Bossa Nova, cantava que o samba havia nascido na Bahia. Pode ser, pois a Bahia talvez seja a maior parideira da riqueza cultural brasileira. De Salvador ao Recôncavo Baiano, de Ilhéus a Cachoeira, a Bahia de todos os deuses sempre nos brindou com verdadeiras maravilhas culturais, como o Samba de Roda, a Tropicália, o Maracatu, o Cinema Novo, a Timbalada, os Blocos Afros, os famosos ilês de axé, além de grandes personalidades de nossa história e do país.

O Candomblé baiano foi a maior fonte de inspiração e contribuição para a formação da nossa brasilidade. Os tambores Rum, Pi e Lê ditaram e comandam o ritmo primordial da sagrada prática iorubana/angolana/brasileira. Seus elementos significantes foram os pilares antropológicos que sustentaram a força da matriz africana em seu entranhamento inapelável e definitivo na gênese da matriz indo-afro-ibérica, que constituía até então, o delicado tule da identidade brasileira durante os primórdios do período colonial.

A prática da religião africana nos territórios colonizados era realizada de maneira bastante discreta, visando burlar o esforço da empresa colonial e da Companhia de Jesus, voltada para a conversão ao cristianismo dos africanos sequestrados em África e escravizados no Brasil. Nos encontros clandestinos nas matas ou no silêncio da senzala o exercício da religião era passado através dos tempos, como um oráculo, tornando-se guardião imemorial do legado sagrado dos territórios negros do Daomé, de Oyá, Sudão e do Benim.

No meio desse turbilhão cultural fantástico por sua força atávica e driblando a adversidade histórica, nosso samba foi dando seus primeiros passos, bem de mansinho, mamando nas tetas generosas das iaôs, nos colos acolhedores das Ialaorixás, nas carícias de ogãs e alabês, na feijoada do quintal de preto, nos gurufins, nas comidas de santo e fundamentalmente no rufar dos tambores dos terreiros.

Os vapores saíam da Bahia de Todos os Santos, do Recôncavo e do Cais de Salvador para o Rio de Janeiro, trazendo em seu ventre a prenhez da mãe África, o jongo, o samba, a culinária, a capoeira, as ervas santas, o poder da adivinhação das contas do Ifá, as danças profanas e o canto mágico, que transformaram para sempre a cultura brasileira.

O babalaô africano conhecido como Bamboxé foi o primeiro a abrir uma casa de santo no Rio de Janeiro. Com o advento da abolição da escravatura ele retornou para a África compondo o contingente dos ‘Agudás’, que quer dizer em dialeto nagô, aqueles que retornaram. Depois dele a casa de santo mais conhecida na região da Pequena África foi a de João Alabá, cujas filhas de santo mudaram para sempre o panorama da vida cultural carioca e do país. Entre suas filhas de santo mais famosas podemos citar Tia Amélia, mãe de Donga, sambista que gravou o primeiro samba no país, chamado de ‘Pelo Telefone’. Tia Bebiana, organizadora dos desfiles de blocos e ranchos no Largo de São Domingo, Tia Perciliana, mãe de João da Baiana e Tia Ciata a primeira dama do samba, a parideira do samba carioca.

Tia Ciata é a grande referência do samba no Rio de Janeiro. Os sambistas a consideram a grande matriarca do samba carioca. Sua casa na Pequena África, no centro da cidade, era o local de encontro dos autênticos e pioneiros sambistas do Rio de Janeiro, o berço do samba carioca. Sua casa era frequentada por artistas e músicos de boa cepa como Ataulfo Alves, Heitor dos Prazeres, Paulo da Portela, Cartola, Carlos Cachaça, Natal da Portela, Zé com Fome, Silas de Oliveira, Pixinguinha, Ismael, Bid, Marçal e a turma do Estácio. A turma do Estácio foi quem mudou o ritmo do samba para a forma que é tocado até hoje nas baterias das escolas de samba. Antes o samba que se dançava era um ritmo amaxixado, como podemos constatar no primeiro samba gravado no Brasil por Donga, o famoso “Pelo Telefone”. Muitos sambistas torcem o nariz para esse samba, dizendo que o mesmo é um maxixe. Tia Ciata além de grande festeira, era uma Mãe de Santo respeitada pelo povo do santo no centro do Rio de Janeiro. Sua fama correu chão, após ter curado com suas ervas e unguentos uma ferida renitente na perna do presidente do Brasil à época, Wenceslau Brás. Por esse motivo a polícia foi proibida de invadir e terminar com a reunião de sambistas que acontecia em seu terreiro.

Nesse ambiente metafísico e cultural o samba carioca deu seus primeiros passos. Acontecia logo após o encerramento das celebrações e sessões do sagrado, quando havia um pausa necessária para a organização do terreiro. Os frequentadores faziam um intervalo de descanso para logo depois fazerem a conversão dos atabaques, antes comprometidos com o sagrado, eram entregues felizes aos ritmos e cânticos profanos, sendo surrados inclementes durante toda a noite por dedicados ogãs e alabês, cumprindo seus relevantes papéis de manter a massa em alegria, quando de suas couradas rugiam maxixes, sambas e polcas até o dia raiar. Além do prazer de usufruir da própria riqueza musical e da alegria reinante, naquela época não havia transportes durante a madrugada que levassem o pessoal de volta para casa. Os frequentadores dos terreiros então aproveitavam que deveriam aguardar o dia amanhecer para fazer a festa, cantar, dançar e se fartar da “água que passarinho não bebe” “aquela que matou o guarda”. A casa de Tia Ciata assistiu as transformações da música e do samba.  A turma do Estácio, por exemplo, ensaiava seus sambas defronte a uma escola de formação de normalistas no Largo do Estácio, nas franjas da Pequena África. Daí saiu a alcunha de “escola de samba”, que é utilizada até os dias atuais.

Noites memoráveis foram vividas na casa da Tia Ciata. João da Baiana, seu sobrinho, era o principal animador do arrasta pé. Tantos outros grandes sambistas passaram por aquele terreiro. Podemos lembrar de Zé Espinguela, o Pai Olufá do candomblé da Mangueira. Esse mesmo Zé Espinguela que com Paulo da Portela realizou o primeiro encontro de escolas de samba no Rio de Janeiro em 1929 no bairro do Engenho de Dentro, que foi o embrião dos atuais desfiles de escolas de samba.

Pois é, todos partiram para o Orum nos enchendo de saudades. Sambista de verdade gosta mesmo é de um ajuntamento, de burburinho, de gente rindo e falando alto de felicidade, de corpos suados e muita batucada. Certamente que um dia chamaram o Obatalá velha–guarda conhecido como Oxalufam, que traz consigo seu paxorô e sempre vestido de branco, para uma resenha respeitosa. Obatalá como todos sabem é o orixá que foi encarregado por Olodumaré para o milagre da criação, aquele um do saco da criação, que através de Ododuwa deu origem ao mundo. Costuma ser muito generoso sendo um orixá bom de entendimento. .

Com a resenha garantida, convocaram Paulo da Portela para desenrolar a ideia com o homem. Tia Ciata foi junto, pois era muito considerada no Orum por conta de suas oferendas luxuosas que sempre agradaram muito aos orixás que faziam questão de baixar em seu terreiro. Obatalá ficava muito feliz com a canjica, acaçá e mugunzá, seus petiscos preferidos, regados a um bom vinho branco doce que Ciata lhe oferecia, além de velas brancas, frutas, coco verde, mel e flores.

Um pedido dela contava muito no Orum e Obatalá entendeu que o pedido era muito justo. Em sua sabedoria compreendeu a importância da solicitação, alertando porém que gostaria de consultar outros orixás antes da decisão.

Foi uma correria só, os orixás entrariam em concílio e todos deveriam estar contentes com os sambistas para votarem a favor do espaço que aqueles pretos escandalosos estavam reivindicando. Para Oxum velas brancas, azuis ou amarelas. Flores e frutos de todos os tipos, essências de rosas, champanhe e licor de cereja. Para Oxóssi velas brancas, verdes ou rosas, mas também adora que lhe ofereçam cerveja, vinho doce e licor de caju, bem como flores do campo e frutas. Xangô não pode ser contrariado e todos se empenharam em produzir um padê especial com velas brancas, vermelhas ou marrons. Flores de todas as espécies, cerveja escura, vinho doce e licor de ambrosia. Obaluaiê o senhor da evolução é agradado com ofertas de velas brancas, vinho rosé, água pura, coco fatiado com mel e pipocas, rosas, margaridas e crisântemos.  O guerreiro Ogum gosta de velas brancas, azuis ou vermelhas, cerveja, vinho licoroso e cravos. Iemanjá A dona das águas fica feliz com velas brancas, azuis ou rosas, champanhe, calda de ameixa ou pêssego, manjar, arroz-doce, melão e rosas brancas. Iansã senhora das emoções intensas, recebe com prazer velas brancas, amarelas e vermelhas. Também gosta de champanhe branca, licor de menta, aniz ou cerejas, rosas e palmas amarelas. Nanã regente da maturidade e da razão humana muito se satisfaz com velas brancas, roxas e rosas, champanhe, calda de ameixa ou figo, uva, melão, melancia, figo ou ameixa. Omulu orixá que rege nossa passagem para o mundo espiritual deve ser agradado com velas brancas, vermelhas ou pretas, água pura, coco, vinho doce, mel, pipoca e sal grosso.

A turma de sambistas se dividiu para correr atrás e desenrolar todas as oferendas necessária para agradar aos orixás. A coordenação da missão ficou por conta de Tia Perciliana que sempre foi respeitada pelas entidades do Orum. Do jeito que era organizado, Paulo da Portela apresentou um projeto para o grupo e cada um saiu em sua missão de conseguir as oferendas necessárias para agradar os orixás que iam participar do concílio.

No dia combinados estavam todos lá, todos os deuses assentados em seus imensos tronos, imponentes e compenetrados. Alguns impacientes pois tinham muitas demandas para resolver no estelífero e na Terra. Recebiam pedidos de seus filhos mais diletos como promover a justiça, evitar acidentes e consertar casamentos. Outros cuidar de enfermos, evitar guerras, proteger viagens entre tantas outras obrigações. Xangô não estava muito satisfeito com a situação pois achava um absurdo o concílio se reunir para garantir um espaço exclusivo para os sambistas no Orum. A todo momento olhava de lado para Nanã Buruquê a senhora dos pântanos que em seu imensurável poder se mantinha impassível, aguardando o momento das falas.

Obatalá abriu o concílio colocando a necessidade da reunião para julgar o pedido, pois os solicitantes sempre foram muito dedicados aos trabalhos espirituais na Terra, e por conseguinte durante a vida terrena fizeram generosas e verdadeiras oferendas para todos os orixás. Obatalá lembrou a Xangô filho de Orumilá, aquele que altera o dia morte, dono do trovão, conhecedor dos caminhos do poder secular, governador da justiça e senhor do castelo de cem colunas de bronze, dos famosos amalás que Ciata lhe preparava com muito carinho, escolhendo os melhores quiabos pensando na satisfação de seu dono. Xangô grunhiu qualquer coisa mas realmente não estava muito satisfeito com toda a situação. Sua esposa Oxum sentou-se a seu lado e lhe acariciou os cabelos revoltos. Aos poucos a raiva foi dando lugar a um semblante mais tranquilo e o concílio seguiu seu curso.

Oxum de cara amarrada não gostava quando não falavam de Carmem do Xibuco, sua filha dileta do terreiro de João Alabá que assumiu a liderança religiosa da Pequena África com o retorno para a África do agudá Bamboxé. Tia Carmem era rezadeira como Tia Ciata e depois dos 21 anos de feita no santo foi introduzida nos mistérios das Yami Osorongá, dos pássaros da madrugada. Como Tia Carmem não estava no Orum do Samba, Oxum não apoiaria de jeito nenhum a iniciativa que deixava de fora aquela filha que cuidara tão bem de seus abians e iaôs, dos quelês e deloguns daqueles que trançavam os mais lindos mocans de palha da costa e fiavam fios de contas douradas ou de âmbar. Oxum ficava era feliz vendo seus filhos depois da obrigação de 7 anos ver seus egbomis ganharem as novas contas como Humjebe Lagdbá, Brajá, Âbar e Mojoló. Tanta coisa bonita, tanto xirê dourado, tanta entrega de deká, tanta puxada de muzenza, onde já se viu tirar a filha Carmem do Xibuco que veio de Amaralina, desse tal Orum do Samba que nem se sabe direito seus fundamentos, ainda mais que Carmem era rezadeira das boas e cantadeira junto Tia Bebiana e Tia Amélia nos arrasta-pés mais famosos da Pequena África.

Oxum quando diz não a terra treme e as águas se levantam e os deuses e deusas temem sua ira e a ira dos pássaros da noite, a fúria incomensurável do poder devastador das Três Senhoras.

Oxum, a segunda esposa de Xangô, dona do Jogo de Búzios, da sabedoria e do poder, não estava gostando nem um pouco dessa novidade de samba no Orum. Iemanjá senhora da fertilidade e protetora das crianças não entendia bem o que aquele povo queria fazer no Orum, já que tudo estava em seu lugar, sem alteração há milhares de anos. Oxum acompanhou Iemanjá na interrogação e Ogun pediu a palavra, primeiro pedindo assentimento a Omulu que estava sentado ao seu lado. Ogum fez um longo discurso em defesa dos sambistas, pois sempre protegia seus filhos perseguidos e prejudicados pelas leis injustas dos homens brancos na Terra. Lembrou que nos momentos mais difíceis da perseguição ao culto aos orixás esses sambistas nunca renegaram sua fé. Estiveram firmes nos trabalhos de terreiro, com suas oferendas e seus okiris, desenvolvendo novas iaôs com amor e dedicação. Lembrou da dinheirama que gastaram para montar os padês e tantas outras oferendas, as flores, as bebidas finas, o melhor de tudo sempre. Cuidaram de suas casas, de seus barracões com amor e carinho. Desenvolveram centenas de filhos e filhas de santo, prestaram caridade durante toda a vida e agora no Orum só querem um pequeno espaço na imensidão para se reunirem e brincar sem preocupação, em paz, como nunca aconteceu na vida terrena. Nanã a senhora das águas paradas, pediu a palavra e lentamente se dirigiu para o centro do círculo sagrado. O fogo lhe iluminava as faces antigas e graves. Rompeu o silêncio dizendo em tom grave que nunca se deve abandonar os seus. Aqueles bravos sambistas cumpriram com louvor e dedicação a vida terrena e agora podem sim ter seu espaço para ter um pouco de alegria depois de uma vida tão sofrida. Em um silêncio absoluto Nanã Buruquê voltou para seu assento e olhou para Obatalá como que perguntando o que estava faltando para atender o pedido dos nossos filhos diletos? Obatalá então colocou o pedido em votação e todos aprovaram por unanimidade a criação do Orum do Samba.

Desfeito o concílio com o anúncio da aprovação, os orixás partiram em diferentes direções do universo estelífero, cavalgando raios de luzes e em tempestades solares. Um cenário indescritível de poder e glória. Obaluaê transmitiu as salvaguardas do concílio onde somente poderiam participar do Orum do samba os sambistas que na vida terrena tiverem tido compromisso com os orixás, além de bom comportamento e respeito ao sagrado. Determinou também que não fosse interrompido no mundo material a cultura do gurufim que ele particularmente muito apreciava. Obaluaê disse que sambista que se preza não tem velório, tem mesmo é gurufim. Velório é coisa de branco, de tristeza dos povos do gelo.

O gurufim é um ritual de celebração dos povos de origem africana, que celebram em corpo presente a morte dos membros de suas comunidades. O termo “Gurufim”, segundo Luis da Câmara Cascudo, é uma corruptela de ‘golfinho’, cetáceo que na cultura do Egito Antigo, conduz ou faz a passagem dos espíritos dos que morrem para uma outra vida. Luis Antônio Simas diz que aqui no Brasil é comum na religiosidade dos bantos e iorubas a cerimônia do axexê, que é um rito, uma comemoração, uma festa para a morte. Simas explica que a crendice popular diz que a morte nunca leva somente uma pessoa, na verdade gosta de levar três. “Então o povo canta, bebe e brinca para enganar a morte”. É uma malandragem, para que a morte não perceba que tem um morto sendo velado naquele local. Então a morte ao observar a festa, não percebe o engodo, vai embora sem levar outras pessoas.

O bairro de Madureira no Rio de Janeiro fez o maior gurufim que se tem notícia. Foi o evento que marcou a passagem do sambista Paulo da Portela, fundador da escola de samba cujo nome incorporou. As exéquias aconteceram no ano de 1949 e infelizmente não puderam ser realizadas na sede da escola de samba, pois a viúva não permitiu que o corpo fosse velado na quadra da agremiação por conta de quizilas entre a escola e seu falecido marido, fundador da instituição, coisas do mundo do samba. A imprensa da época noticiou que 15 mil pessoas lotaram as ruas de Madureira para acompanhar a passagem do cortejo fúnebre.

No caso de Paulo da Portela o gurufim foi na rua mesmo. Enquanto o comércio cerrava as portas em respeito e homenagem ao ilustre líder sambista, o povo cantava e bebia enquanto caminhava acompanhando o cortejo. Muita gente ganhou um bom dinheiro no jogo do bicho ao apostar no número da sepultura de Paulo da Portela, que por mais incrível que possa parecer, deu a milhar na cabeça. Mais gurufim que isto impossível, a homenagem ao morto ser encerrada com o milhar da sepultura dando na cabeça no jogo do bicho.

O memorável sambista Padeirinho da Mangueira também se referiu ao gurufim em um de seus sambas, especificamente o “Linguagem do Morro”: “Briga de uns e outros/Dizem que é burburim/Velório no morro é gurufim”.

Dona Neuma a grande dama do samba de Mangueira narrava que também fazia parte do gurufim algumas brincadeiras: “A gente tirava a porta da sala principal e deitava sobre os caixotes. Colocava o morto ali em cima da porta, rodeado de gente sentada em bancos. Quando a cachaça comia solta, nego dormia e os outros pintavam bigodes de gato na cara dele com uma rolha queimada”

Luiz Antônio Simas diz que essas brincadeiras costumavam ter o mar e os peixes como tema, pois os golfinhos carregam até hoje a tradição do Egito Antigo de transportar as pessoas para outros mundos. Em uma delas o capitão perguntava: “Gurufim veio?” e em coro todos respondiam: “não, não veio” e perguntava novamente: “Baleia veio? “Não, não veio” respondiam, e então quem veio? E o grupo apontando para alguém: “olha a sardinha aqui”, quando então cada um era apelidado pelo nome de um animal marinho.  A pessoa que era a sardinha então tinha que responder, e passar adiante. Quem não respondesse ao chamado, tinha que pagar uma prenda, como levar um tapa na mão, conhecido como “bolo”, explica Simas.

 

“Velório no Morro” (Raul Marques e Tancredo Silva)

Lá no morro quando morre um sambista
É um dia de festa e ninguém protesta
As águas rolam a noite inteira
Pois sem brincadeira o velório não presta
Tem também um gurufim
Que no fim acaba sempre em sururu
Mas é gozado pra chuchu (…)

(...) Já encomendaram ao anjo Gabriel 
Um novo céu para dar abrigo a sua gente 
Que morre assim constantemente, de repente.

 

“Gurufim” (Cláudio Camunguelo)

Eu vou fingir que morri
Pra ver quem vai chorar por mim
E quem vai ficar gargalhando no meu gurufim
Quem vai beber minha cachaça
E tomar do meu café
E quem vai ficar paquerando a minha mulher

Quando o caixão chegar
Eu me levanto da mesa
E vou logo apagar
As quarto velas acesas
E vou dizer pra minha mãe
Não chora
Amigo a gente vê é nessa hora

A morte está presente no cotidiano dos poetas do samba. Nelson Cavaquinho cantava: “...Depois que eu me chamar saudade/Não preciso de vaidade/Quero preces e nada mais”, e “Quando eu passo/Perto das flores/Quase elas dizem assim: Vai que amanhã enfeitaremos o seu fim”.

Concluindo as tratativas do Orum do samba, Obaluaê ficou muito satisfeito com a manutenção do gurufim no mundo dos mortais e se retirou com Nanã Buruquê para seus afazeres no Orum.

Foi decretado pelo concílio e por todos os orixás em seus assentos de baobá de 5 mil anos marchetados e incrustados de pedras preciosas que Paulo da Portela, Zé Espinguela, Dona Neuma e Clementina de Jesus seriam os responsáveis pela coordenação do espaço. Paulo da Portela que sempre foi muito organizado, rapidamente escreveu um estatuto que foi submetido à aprovação pelo coletivo. Chico Porrão da Mangueira redigiu o Regimento Interno e finalmente o funcionamento do espaço foi garantido.

No Orum do Samba a coisa acontece de maneira diferente. Os sambistas ficam de boas nas nuvens, tirando uns acordes aqui outros ali. Pedindo orientações a São Cartola e realizando exercícios vocais com Dona Ivone Lara. O regulamento não é lá muito rigoroso e sempre funciona a política das comadres e dos compadres. Noel Rosa sempre fuma escondido um cigarrinho da marca Celestial e Geraldo Pereira dá um jeito de tomar “umas e outras” com Beto Sem Braço. Vivem felizes em infinitas resenhas entre Mijinha, Preto Rico, Padeirinho, Zé Criolinho e Geraldo Babão. Dona Neuma da Mangueira organiza tudo e é quem manda de verdade no Céu dos Sambistas junto com Tia Ciata. Paga esporro geral pra todo mundo, enquadra qualquer vacilo quando é necessário e trabalha sempre na parceria com Dona Zica, mulher de Cartola, que também tem grande poder e dá uma moral na feijoada de sábado que o Natal da Portela adora. O medo do pecado da gula passa longe do Orum do Samba. Lá rola Tripa Lombeira, Barriga de Porco, Sarapatel, Rabada, Mocotó, Buchada de Bode e como ninguém é de ferro sempre surge um prato leve como Angu à Baiana com chouriço para abrir o apetite.

No Orum do Samba não há como ter tristeza. Isso é com os ‘Zé Ruela’ que ficaram lá embaixo reclamando da vida. Lá em cima não tem miséria, vida eterna é bom demais, ninguém anda “duro” pois não precisam de dinheiro, tudo corre suave, nos conformes, chapéu panamá, sapato bicolor, camisa de seda, mulheres no salto, cabelos nos trinques, não tem como não sair samba bom.

Os sambas elaborados são os mais lindos já compostos.  Depois que os sambas ficam prontos, eles pedem aos Exús para descerem até a Terra e colocarem os sambas nas cabeças dos compositores e compositoras. Mas é tudo samba danado de bom! Se for um Exú mais paciente ele entrega o samba durante o sono do compositor. Se for um daqueles sagazes, faz como naquele samba que diz que a inspiração é como uma luz que chega de repente, com a rapidez de uma estrela cadente e zumpt! Enfia o samba na cabeça do poeta, que tem que se arvorar em encontrar caneta e papel nos lugares mais esquisitos e inimagináveis da vida, para poder escrever o samba que chegou inesperado, para não esquecer. Assim procediam Almir Guineto, Luiz Carlos da Vila, Tantinho, Canuto, Casquinha, Alberto Lonato, Xangô da Mangueira, Ventura, Gradim, Zé com Fome, Zé Espinguela, Casquinha, David Correia, Candeia, Mario Lago, e Waldir 59, além do povo guerreiro da Serrinha, povo de Dona Eulália, Vó Joana e Tia Maria do Jongo, Roberto Ribeiro, Darcy do Jongo, Mestre Fuleiro, Mano Elói, Silas de Oliveira, Manacéia, Mano Décio e Molequinho.

Tá uma alegria danada na turma do Cacique de Ramos que está no Orum do Samba. Oxóssi deixou plantar uma tamarineira e nela se reúnem Beth Carvalho, Ubirany, Guilherme de Brito e o povo das redondezas da Zona da Leopoldina como Luisinho Drummond o eterno presidente da Imperatriz. O pessoal tá numa animação só. O samba na Terra está meio triste, acabaram de subir Wilson das Neves, Nelson Sargento, Hélio Turco da Mangueira, Monarco da Portela e Djalma Sabiá do Salgueiro. Mas no Orum do Samba é uma festa só, pois estão preparando uma festa interminável para recebê-los. Todos estão perfilados, em trajes de gala, com as bandeiras e estandartes das agremiações. Até o Bide do Estácio se empenha afinando com cuidado o surdão de primeira que marcará o momento solene da chegada. Só o Jamelão que está reclamando com o Toco da Mocidade sobre a falação do povo. Mas está tudo muito bonito, esmerado, preparado com carinho pela Dodô da Portela que acabou de ralhar com o Delegado que estava conversando com João Nogueira sobre samba e futebol. Todos engalanados sob as bênçãos do Comandante em Chefe do Orum do Samba, Paulo da Portela.

Mas o Orum do Samba tem seus regulamentos. Se chegar e disser que é sambista tem que provar que é bom malandro para o Wilson Batista. Vai ter que batucar para o Mestre André da Mocidade e Alcir do Prato, cantar para o Cartola e Nelson Cavaquinho, sambar para Gargalhada e Delegado e beber com Carlos Cachaça. Se for aprovado receberá um crachá para viver eternamente feliz e poder frequentar a Kizomba, a festa da Vila Isabel do Céu comandada por Noel.

A riqueza da cosmovisão africana diante da morte é um grande exemplo da capacidade de construção de um universo onírico maravilhoso, onde a realidade se funde com a metafísica e as dores são transformadas em alegrias e saudades. Esse poder de alquimia transcendental é próprio de um povo que elege a alegria como instituto basilar da vida que através do encantamento existencial ameniza suas dores e aflições oriundas do cotidiano do povo preto, inclusive enganando a morte.

domingo, 14 de abril de 2024

A Beleza Verdadeira


" O primeiro gole do copo das ciências naturais o transformará em um ateu. Mas no fundo do copo Deus estará lhe esperando". (Werner Helsenberg. Pai da Física Quântica)

O capitalismo e a branquitude criaram para o povo negro uma cosmovisão similar como a que foi apresentada no texto “Alegoria da Caverna”, do livro 07 da República de Platão.  A branquitude arquitetou para o povo negro um mundo falso onde seres humanos despidos de seus direitos e com suas humanidades retiradas, passassem a coexistir em um ambiente difuso e violento, onde martírios, sofrimentos, exploração, dominação e a escravização de seres humanos, servissem como pano de fundo para enriquecimento e poder de uma Europa excludente, racista, ambiciosa e colonialista, sempre fundamentada na razão iluminista. Esta mesma razão, erigiu fundamentada na exegese sofista de Tísias e Quintiliano, os pilares de pseudo ciências que sustentaram a ideia da odisseia do fardo que o povo branco deveria carregar ao levar civilização aos povos negros, asiáticos e ameríndios.

A cosmovisão criada para os negros, depois de retirar a deles próprios, projeta imagens de um mundo falso, onde querem que acreditemos que a verdade está nas trevas e não na luz. Os poderosos donos do capital querem que aceitemos a naturalização da miséria como um “ethos constitutivo da alma negra”, que deve viver normalmente em comunidades ambientalmente degradadas e irrespiráveis, dominadas pelo terror do narcotráfico e eivadas por todas as formas de violências. A xenoafetividade interracial imposta pela branquitude, vige como possibilidade de uma visão virtuosa afro-futurística onde se repete o paradigma freiriano do deleite entre senzala e casa-grande.

Infelizmente nossos destinos ainda permanecem nas mãos das elites, dos brancos poderosos. Apesar da contemporaneidade eles ainda nos iludem com uma matrix anódina, distópica e geradora de óbices antropológicos que nos mantêm atados aos horrores do presente, através de antolhos que nos foram colocados no passado. Assim somos impedidos em nossa grande maioria de ver e atingir a luz da verdade e do conhecimento. O desafio é alcançar a verdadeira utopia libertadora, que se pode antever no materialismo histórico de Marx, na dialética entre o idealismo e o materialismo, que coloca o ser humano no lugar de concretude que o representa na sociedade hunana. Lugar ansiado e palpável do qual estamos tanto precisados.

Chega em boa hora o tempo de sairmos da caverna onde a branquitude nos colocou. Emprenhar um “ser negro” novo, com novas hermenêuticas, sem as amarras traiçoeiras do racismo estrutural e da retronegritude.  Sim, chegou o tempo de refletirmos sobre as rotineiras narrativas de que ‘negro é lindo’, ‘tudo negro é lindo’, uma metavisão da cosmovisão que pode se tornar uma representação perigosa de uma  antropolissemia, que constrói um estranho mosaico dentro de um contexto branco, burlesco, que propõe situar o negro em uma dimensão existencial de clivagem epicurista, que é a mesma coisa que mergulhar em um mar sombrio e difuso, repleto de tubarões brancos, vorazes e famintos.

Esse “lindo” tão propalado sempre foi uma construção caucasiana com ênfase na clivagem hedonística de um mundo helenístico, construtor da beleza artificial do corpo branco, no qual não devemos nos inspirar e pela qual não devemos nos interessar. A representação real do lindo da branquitude se espraia de maneira hegemônica nos programas de TV, nas propagandas e nos espaços de poder, onde nós os negros não encontramos representação. 

A realidade apresenta um cenário farsesco sobre o lindo, mas de alguma maneira estamos inseridos nele, de onde precisamos sair e cerrar esta porta definitivamente. O apagamento da excitante cosmovisão africana, sua formidável teogonia e suas culturas exuberantes, foi mais um dos crimes de lesa humanidade cometidos pelos colonizadores em África.

O universo em seu grandioso poder e magnificência não distingue as pessoas pela pigmentação da pele e tampouco se importa com elas. Para a criação universal todos os seres humanos são o que devem ser. Baseado em uma perspectiva lógica e compreendendo até um viés metafísico, todos os seres humanos são lindos, não por comparações ou diferenciações fenotípicas, mas sim pela gênese ontológica do constitutivo universal. Talvez o que seja mais próximo do que Baruch Spinoza quis dizer acerca da possibilidade panteística da imanência de um poder divino.

Lindos porque a vida é linda em todas as suas configurações quânticas e relativísticas. Sua indescritível beleza posta-se imperiosamente acima de todos nós, estando absoluta e indisponível ao limitado conhecimento humano. 

A vida como a nossa, como a dos seres humanos de agora, surge como um evento raríssimo no universo observável, onde ainda não encontramos nada igual ou semelhante entre milhares de mundos silenciosos, gélidos e mortos.

Precisamos refletir e quem sabe até abandonar essas construções burguesas de “Pequeno Príncipe Negro”, “Cinderela Negra” e coisas semelhantes do gênero. Tudo isso foi criação da alma branca para as mentes brancas e para um mundo branco. Os autores dessas fábulas e contos infantis não pensaram nem cogitaram encantar crianças negras quando criaram esses personagens  lúdicos do inaginário infantil.

Ao tentarmos demonstrar alguma alteridade comparativa da realeza negra com a realeza branca, talvez estejamos correndo o risco de utilizar os mesmos mecanismos excludentes do eurocentrismo, convertidos pela e para a pele negra, para a negritude. Os sistemas aristocráticos são originalmente excludentes e despóticos em suas essências, onde seres humanos normais se dizem ungidos por divindades e baseados em suposições metafísicas, desenham um modelo de exploração do povo  que visa manter uma casta de mandriões inúteis e preguiçosos  refestelados no poder. Ao exaltamos os reinos africanos da antiguidade e até da modernidade, como estética comparativa, estamos, como nós alerta a transvaloração de Nietzsche, referendando um sistema social de rapina, que avilta a soberania popular como sempre faz os sistemas capitalistas da branquitude. Fazendo então, senão reproduzir as antigas sombras projetadas pelas chamas bruxuleantes nas paredes da caverna de nossas existências negras colonizadas pelo proselitismo do cristianismo.

A beleza de cada ser humano está dentro de si e não pode ser vista a olho nu. Milhões de universos interagem simultaneamente fazendo a vida acontecer. Apesar da dialética que envolve biogênese e abiogênese, a vida em seu esplendor primordial é o amálgama de átomos, elétrons, prótons, nêutrons, pósitrons, quarks, leptons, bósons, férmions, neutrinos e mésons que interagem  com proteínas, mitocôndrias, lipídios, saia, fósforo , nitrogênio, hidrogênio, enxofre, glicídios, células, impulsos elétricos, fibras musculares, DNA entre tantas outras milhares de interações que se extasiam na entropia quântica através da contradança da criação, do existir. Ah!  quanta glória! receber o sopro divino em um universo que nos faz viver gigantes e ao mesmo tempo partículas, nos apresentando o fantástico milagre do desabrochar da vida. 

Jung disse que nossa psiquê é estruturada de acordo com a estrutura universal e o que ocorre no microcosmo também acontece nos infinitesimais e mais subjetivos alcances da mesma psiquê.Carregamos inúmeros universos quânticos e relativísticos, todos imensamente vazios e ao mesmo tempo repletos e intensos em força e poder. São potentados carregados pelas energias primordiais que vieram da fusão nuclear no interior das estrelas desnudas que se atiraram despojadas universo afora, em uma marcha inexorável que nunca terá fim. Isso sim é lindo demais. Todos nós somos lindos demais, filhos e filhas dessa grande criação misteriosa forjada nas fornalhas das estrelas que explodiram em tempos imemoriais. A casca de carbono que nos reveste um dia terá seu fim. Mas a vida que reside em nós, em sua fantástica configuração de energias caóticas e ao mesmo tempo harmoniosas e belas, permanecerá viva pelo sempre do universo. Está é a verdadeira beleza. Somos filhas e filhos imortais das estrelas e por assim sermos devemos louvar e admirar o brilho que herdamos do universo.

terça-feira, 9 de abril de 2024

Dostoievski passeando nas estrelas


Os sinos dobram quebrando o silêncio nas noites estreladas de São Petersburgo.

A pérola do Neva está de luto

Fiódor Dostoiévsky deixa o mundo dos vivos.

Seu corpo jaz hirto e solene na casa dos mortos onde crimes e castigos são perdoados e os demônios definitivamente exorcizados.

A gente pobre, o idiota e o jogador choram observando o esquife que descerá à tumba

A partir de então será uma triste memória no subsolo

Marejando os olhos dos irmãos Karamazov

Os sons dos sinos enlutados cobrem a cidade dourada com uma tristeza indescritível

As catedrais em lamento anunciam a emancipação espiritual do seu corpo

Frágil cárcere que limita a alma à estrutura de carbono que compõe a pobre matéria humana.

Enfim partiu livre e sem amarras pela imensidão do universo

Sobrevoa extasiado por quasares, pulsares, estrelas de nêutron, gigantes vermelhas, sistemas binários e constelações que nascem do mais puro caos

Em sua trajetória surgem nebulosas e berçários de estrelas dançando sobre a matéria escura

Milhares de sóis brilhantes iluminam sua jornada, coroando o sonho de um homem místico que considerava a morte uma história desagradável

Sempre acreditou que a vida somente é suportável através da esperança de que a morte é apenas uma ilusão

Segue cruzando dimensões incríveis, mundos paralelos, misteriosos buracos negros com seus horizontes de eventos

Em sua fantástica viagem rejubila-se com a perspectiva de estar diante do Dono de todo esse poder

A Terra, aquele velho, pesado, incompreensível e doloroso mundo ficou para trás

Terra, território de expiação e sofrimentos onde os humanos purgam suas dores existenciais e seus desejos de ouro e poder 

Na serenidade da liberdade mais pura, ouve os acordes que soam nos campanários do paraíso

Onde o pensamento está livre das limitações da matéria, dos julgamentos, dos duplos comportamentos, das culpas

Flutua livre e suave nos infinitos recônditos do universo inimaginável

Viajas sob o troar dos Pilares da Criação, onde luzes rasgam as trevas imemoriais criando novos mundos da gênesis primordial

Assiste maravilhado a magia da Criação gerando novos corpos celestes em um universo sem fim

Observa espantado e feliz em sua jornada, a magnificência de todo o ordenamento universal

Grupo Local, Aglomerado de Virgem, Laniakea, o Grande Atrator, Pontes Einstein-Rosen, Muralha de Hércules – Corona Borealis a imensidão inimaginável

Apesar da fúria e do caos parido no ventre da dialética de Deus há paz e harmonia

As ondas de amor que sente são as cordas da harpa da criação divina

Tudo se resume em amor, tudo é amor, absolutamente amor

Fique em paz na luz eterna e amorosa amado irmão, camarada e poeta Dostoiévski.

quinta-feira, 14 de março de 2024

Lula oficializa cotas para brancos no Governo Federal

Servidores negros efetivos do governo federal, receberam com alvíssaras, a notícia da promulgação do Decreto 11.443/2023, sancionado pelo Presidente Lula, que destina 30% dos cargos comissionados da administração pública federal, para servidores afrodescendentes.

O que essa notícia tem ver com o título do artigo? Sem qualquer tipo de ironia, quando um decreto presidencial obriga que espaços d0e poder privilegiados devam ceder 30% desses mesmos espaços para negros e negras, significa que ficará garantida por legislação a permanência de 70% de brancos nos referidos cargos. Para muitos soa como um Cavalo de Tróia no âmbito das ações afirmativas, pois, o que era dissimulado agora será escancarado.

Uma avaliação bem pueril mostrará que, segundo o IBGE, a população negra brasileira corresponde a 54% do total da população. Restam as perguntas que não querem calar: "quem foi o “gênio” que definiu 30% para negros e negras?" "Qual a explicação plausível em se garantir 70% para brancos?"

O decreto traz em seu âmago tênues sinais de justiça, mas na verdade, apenas aponta que mesmo em um governo que se diz progressista, há uma alteridade racial incrustada. Não há o que defender, se no próprio ministério do atual governo negras e negros representam menos de 20% do total de ministros e ministras da esplanada.

Se procedermos uma tosca análise histórica no campo das reparações, depois de tudo que o povo negro sofreu nesse país para gerar riqueza e poder para os brancos, o decreto deveria garantir 100% desses cargos comissionados para negros e negras, que desde 1532 estão apartados de todas as formas de promoção pessoal, intelectual, social e financeira nesse país. Nesses quase 500 anos de desventuras, desde a chegada do primeiro navio negreiro, os brancos sempre ocuparam 100% dos melhores e mais vantajosos cargos da administração pública.

A comemoração do movimento negro nesse aspecto, equivale à criança que está no sinal de trânsito esmolando e recebe uma moedinha que lhe é atirada pelas janelas dos veículos,  e agradecida por isso, sai saltitando de felicidade pelas ruas.

O pacto com a branquitude continua de vento em popa. Ao dar 30% dos cargos para os negros efusivamente e garantindo 70% para os brancos no “sapatinho”, o governo evita que sejam publicados editoriais iracundos sobre a medida e ao mesmo tempo garantea láurea de promotor da “pax racial brasileira”, cumprindo assim a verve dos bons políticos que é a infinita vocação de encantar serpentes.

A política é assim, em uma jogada genial, todos ficam felizes e satisfeitos e tudo continua como dantes no quartel de Abrantes. Óbvio que mudanças acontecerão. Alguns servidores negros terão um plano de saúde melhor, enviarão os filhos para a Disney, jantarão fora uma vez por semana e trocarão o Celta caidinho pelo Fiat Strada. No fundo, cá pra nós, já é alguma cois. Mas Letramento Racial na BNCC nada.

O decreto não atingirá grande amplitude no conjunto de servidores federais. A maioria dos concursados aprovados nos últimos anos nos concursos públicos é esmagadoramente branca. Será uma gota d’água no oceano, mas parafraseando Madre Teresa de Calcutá, mesmo sendo uma gota d'água no oceano, o oceano da branquitude ficará um pouquinho menor.

quarta-feira, 6 de março de 2024

Bergman, a República de Weimar e o Jesus da Goiabeira

O Ovo da Serpente, de Ingmar Bergman, é um filme denso e dolorido. Ali está, inteiro, o processo de esgarçamento social capitaneado por gente que se imagina salvadora da pátria e seus apoiadores nutridos pelo ressentimento. Mostra como se testava os limites da democracia alemã, em 1923: pela via do ódio e da corrosão das instituições, dos valores mais altos da existência e da civilização. Há risco de naufrágio, mas as massas, cada fez mais fanatizadas e manipuladas, se creem empoderadas. E ai de quem advirta sobre o rumo perigoso que trilham. O fanático encontra justificativa para tudo; sua atuação violenta silencia as vozes dissonantes. O título do filme de Bergman inspirou-se em Shakespeare, esse conhecedor da alma humana. É uma frase da tragédia Julio Cesar: "Pense nele como um ovo de serpente que, chocado, se tornaria mau, como os de sua espécie. E mate-o na casca". Algumas idéias - não as pessoas - devem ser cortadas no nascedouro. Elas chocam e dão origem a serpentes cujo veneno vai apodrecer a carne de quem as fez prosperar.
O Ovo da Serpente nunca deixa de ser atual. Naturalmente é uma obra prima cercada de gente laureada como Dino de Laurentis na produção, David Carradine (aquele do seriado Kung Fu) no papel de Alan Rosenberg, um trapezista judeu desempregado e a belíssima e talentosa Liv Ullman como Manuella, uma cantora de cabaré, cunhada de Rosenberg. O Ovo da Serpente e a série televisiva Berlin Alexanderplatz (1980) de Werner Fassbinder formam o que há de melhor na cinematografia mundial sobre a surpreendente República de Weimar, berço que embalou o nazismo de Hitler e suas monstruosidades. O Ovo da Serpente reproduz com a tradicional agucidade de Bergman os complexos panoramas sociais, ideológicos, religiosos, políticos e culturais do período. A pesquisa de Bergman é primorosa e o roteiro mais espetacular ainda. O cineasta reproduz com incrível fidelidade os passos de uma sociedade saída de uma guerra perdida, que antecipou a república declarada na cidade de Weimar, onde Goethe morreu. A nova república nasceu cheia de esperanças, mesmo sendo a representação política de um país humilhado e destroçado economicamente. O propósito da república liberal era reconduzir a Alemanha para um período de reconstrução e prosperidade. O cenário que surgiu com a república foi desesperador com inflação gigante, industrialização pífia, criminalidade elevada, anti-semitismo, anti-comunismo, desemprego em massa e a humilhação do Tratado de Versalhes. Foi o terreno fértil necessário para o nascimento do poderoso nacional-socialismo alemão que trouxe ao mundo o Terceiro Reich de Hitler. O período plúmbeo produziu obras de raro valor como A Montanha Mágica (1924) de Thomas Mann, Nosferatu (1922) de FW Murnau e Bram Stoker, Metropolis de Fritz Lang em 1927 e o Anjo Azul de Josef von Sternberg em 1930. A torrente expressionista era a resposta que a arte oferecia em contraponto ao medo e a insegurança do crescente movimento racista e xenofóbico, que foi respaldado por um corolário jurídico conservador que assistia a ascensão de um militarismo extremista que se apresentava como a única alternativa para livrar a a Alemanha dos comunistas de 1917, bem ali ao lado na Rússia. 
Não posso emitir um spoiler, pois vale à pena se surpreender com o filme. Os figurinos de Charlote Fleming se unem de maneira magistral à fotografia de Sven Nykvist que é fenomenal ao transmitir com fidelidade a aura daqueles tempos sombrios e assustadores. O Brasil também vive tempos assustadores e sombrios. O Ovo da Serpente nunca se mostrou tão atual e verdadeiro como aqui ao sul do Equador. Naquele distante 1923 Bergman denunciava as tentativas golpistas do Exército, a repressão a liberdade individual, aos gays, ao culto ao grande líder, ao ditador centralizador e a prática da segregação, do patriotismo enviesado, do nacionalismo inconteste, enfim, um ovo da serpente. Na Berlim de 1923 a população também buscava alimentos no lixo. Uma das cenas do filme mostra um mutirão de pessoas que se alimenta em torno do corpo de um cavalo morto. A arte imita a vida ou a vida imita a arte? Na Alemanha proto nazista, no período que antecedeu a II Guerra Mundial, a população alemã recebia incontáveis fake news por parte da chancelaria de Hitler, principalmente sobre uma provável invasão comunista onde as famílias alemãs deveriam dividir suas casas com os  russos em caso de vitória comunista. Obviamente que não chegaram ao absurdo da metafísica quando aqui no Brasil uma ministra afirmou que conversava constantemente com Jesus Cristo que surgia sentado em um galho de goiabeira. Essa aí deixou e muito, para trás o espírito inventivo e a criatividade do Bergman.
Mas as lições da República de Weimar são fielmente retratadas pelo cineasta sueco e são incrivelmente repetidas aqui no Brasil 80 anos depois. O nazismo inflou o espírito alemão propondo um nacionalismo exacerbado, um anticomunismo feroz e assustador e a pregação da defesa da família e de valores cristãos.
O resultado dessa união desaguou nos fornos crematórios dos campos de concentração e um total de 70 milhões de mortos no conflito entre 1939 e 1945, com o fim da guerra.
Bergman deixou um libelo acusatório recheado de beleza e magia, mostrando através do impressionismo a dureza do pensamento e do que são capazes os extremistas.

sábado, 17 de fevereiro de 2024

A Madrugada e os Poetas

Madrugada no hemisfério sul. Só os loucos ou os livres saem às ruas. Ouço ruídos desconexos enquanto me conformo em minha jornada insone. Penso no tempo da vida, sobre o quanto ele pode ser importante e quando quase nada vale. Durante a madrugada, o tempo dos notívagos insones pouco vale. Parece que o tempo é verdadeiramente importante quando há espectadores.Imaginem a cena de um circo, onde os trapezistas se encaram fixamente diante do salto mortal final em um pucadeiro vazio, sem o suspense e o pulsar da adrenalina do grande público? A importância não está somente em você, precisa de plateia, de espectadores, assim é a vida.

O tempo da madrugada é uma ditadura vã, onde o insone sofre sob o plúmbeo do tempo, sobre o catre indiferente, incomodado por um ou outro inseto que ainda sente importância em você, talvez somente ele, nesse mundo de heróis superficiais.

A madrugada possui um tempo lento, tempo de solidão, entremeado e compartilhado com suspiros e assombrações. Ali no espaço cruel da solidão, entre a realidade e o sono, existe o que podemos chamar de poesia estranha, difusa. É como se por força das elocubrações cognitivas, a alma cede sua essência ao diáfano mundo da criação. Oh, alma criativa! Mãe de todos os deserdados do leito matrimonial! Via de escape dos atormentados pela incompreensão da vida! Dai-nos a paz, alma criativa. Sabemos bem da sua predileção pela noite, pelo silêncio do tempo perdido das madrugadas, pela dor desesperada dos poetas.

Enquanto a cidade dorme, nós os poetas sofremos em nossa solidão soturna. Deitados caminhamos entre os moinhos de Cervantes e as amarelinhas de Cortázar. Eneidas, Odisseias, Lusíadas, Divinas Comédias, Ulisses e Policarpos Quaresmas. A madrugada dos poetas e um mundo à parte onde as letras saem iluminadas como vagalumes espectrais, compondo uma sinfonia eterna entremeada de luz e cores.

Enquanto a humanidade dorme o sono dos justos o poeta insiste e teima em dormir, contrariando o afã pulsante de sua alma criativa. Quer ser normal como as outras pessoas, como todas as pessoas normais do mundo, mas como um sísifo fadado ao infinito labor, cumpre sua sina infatigável de subir as pedras das letras, noites após noites nos despenhadeiros da vida. Sua obra talvez nunca seja admirada, mas qual o quê! É realizada pela incompreensível vontade da psiquê incontornável dos loucos e incompreendidos. Uma criança chora ali, um cão ladrão acolá. São os ruídos da noite. Uma moto transporta sonhos para algum lugar e pássaros boêmios cruzam os ares embebedados pelo ar fresco da madrugada.

Finalmente a madrugada vai nos deixando, silenciosa e sorrateiramente, dando lugar a um dia ainda envergonhado por dar fim aos pirilampos de letras e suspiros.  O sol surge então com seu poder avassalador, despertando os normais que correm expeditos aos seus trabalhos, aos ditames do capitalismo enlouquecedor.

O poeta então desaba ao se defrontar com o mundo dos normais, com a busca insaciável por dinheiro, por coisas, por desejos materiais. O poeta se espanta ao se ver cercado de cartões de crédito, boletos, prestações, hipotecas, crediários e caminhões de botijões de gás tocando músicas fanhosas. É o mundo dos homens . É o mundo do dia, das guerras, dos poderosos. É o mundo do dinheiro, da ganância e do egoísmo. Nesse cenário caótico e humanamente incompreensível para se viver o poeta caminha atento, tentando salvar seus vagalumes da tórrida existência dos diurnos.

A madrugada dos poetas é acolhedora. É como um ventre acolhedor que nutre os sonhos que iluminarão em tempos contemporâneos outras almas ávidas por pirilampos de poesias.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Tem SPC no céu?

O capitalismo não repousa nunca, e seu mais recente alvo é a área cemiterial. Sem se preocupar com a população pobre e por extensão com o povo negro, investe pesadamente na privatização de cemitérios.
Alguns dirão que a privatização é um processo irreversível e um fato consumado. Porém, a avidez pelo lucro do capitalismo predatório passa por cima de áreas sensíveis como a última morada dos que nada possuem.
Não há um debate série na sociedade, que verse sobre as condições financeiras das famílias daquelas pessoas vulneráveis que falecem.
Em um momento de grande dor, as famílias se arvoram em buscar recursos financeiros nas comunidades em sua maioria carentes, para que possam sepultar seus ente queridos com o mínimo de dignidade. Muitas vezes são obrigadas a recorrer mesmo a contragosto a auxílio financeiro de origem duvidosa para que possam arcar com as despesas funerárias.
Agora um novo panorama se apresentou de maneira irrevogável que é o fim da gestão municipal dos cemitérios, que estão sendo entregues à iniciativa privada. Com isso, os custos com as exéquias de um pobre que faleceu se tornarão proibitivas para a grande massa vulnerável do país. 
Sem poder realizar o sepultamento por questões financeiras qual será a alternativa das famílias? Certamente deixar o corpo no IML para ser sepultado como indigente ou doar para as escolas de medicina. 
O capitalismo não tem coração e se não houver uma reflexão seguida de uma forte ação governamental na questão cemiterial, teremos realmente chegado ao fim do que consideramos chamar de civilização.