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Eu Negro

quarta-feira, 21 de abril de 2021

 

NAVIOS NEGREIROS CONTEMPORÂNEOS

 

 

“O poder de alienação advém dessa fragilidade dos indivíduos,

 quando só conseguem identificar o que os diferencia

 e não o que os une”.
(Milton Santos)



O racismo não é um fenômeno natural, pelo contrário, é um mecanismo global criado pelo homem, pela espécie humana. Também não é inato, porque bebês brancos, convivem pacificamente com bebês negros, sem qualquer tipo de rejeição ou estranhamento

A divisão da humanidade em raças, fato desconhecido até então pelos seres humanos, criou escalas de subalternidades, gerando uma casta pérfida de europeus que almejava o controle das riquezas e a conquista de novos territórios em um mundo até então desconhecido.

Os governos que foram estabelecidos nas novas terras distantes e inóspitas para os europeus, alcançadas através das grandes navegações, criaram códigos jurídicos que deram legalidade às suas bárbaras invasões aos territórios habitados pelas respectivas populações autóctones. A chegada aos novos espaços territoriais foi combinada com a aplicação de leis contidas em um frágil e oportunista marco legal que se misturava com os cânones religiosos da Santa Inquisição. As populações originais não entendiam o objetivo das leis e muito menos seus significados.

A chegada dos europeus ao Novo Mundo, trouxe consigo o que havia de pior que poderia ser feito a um ser humano, o cativeiro e a escravidão dos povos indígenas além do sequestro e escravidão vitalícia dos negros africanos e negros nascidos no Brasil.

A chegada dos primeiros navios negreiros às Américas deu-se entre os anos 1538 e 1542. A partir desse momento, iniciou-se a construção de um quadro jurídico que justificou tal crime hediondo no então hipócrita acordo entre as coroas portuguesas e espanholas, Igreja Católica e alguns governos africanos. Portanto, há uma genealogia secular que contém em sua gênese uma natureza criminosa e perversa. 

O poder político pode ser muito perigoso. Em sua gênese de natureza despótica, organiza em torno de si, para sua conveniência, dois guardiões famintos e invisíveis, que estão sempre à sua disposição para o que for necessário: o bem e o mal. Sobreviverá o que for alimentado, o que o poder político julgar conveniente saciar e fortalecer.

Na conquista do Novo Mundo pelos europeus, os povos indígenas foram praticamente aniquilados. A sanha insaciável pela busca de riquezas abundantes nos novos territórios, como ouro, prata e pedras preciosas, além de recursos da floresta tropical, como as riquíssimas madeiras de lei, dentre elas a principal solicitada pelo mercado europeu que era o Pau Brasil. Esta madeira servia para produzir o corante vermelho, muito ambicionado à época pelo hemisfério norte.

A saga da construção de engenhos e a cultura da cana para a produção de açúcar, forçava a necessidade de centenas de trabalhadores escravizados. A busca por mão de obra indígena nos ‘sertões’ ou florestas, para trabalhar nas plantações de cana de açúcar, foi responsável por milhares de indígenas mortos, dando fim a saberes milenares, transmitidos através da oralidade por milhares de anos. Cada velho xamã, pajé ou preto velho que morreu no cativeiro colonial, significou uma biblioteca que foi incendiada, perdida para sempre. 

Durante o período colonial, as leis tornaram-se cada vez mais rígidas em relação à população negra, pois havia a necessidade de manter o plantel escravo sob controle. Além do mais, havia o medo de rebeliões, já que eles eram apenas em torno de 9% da população branca desses novos territórios. Para manter o enorme contingente negro sob seu controle, castigos horrendos eram perpetrados em praça pública, para que servissem de exemplo.

 

A herança pós-colonial que caiu sobre a população negra foram a continuidade da relações escravistas, chanceladas por um sistema político/jurídico que sempre legislou para a promoção da população branca, perpetuando assim a transmissão de poder e construção e fortalecimento da elite branca brasileira.

Não existe um conjunto de leis em nenhum país das Américas que garanta oportunidades iguais para negros e brancos que porventura habitem esses territórios. Como na época colonial, os brancos fartam-se à mesa, atirando as sobras para os negros, que orbitam a mesa como se fossem cães famintos, que em estado de miséria absoluta, concordam em cumprir o humilhante papel de ser grato ao seu escravizador.

Os indicadores sociais mostram, de forma didática, que existe um enorme fosso entre a população branca e a negra. Essa lacuna impede que negros entrem no castelo da promoção social, da cidadania, da justiça e do conhecimento. No castelo da boa aventura, há um fosso onde a ponte levadiça só desce para os brancos, só os brancos podem ter acesso ao interior desse castelo.

O interior desse reino é uma maravilha, nele estão os melhores empregos, as melhores instituições de ensino, belas viagens, a cultura e o lazer com todo o esplendor. Não existem problemas como fome, miséria, saúde pública deteriorada e desemprego. No castelo da bem-aventurança, todos se beneficiam dos benefícios econômicos e sociais exclusivos que a população branca herdou da escravidão.

Sim, os habitantes desse reino de fantasia, foram e são beneficiados por quase 400 anos de trabalho escravo do povo negro. Assim dessa maneira, houve a promoção socioeconômico e cultural de um contingente humano em detrimento a outro, que manteve-se estagnado, sem acesso à Educação, Cultura e outros instrumentos civilizatórios. O povo negro sustentava com seu trabalho cotidiano, árduo e gratuito a matriz primordial que mantinha esse tipo de privilégio.

A ganância dos detentores do poder, todos brancos, parece interminável. Embebidos na idolatria capitalista, desenvolvem cada vez mais mecanismos de controle socioeconômico, que aprofundam a desigualdade e o sofrimento do povo negro. Os comandantes das grandes corporações econômicas, controlam os governos através de suas doações financeiras para as campanhas políticas. Em troca recebem a garantia de que nada diferente acontecerá. Que as regras do jogo continuem sempre como está, para que o futuro de seus filhos esteja garantido e a estabilidade seja mantida. Por um outro lado, os políticos corruptos, eleitos com o dinheiro do grande capital, garantem através de votações suspeitas que a democracia brasileira esteja sempre sob o controle das grandes corporações.

O parlamento brasileiro pode corrigir as assimetrias sociais? Sim, pode. Basta que haja um conjunto de ações políticas estruturantes que garantam o acesso dos negros aos espaços que lhes são vedados. A justiça aconteceria se os negros pudessem acessar todos os cursos nas melhores universidades públicas do país. Que pudessem lhes abrir as portas do poder para que pudessem ter acesso a bons empregos, com os quais pudessem constituir suas famílias, colocando seus filhos em boas escolas, para que assim conseguissem um dia alcançar a tão sonhada igualdade.

Um dos maiores desafios de nossa nação é garantir a verdadeira abolição através da paridade de desenvolvimento humano entre os contingentes negros e brancos, efetivada através de políticas públicas robustas e estruturantes.

Mas não é isso o que acontece atualmente. Para que o controle da riqueza permaneça entre os seus, políticos e brancos poderosos mantêm os negros em uma dimensão difusa e vulnerável, para ​​que eles jamais tenham forças para lutar. A necessidade de trabalhar duro para sustentar suas famílias, os impede de lutar. O medo de perder o emprego e de não poder levar o pão de cada dia para os filhos os desencoraja a lutar. É um projeto criminoso, na medida em que reduzem os direitos dos trabalhadores, a carga horária aumenta e o período de descanso diminui. Como as empresas utilizam cada vez mais a tecnologia, as demissões de trabalhadores crescem sem parar. Com as demissões aumenta o tamanho do exército de reserva de mão de obra e assim os salários são achatados. Forma-se um círculo vicioso onde a legislação capitalista e patronal promove a desagregação do tecido social laboral através de ataques sistemáticos ao ‘welfare state’.

Os transportes se transformaram nos novos navios negreiros. Parece ironia, mas se compararmos com os negros que vieram da África sob grilhões nos porões dos navios, para cumprir o triste destino da escravidão no novo mundo, com os de agora, podemos constatar que os modelos se perpetuam sendo que na escravidão moderna criada pelo neocolonialismo.

As algemas são invisíveis, mas ainda nos acorrentam aos pelourinhos contemporâneos. As bolas de ferro ainda estão amarradas aos nossos tornozelos, na medida que perdemos o direito de ir e vir pelo fato econômico. Nossas comunidades são senzalas modernas, onde não há saneamento básico, pouca água potável, eletrificação decente, saúde de qualidade e transporte cada vez mais precário. O estado só comparece com o aparato policial. Esta é a triste realidade do povo negro no Brasil.

Então, irmãos, o que os governos, os estados-nações do Novo Mundo fizeram além de enriquecer, para trazer paz, justiça e liberdade? Nada, absolutamente nada! A única medida tomada no pós-abolição da escravatura foi a organização da polícia militar enquanto órgão de controle populacional, visando também o controle da população negra que agora livre perambulava pela cidade em busca de oportunidade profissional. A polícia, o judiciário e os governos em geral são constituídos com a premissa de defender quem tem de quem não tem. Os países latino-americanos são exemplares no cumprimento do ditado popular que diz ser a justiça um cobra que só morde os que estão de pés descalços.

Com as políticas neoliberais em vigor nas Américas, a população negra se distancia cada vez mais do que se pode chamar de bem-estar social. Há cada vez menos hospitais públicos e cada vez mais planos privados de saúde e remédios. As escolas públicas são canibalizadas intencionalmente para que o sonho de todos os pais afrodescendentes seja matricular seus filhos em uma boa escola particular. Além de ter um plano de saúde da família e uma boa escola particular voltada para o bem-estar da família, os negros são obrigados a trabalhar por longas jornadas de horas. Viajam longas distâncias em transportes de péssima qualidade, sujeitos a quebras mecânicas e assaltos por parte de malfeitores. O sonho de luxo de um trabalhador negro é poder dormir. Envolvidos pelo moto contínuo da ciranda cotidiana avassaladora, vive com pressa como o coelhinho de Alice no País das Maravilhas: sempre com muita pressa. A necessidade de cumprir todos os seus compromissos financeiros no final do mês, ele nem pensa em lutar contra este sistema que o oprime. Procura o melhor enquadramento no sistema para manter sua família em estabilidade financeira e emocional.

Existe um mundo invisível, um lugar entre o nada e lugar nenhum onde são pensadas essas políticas genocidas. Os atores que conduzem o espetáculo não possuem faces. São números nas telas das corretoras de valores. São anônimos nos pregões das bolsas de valores. Eles que põem os negros em marcha contínua para que não parem para pensar nem protestar.

O capitalismo está automatizando cada vez mais a sociedade. Em 20 anos, a profissão bancária não existirá mais, assim como inúmeras outras não mais existirão. A população negra está cada vez mais onde sempre esteve, alijada do mercado de trabalho, ameaçada pelo desemprego, assolada pela fome e ignorância. É um projeto de perpetuação da elite caucasiana. Nós, negros, estamos retornando aos navios negreiros contemporâneos. Eles tiram nossos empregos, e nos seduzem com a falácia do empreendedorismo, uma jogada brilhante para abafar rebeliões, jogar água fria na panela de pressão que está prestes a explodir.

A ideia de empreendedorismo é um capítulo à parte no debate racial em que estamos inseridos. A proposta de ter seu próprio negócio e ficar rico é a ilusão construída e tábua de salvação dos desempregados e dos negros desesperados. O orgulho de ser empresário, de construir fortuna, é o principal sinal de que o negro engoliu a isca capitalista. Mal sabe que o sistema o fará se endividar para abrir um novo negócio, que infelizmente não terá capital para seguir em frente. Após um breve período de encantamento, sentirá o duro golpe da realidade. Os bancos não emprestam dinheiro e nosso herói empreendedor totalmente endividado retorna à fila do desemprego depois de vender tudo o que tinha para construir seu castelo de areia oferecido pelo capitalismo.

São mundos invisíveis que se constroem e reconstroem diariamente para que os negros possam acreditar que é possível vencer, mas não é. Digo que não é porque os indicadores sociais nos afirmam isso. A miséria está aumentando cada vez mais e dentro dela estão os negros majoritariamente. O sistema capitalista torna os ricos mais ricos e os pobres mais pobres. Quanto mais desempregado, mais aumenta a competição por uma vaga de emprego e os salários diminuem junto com a eficácia das leis trabalhistas que praticamente não existem mais. Os mundos invisíveis criam a ilusão de que as oportunidades são iguais para todos e atacam a ação afirmativa, os sistemas de cotas raciais, nos chamando de incapazes e tecendo loas à meritocracia. A grande ironia é que os que se beneficiam de 400 anos de trabalho escravo produzido por negros, dizem que os negros querem viver sob benefícios, que o mérito é que vale.

A invisibilidade não nos é imposta. Faz parte do projeto de perpetuação do poder das elites. Como pensar o Quilombo dos Palmares no Brasil que durou 100 anos e enfrentou 18 expedições imperiais. Sim, nos longínquos 1595 negros e negros em rebelião fugiram de seu cativeiro e fundaram a primeira república socialista livre das Américas. No fundo, é até vergonhoso que em pleno século XXI a nossa capacidade de reagir é próxima de zero. Que nossos ancestrais nos perdoem.

 

 

 

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