NAVIOS NEGREIROS CONTEMPORÂNEOS
“O poder
de alienação advém dessa fragilidade dos indivíduos,
quando só conseguem identificar o que os
diferencia
e não o que os une”.
(Milton Santos)
O racismo não é um fenômeno natural, pelo contrário, é um mecanismo global criado pelo homem, pela espécie humana. Também não é inato, porque bebês brancos, convivem pacificamente com bebês negros, sem qualquer tipo de rejeição ou estranhamento
A divisão da humanidade
em raças, fato desconhecido até então pelos seres humanos, criou escalas de
subalternidades, gerando uma casta pérfida de europeus que almejava o controle
das riquezas e a conquista de novos territórios em um mundo até então
desconhecido.
Os governos que foram
estabelecidos nas novas terras distantes e inóspitas para os europeus,
alcançadas através das grandes navegações, criaram códigos jurídicos que deram
legalidade às suas bárbaras invasões aos territórios habitados pelas
respectivas populações autóctones. A chegada aos novos espaços
territoriais foi combinada com a aplicação de leis contidas em um frágil e
oportunista marco legal que se misturava com os cânones religiosos da Santa
Inquisição. As populações originais não entendiam o objetivo das leis e muito
menos seus significados.
A chegada dos europeus
ao Novo Mundo, trouxe consigo o que havia de pior que poderia ser feito a um
ser humano, o cativeiro e a escravidão dos povos indígenas além do sequestro e escravidão
vitalícia dos negros africanos e negros nascidos no Brasil.
A chegada dos primeiros
navios negreiros às Américas deu-se entre os anos 1538 e 1542. A partir desse
momento, iniciou-se a construção de um quadro jurídico que justificou tal crime
hediondo no então hipócrita acordo entre as coroas portuguesas e espanholas,
Igreja Católica e alguns governos africanos. Portanto, há uma genealogia
secular que contém em sua gênese uma natureza criminosa e perversa.
O poder político pode
ser muito perigoso. Em sua gênese de natureza despótica, organiza em torno
de si, para sua conveniência, dois guardiões famintos e invisíveis, que estão
sempre à sua disposição para o que for necessário: o bem e o
mal. Sobreviverá o que for alimentado, o que o poder político julgar
conveniente saciar e fortalecer.
Na conquista do Novo Mundo
pelos europeus, os povos indígenas foram praticamente aniquilados. A sanha
insaciável pela busca de riquezas abundantes nos novos territórios, como ouro,
prata e pedras preciosas, além de recursos da floresta tropical, como as riquíssimas
madeiras de lei, dentre elas a principal solicitada pelo mercado europeu que
era o Pau Brasil. Esta madeira servia para produzir o corante vermelho, muito
ambicionado à época pelo hemisfério norte.
A saga da construção de
engenhos e a cultura da cana para a produção de açúcar, forçava a necessidade
de centenas de trabalhadores escravizados. A busca por mão de obra indígena nos
‘sertões’ ou florestas, para trabalhar nas plantações de cana de açúcar, foi
responsável por milhares de indígenas mortos, dando fim a saberes milenares, transmitidos
através da oralidade por milhares de anos. Cada velho xamã, pajé ou preto
velho que morreu no cativeiro colonial, significou uma biblioteca que foi
incendiada, perdida para sempre.
Durante o período colonial, as leis tornaram-se cada vez mais rígidas em relação à população negra, pois havia a necessidade de manter o plantel escravo sob controle. Além do mais, havia o medo de rebeliões, já que eles eram apenas em torno de 9% da população branca desses novos territórios. Para manter o enorme contingente negro sob seu controle, castigos horrendos eram perpetrados em praça pública, para que servissem de exemplo.
A herança pós-colonial
que caiu sobre a população negra foram a continuidade da relações escravistas,
chanceladas por um sistema político/jurídico que sempre legislou para a
promoção da população branca, perpetuando assim a transmissão de poder e
construção e fortalecimento da elite branca brasileira.
Não existe um conjunto
de leis em nenhum país das Américas que garanta oportunidades iguais para
negros e brancos que porventura habitem esses territórios. Como na época
colonial, os brancos fartam-se à mesa, atirando as sobras para os negros, que
orbitam a mesa como se fossem cães famintos, que em estado de miséria absoluta,
concordam em cumprir o humilhante papel de ser grato ao seu escravizador.
Os indicadores sociais
mostram, de forma didática, que existe um enorme fosso entre a população branca
e a negra. Essa lacuna impede que negros entrem no castelo da promoção
social, da cidadania, da justiça e do conhecimento. No castelo da boa
aventura, há um fosso onde a ponte levadiça só desce para os brancos, só os
brancos podem ter acesso ao interior desse castelo.
O interior desse reino
é uma maravilha, nele estão os melhores empregos, as melhores instituições de
ensino, belas viagens, a cultura e o lazer com todo o esplendor. Não existem
problemas como fome, miséria, saúde pública deteriorada e desemprego. No
castelo da bem-aventurança, todos se beneficiam dos benefícios econômicos e
sociais exclusivos que a população branca herdou da escravidão.
Sim, os habitantes
desse reino de fantasia, foram e são beneficiados por quase 400 anos de
trabalho escravo do povo negro. Assim dessa maneira, houve a promoção
socioeconômico e cultural de um contingente humano em detrimento a outro, que manteve-se
estagnado, sem acesso à Educação, Cultura e outros instrumentos civilizatórios.
O povo negro sustentava com seu trabalho cotidiano, árduo e gratuito a matriz
primordial que mantinha esse tipo de privilégio.
A ganância dos
detentores do poder, todos brancos, parece interminável. Embebidos na
idolatria capitalista, desenvolvem cada vez mais mecanismos de controle
socioeconômico, que aprofundam a desigualdade e o sofrimento do povo negro. Os
comandantes das grandes corporações econômicas, controlam os governos através
de suas doações financeiras para as campanhas políticas. Em troca recebem a
garantia de que nada diferente acontecerá. Que as regras do jogo continuem
sempre como está, para que o futuro de seus filhos esteja garantido e a
estabilidade seja mantida. Por um outro lado, os políticos corruptos, eleitos
com o dinheiro do grande capital, garantem através de votações suspeitas que a
democracia brasileira esteja sempre sob o controle das grandes corporações.
O parlamento brasileiro
pode corrigir as assimetrias sociais? Sim, pode. Basta que haja um conjunto de
ações políticas estruturantes que garantam o acesso dos negros aos espaços que
lhes são vedados. A justiça aconteceria se os negros pudessem acessar todos os cursos
nas melhores universidades públicas do país. Que pudessem lhes abrir as
portas do poder para que pudessem ter acesso a bons empregos, com os quais
pudessem constituir suas famílias, colocando seus filhos em boas escolas, para
que assim conseguissem um dia alcançar a tão sonhada igualdade.
Um dos maiores desafios
de nossa nação é garantir a verdadeira abolição através da paridade de
desenvolvimento humano entre os contingentes negros e brancos, efetivada
através de políticas públicas robustas e estruturantes.
Mas não é isso o que
acontece atualmente. Para que o controle da riqueza permaneça entre os
seus, políticos e brancos poderosos mantêm os negros em uma dimensão
difusa e vulnerável, para que eles jamais tenham forças para lutar. A
necessidade de trabalhar duro para sustentar suas famílias, os impede de
lutar. O medo de perder o emprego e de não poder levar o pão de cada dia
para os filhos os desencoraja a lutar. É um projeto criminoso, na medida em que
reduzem os direitos dos trabalhadores, a carga horária aumenta e o período de
descanso diminui. Como as empresas utilizam cada vez mais a tecnologia, as
demissões de trabalhadores crescem sem parar. Com as demissões aumenta o
tamanho do exército de reserva de mão de obra e assim os salários são
achatados. Forma-se um círculo vicioso onde a legislação capitalista e patronal
promove a desagregação do tecido social laboral através de ataques sistemáticos
ao ‘welfare state’.
Os transportes se
transformaram nos novos navios negreiros. Parece ironia, mas se compararmos com
os negros que vieram da África sob grilhões nos porões dos navios, para cumprir
o triste destino da escravidão no novo mundo, com os de agora, podemos
constatar que os modelos se perpetuam sendo que na escravidão moderna criada
pelo neocolonialismo.
As algemas são
invisíveis, mas ainda nos acorrentam aos pelourinhos contemporâneos. As
bolas de ferro ainda estão amarradas aos nossos tornozelos, na medida que
perdemos o direito de ir e vir pelo fato econômico. Nossas comunidades são
senzalas modernas, onde não há saneamento básico, pouca água potável,
eletrificação decente, saúde de qualidade e transporte cada vez mais precário.
O estado só comparece com o aparato policial. Esta é a triste realidade do povo
negro no Brasil.
Então, irmãos, o que os
governos, os estados-nações do Novo Mundo fizeram além de enriquecer, para
trazer paz, justiça e liberdade? Nada, absolutamente nada! A única
medida tomada no pós-abolição da escravatura foi a organização da polícia militar
enquanto órgão de controle populacional, visando também o controle da população
negra que agora livre perambulava pela cidade em busca de oportunidade
profissional. A polícia, o judiciário e os governos em geral são
constituídos com a premissa de defender quem tem de quem não tem. Os
países latino-americanos são exemplares no cumprimento do ditado popular que
diz ser a justiça um cobra que só morde os que estão de pés descalços.
Com as políticas
neoliberais em vigor nas Américas, a população negra se distancia cada vez mais
do que se pode chamar de bem-estar social. Há cada vez menos hospitais
públicos e cada vez mais planos privados de saúde e remédios. As escolas
públicas são canibalizadas intencionalmente para que o sonho de todos os pais
afrodescendentes seja matricular seus filhos em uma boa escola
particular. Além de ter um plano de saúde da família e uma boa escola
particular voltada para o bem-estar da família, os negros são obrigados a
trabalhar por longas jornadas de horas. Viajam longas distâncias em
transportes de péssima qualidade, sujeitos a quebras mecânicas e assaltos por
parte de malfeitores. O sonho de luxo de um trabalhador negro é poder dormir.
Envolvidos pelo moto contínuo da ciranda cotidiana avassaladora, vive com
pressa como o coelhinho de Alice no País das Maravilhas: sempre com muita
pressa. A necessidade de cumprir todos os seus compromissos financeiros no
final do mês, ele nem pensa em lutar contra este sistema que o oprime. Procura
o melhor enquadramento no sistema para manter sua família em estabilidade
financeira e emocional.
Existe um mundo
invisível, um lugar entre o nada e lugar nenhum onde são pensadas essas políticas
genocidas. Os atores que conduzem o espetáculo não possuem faces. São
números nas telas das corretoras de valores. São anônimos nos pregões das
bolsas de valores. Eles que põem os negros em marcha contínua para que não
parem para pensar nem protestar.
O capitalismo está
automatizando cada vez mais a sociedade. Em 20 anos, a profissão bancária
não existirá mais, assim como inúmeras outras não mais existirão. A
população negra está cada vez mais onde sempre esteve, alijada do mercado de
trabalho, ameaçada pelo desemprego, assolada pela fome e ignorância. É um
projeto de perpetuação da elite caucasiana. Nós, negros, estamos
retornando aos navios negreiros contemporâneos. Eles tiram nossos
empregos, e nos seduzem com a falácia do empreendedorismo, uma jogada brilhante
para abafar rebeliões, jogar água fria na panela de pressão que está prestes a
explodir.
A ideia de
empreendedorismo é um capítulo à parte no debate racial em que estamos
inseridos. A proposta de ter seu próprio negócio e ficar rico é a ilusão
construída e tábua de salvação dos desempregados e dos negros
desesperados. O orgulho de ser empresário, de construir fortuna, é o
principal sinal de que o negro engoliu a isca capitalista. Mal sabe que o
sistema o fará se endividar para abrir um novo negócio, que infelizmente não
terá capital para seguir em frente. Após um breve período de encantamento,
sentirá o duro golpe da realidade. Os bancos não emprestam dinheiro e
nosso herói empreendedor totalmente endividado retorna à fila do desemprego
depois de vender tudo o que tinha para construir seu castelo de areia oferecido
pelo capitalismo.
São mundos invisíveis
que se constroem e reconstroem diariamente para que os negros possam acreditar
que é possível vencer, mas não é. Digo que não é porque os indicadores
sociais nos afirmam isso. A miséria está aumentando cada vez mais e dentro
dela estão os negros majoritariamente. O sistema capitalista torna os
ricos mais ricos e os pobres mais pobres. Quanto mais desempregado, mais
aumenta a competição por uma vaga de emprego e os salários diminuem junto com a
eficácia das leis trabalhistas que praticamente não existem mais. Os
mundos invisíveis criam a ilusão de que as oportunidades são iguais para todos
e atacam a ação afirmativa, os sistemas de cotas raciais, nos chamando de
incapazes e tecendo loas à meritocracia. A grande ironia é que os que se
beneficiam de 400 anos de trabalho escravo produzido por negros, dizem que os
negros querem viver sob benefícios, que o mérito é que vale.
A invisibilidade não
nos é imposta. Faz parte do projeto de perpetuação do poder das
elites. Como pensar o Quilombo dos Palmares no Brasil que durou 100 anos e
enfrentou 18 expedições imperiais. Sim, nos longínquos 1595 negros e
negros em rebelião fugiram de seu cativeiro e fundaram a primeira república
socialista livre das Américas. No fundo, é até vergonhoso que em pleno
século XXI a nossa capacidade de reagir é próxima de zero. Que nossos
ancestrais nos perdoem.
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