EU E O EMBAIXADOR
O Negro na TV e a Invisibilidade Programada
Certa
vez tomava café da manhã com um embaixador de um país africano em um hotel na
zona sul da capital do Rio de Janeiro. O diplomata educado nas melhores
universidades inglesas carregava uma expressão iracunda, poderia se dizer até
feroz. Inquiri se estava tudo bem e ele me respondeu entre dentes o porquê de
permitirmos que um crime tão hediondo fizesse parte da rotina cotidiana de
nosso país. Não entendi bem e perguntei qual seria o crime e ele me respondeu
com dureza: invisibilidade.
Sua ira
era natural. Ao acordar no hotel da Praia de Copacabana, ligou a TV enquanto se
preparava para o encontro comigo, um representante de uma organização negra
brasileira. Segundo ele. Aos poucos foi tomando pé da situação e sua atenção
passou a se fixar na programação da TV do nosso país. A medida em que trocava
de canais, sua surpresa aumentava e com ela a mais legítima indignação.
O
embaixador era um homem de sólida formação acadêmica. Passou parte de sua vida
em Cambridge, uma das mais conceituadas instituições de ensino da Inglaterra e
do mundo. De suas salas de aula saíram mais de oitenta vencedores do Prêmio
Nobel, além de ter formado cidadãos que transformaram o conhecimento da
humanidade, como Issac Newton, Charles Darwin e Stephen Hawking.
O
racismo estrutural brasileiro deixou o embaixador africano aturdido após a
constatação da invisibilidade programada do negro nas grades de programação de
todos os canais. Além do mais, há um segundo fator ainda mais intrigante,
segundo ele alegou, q1ue é a propaganda. Os comerciais nos canais de TV
apresentam majoritariamente atores e atrizes caucasianos. O que para ele é um
contrassenso econômico pois a população brasileira possui mais de 50% de
pessoas não brancas que consomem os produtos que são anunciados diariamente na
programação. A única explicação possível, segundo o embaixador, é que é mais
lucrativo para os grupos econômicos manterem os negros distantes das imagens de
seus produtos, pois, seus pensamentos canhestros e supremacistas, consideram o
povo negros “desagradável de se ver na TV”.
Oriundo
do país que possui a maior população negra do planeta, cerca de 60 milhões de
nacionais, o diplomata não compreendia como os negros brasileiros se submetiam
a uma situação racista como esta.
Coberto
de razão, tristeza e de indignação, o embaixador partiu se sentindo triste com
o que viu por aqui. Disse-me pesaroso, que não conseguiria deixar de pensar
durante a viagem de volta para seu país, sobre a construção ou desconstrução da
autoestima das crianças e da juventude negra do Brasil. Que futuro esperar para
esses seres humanos que Têm diariamente sua ancestralidade ocultada,
invisibilizada e criminosamente saqueada em seus mais arraigados valores
culturais, científicos e espirituais.
Saí
daquele café da manhã pensando em quantas meninas negras desse país sonharam um
dia em ser “Paquitas” do programa da Xuxa. Em quantos meninos negros sonharam
com a atuação em uma telenovela que não fossem marginais ou “o melhor amigo” do
personagem protagonista branco. O mundo do show business na TV reserva espaço
para personagens negros caricatos como o que protagonizava nosso inesquecível
mangueirense Mussum, onde era o adorador da cachaça e da ignorância.
A TV
possui enorme participação na construção do imaginário popular. Suas
dramaturgias paralisam o país de norte a sul e eles através de um processo de
dominação e perpetuação da subalternidade do povo negro, o colocam dentro dos
dramas como empregadas, escravos, pajens, onde geralmente são ridicularizados,
escrachados e até tratados como animais pelos personagens brancos. Há no fundo
uma “macunaimização” do negro, tornando-o preguiçoso e indolente, negras
sedutoras e sempre à disposição dos agrados do sinhozinho ou de negros fiéis ao
senhor até a morte, traindo inclusive seus irmãos de infortúnio. É uma tragédia
sociológica que aliada á necropolítica se tornou uma bomba-relógio
anticivilizatória.
O
projeto é assim: Quebrar a autoestima quando há, desqualificar o comportamento,
determinar um tipo de moda e de costumes onde o negro não possa ser inserido ou
se inserir, manter o discurso estruturante de poder através da academia branca
e elitista.
Os meios
de comunicação perderam há muito, se é que já tiveram um dia, a característica
de comunicação. Hoje são meros veículos de publicidade que inserem em suas
grades comerciais programações de entretenimento para que o espectador fique
atento à frente do aparelho para que as mensagens comerciais possam ser
exibidas. Tanto que nos momentos de maior suspense das tramas, a exibição é
interrompida para a apresentação dos comerciais.
Em
nenhum desses momentos a representação do povo negro é apresentada como um mero
cidadão comum. Na televisão os comerciais de produtos para bebês, os
pequerruchos são sempre brancos e as famílias dos reclames de margarina parecem
que são escandinavas. Em relação às mulheres negras é um massacre. Somente
mulheres brancas consomem absorventes, vinhos, voos internacionais, decoração
de interiores e internações em clínicas de estética.
Tudo
isso acontece impunemente, de maneira sutil e descarada, como se fossemos um
país nórdico. É uma vergonha! É ultrajante, criminoso, é uma situação
vergonhosa e preconceituosa que entra na casa de centenas de milhões de
brasileiros todos os dias, sob bordões de eficiência e qualidade.
Nunca
mais tornei a ver o embaixador. Sua indignação porém jamais pude esquecer.
Aquele café no hotel da praia de Copacabana continua até hoje causando
embrulhos em meu estômago e causando desconforto. Perguntei ao embaixador como
era a políticas de comunicação no país dele. Ele respondeu que em seu país as
250 etnias negras hegemônicas no poder não permitem que o eurocentrismo
provoque o massacre existencial que comete no Brasil. Nunca esqueci de uma frese
que me disse: “Em meu país, os juízes são negros, os parlamentares negros, os
pilotos de avião negros e os comandantes dos navios também são negros. Somos o
25 PIB do planeta e fazemos isso sem os brancos nos controlarem. Nós fazemos as
leis, nós os negros governamos nosso país”.
Lembro
certa vez da surpresa de um amigo de faculdade quando disse que nos países
africanos os negros faziam tudo que aqui é feito pelos brancos, no que concerne
ao poder político e em muitos casos econômico. Meu amigo demonstrou um grande
espanto pois isso nunca havia o passado por sua cabeça. Sua mente ainda vivia
no período colonial e por assim acontecer, com o pensamento da população
mundial, para os negros por falta de referência e para os brancos por
conveniência mesmo, o racismo gera a falsa premissa que os brancos são os que
devem controlar a sociedade.
Os
negros precisam avançar para além dos esportes e da música enquanto seres
dotados de expertises fantásticas. Os meios de comunicação de maneira
ciclotímica reproduzem o apartheid invisível e o racismo institucional no
Brasil.
É fundamental que façamos o pequeno exercício de nos sentarmos diante de um aparelho de TV por uma hora na programação e qual o papel que eles e marcarmos em uma folha de papel quantos negros apareceram durante este período e em qual situação se encontravam. Penso que seria um bom início para que possamos um dia, nos manifestarmos melhor acerca da democratização dos meios de comunicação, no que tange aos acessos de todos os grupos étnicos da nação em relação de igualdade.
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