A MÃE NEGRA E O MAGNETO
Existe uma coisa chamada “aperto no peito”. É um mix de
sensação fisiológica com instinto e metafísica. Mas como se desenvolveu com
tanta eficácia essa estranha e improvável maneira de sentir? Obviamente que
foram as mães. Quem mais poderia conjugar um conjunto de emoções tão complexo,
que interage simultaneamente com diversas transversalidades? Somente as mães mesmo. Porém, algumas mães, de
ofício, são mais mães que outras. Sim, as mães possuem um sexto-sentido que só
é desligado quando se ouve o barulho da chave girando na fechadura. Geralmente
nas madrugadas frias da vida, o tilintar das chaves no móvel da sala é a senha
sagrada para as mães dormirem em paz, agradecendo a Deus por mais uma vez ouvir
o barulho da chave mascando em giros lépidos as intrínsecas engrenagens da
fechadura.
O Brasil é um país perigoso para viver. Anualmente morrem
50 mil pessoas assassinadas e outras 60 mil de acidentes de trânsito. Esses
números nos assombram ao indicar que de trinta em trinta anos o Brasil perde um
contingente de cidadãos equivalente a população do Uruguai, somente através de
mortes violentas.
A violência brasileira tem um alvo preferido que é a
população negra. Das 50 mil pessoas assassinadas, 75% são negras e desse grupo
de 75%, 92% são jovens entre 15 e 29 anos. O que isso quer dizer? Que dentro de
algumas gerações estaremos somente com raros grupos de juventude negra em nosso
país. É um genocídio lento e cruel, onde a necropolítica age com seu poder
avassalador de destruição de vidas.
Diz o ditado popular que na briga entre o mar e o rochedo
quem apanha é o marisco. Pois é, nesse caso as mães são os mariscos. O mar da
sociedade e o rochedo da impetuosidade do jovem rebento, acabam por surra essas
mães que conhecem bem os riscos que se abatem sobre os jovens nas grandes
cidades brasileiras.
Mas umas mães sofrem mais que as outras, na medida em que
os territórios onde vivem são diametralmente opostos no que tange à segurança e
qualidade de vida. As mães de classe média providenciam desde cedo um cartão de
crédito para seus filhos, levam e buscam os filhos de carro, nas festas e
eventos sociais. Possuem contas em aplicativos de transporte e usufruem de um
passaporte fundamental para transitar pela cidade que é a corda pele branca.
Ser branco não é uma garantia de imunidade social, até
porque pois ninguém pensa nesse tipo de coisa. Mas ser negro passou a ser uma
ameaça social. Os dados acima mostram claramente que ser um jovem negro corre-se
o risco de morrer baleado pelas ruas da cidade, em seus bairros ou até dentro
de casa por bala perdida.
Os fatores que influenciam essa pérfida mas real
estatística é o resultado da abolição da escravatura que ainda está por
cumprir. Ao serem libertos por força da Lei Áurea, os então outrora cativos não
receberam por parte do estado brasileiro qualquer tipo de política pública que
visassem sua reintegração à sociedade livre.
Relegados a segundo plano ao receberem a cidadania de
segunda classe, os escravos recém libertos não tiveram alternativas mínimas
para que pudessem recompor sua estrutura social diante do novo desafio da
sociedade que se apresentava para ele. Acostumado com o modo de vida da senzala
e da fartura de frutas e legumes do campo, viu-se enxotado das fazendas que
agora absorviam mão de obra europeia, com o esforço governamental de
embranquecimento da matriz populacional brasileira.
Aos negros sobrou as migalhas da sociedade. Sem recurso
para adquirirem imóveis, procuraram ocupar as terras de ninguém, terras sem
valor nas longínquas periferias ou nos morros da cidade. Assim, podiam
trabalhar na prestação de serviços ou em biscates e quebra-galhos, com a firme
intenção de apenas sobreviver.
Esses territórios ocupados pela população negra sempre
foram esquecidos pelo poder oficial. Casebres de madeira e sem água ou
saneamento básico, analfabetismo galopante, doenças e falta de oportunidades,
geraram um a herança maldita onde o testamento principal era a abreviação da
vida. Vida sem prazer, sem cultura, que se não fosse o samba nem sei como
fariam para sorrir e esmagar as mágoas sob os passos intrincados dos rodopios
que desafiam a lei da gravidade e desenham o improvável como uma tela
surrealista.
Sem educação formal, sem emprego estável e vivendo em
habitações precárias, o povo negro se reergueu do cativeiro e partiu para se
integrar na cidade como ser livre. Muito rápido aprendeu que era tudo uma
grande balela. Que a escravidão havia findado pela lei mas seu instituto
permanecia intacto na sociedade. Brancos e negros seguiam apartados como na
África do Sul e estados Unidos, sendo que aqui os sabidos do poder convenceram
a população que eram todos iguais e que aqui não existia racismo.
Os territórios precarizados ocupados pela população negra
no pós-abolição ainda persistem renitentes com suas assimetrias sociais,
econômicas e ambientais. Hoje em dia, apesar do modo de vida contemporâneo,
encontramos o analfabetismo, a miséria e a ausência crônica do poder público.
Há um poder paralelo instalado que dita as normas de conduta da comunidade e
instala tribunais de exceção em julgamentos regidos por lei própria.
O fortalecimento desses grupos de narcotraficantes tornou
a comunidade um território a ser combatido ou dominado. A partir de netão os
moradores dessas comunidades, majoritariamente de população negra, passaram a
ser vistos como uma grande ameaça à sociedade. Os oriundos dessas comunidades
encontram sérias dificuldades quando estão em busca de trabalho, pois, sofrem o
apartheid do Código de Endereçamento Postal- CEP. São discriminados porque são
negros, porque habitam uma coletividade controlada por narcotraficantes, porque
vivem próximos ao crime, porque usam celular pré-pago, porque andam de ônibus e
trem, porque são maioria e porque assim podem levar perigo ao Brasil branco. O
torpe imaginário supremacista vê em cada negro um meliante, um perigo real a
ser combatido. E assim as mães negras se voltam para suas preces e patuás,
agarrando-se a seus santos de devoção, quando seus filhos e filhas saem pela
cidade em busca de trabalho, para a escola, ou divertimento e lazer.
Todo jovem negro é um alvo em potencial. Os dados são
cruéis e demonstram a triste realidade. As mães sabem disso mas ao mesmo tempo
querem considera-los cidadãos como os do Brasil branco. Alertar para não
esquecer os documentos, chegar cedo, não passar em lugares perigosos e
respeitar o semelhante são os conselhos triviais. Elas não dizem, para não
magoar, que eles devem sempre caminhar em lugares iluminados, sem algazarra,
não se colocar em situações suspeitas, não se envolver em atritos com os
brancos, jamais ser mal educado em uma abordagem policial e se manter vivo,
voltar para casa vivo. Essas são as recomendações cautelosamente não dadas,
pois se assim o fizesse, esmagaria a auto-estima dos filhos e filhas negros.
A mulher negra carrega em si a metafísica de todas as
mães mas somente a mãe negra conhece o sentimento do aperto no peito de quando
seu filho sai de casa. A cada jornada há o desespero pela volta segura, pelos
caminhos desobstruídos de toda a maldade, caminhos cobertos de amor que com
segurança atraem os filhos como um poderoso imã com dois polos de, um de
ternura e outro de amor. Apesar de toda a pobreza e dificuldades, sempre haverá
uma cama limpa e cheirosa para os filhos que voltam das ruas. Sempre haverá um
bolinho de chuva, um chocolate quentinho, uma broa de milho e um colo cheio de
esperanças. Sabem nada esses racistas. Amor de mãe negra é multiplicado por
dez. O calor de seu colo pode derreter um sol. As mãos calejadas são mais
macias que o mais suave tule.
O peito da mãe negra bate em sintonia com Palmares, com
Teresa de Benguela, com Luiza Mahin. Ninguém pode mexer com suas crianças, pois
seu poder é terrível e não mede consequências se tiver que lutar pelos seus.
Uma mãe negra é um universo de sabedoria e amor.
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