O mundo de uma criança negra começa antes da concepção, há milhares de anos que se perdem nas brumas do tempo.
Seus genitores geralmente desprovidos de poder financeiro, vivem nas periferias, em habitações precárias, sem estruturas mínimas de saneamento e em espaços ambientalmente degradados, onde o estado só comparece com a polícia em cotidianas ações violentas e perigosas.
A mãe negra daquela criança não possui condições financeiras de adquirir um plano de saúde que garantiria a ela o conforto, a tranquilidade e a presteza dos hospitais da rede privada, sempre bem equipada e com equipamentos e exames em perfeito estado de funcionamento.
Todo o acompanhamento da gestação será em hospitais públicos, depauperados, geralmente sem profissionais à disposição, sem medicamentos gratuitos e com instalações em péssimo estado, oferecendo inclusive sério risco à parturiente através da violência obstétrica.
Ao nascer a criança negra produz uma redoma de amor e carinho, portadora que é de esperanças renovadas para seus pais e família. Porém, seu mundo começa se tornar estranho e diferente, pois, sobre seu berço, não existem móbiles com anjinhos negros. A decoração de seu quarto, se houver um quarto, é sempre eurocêntrica, com personagens de outra etnia que não a sua.
Aquela criança negra vai crescendo feliz, pois em sua inocência não percebe que seu mundo real será precedido por um mundo invisível, que a manterá presa em um campo de retenção indetectável durante grande parte de sua vida. Porém, em seus primeiros anos de vida, esse campo será tão aceito e sutil e que para ela esse é o mundo real, enquanto, que na verdade, esse é o mundo invisível, o mundo de Nárnia ao contrário, onde para se adentrar nele a criança tem que sair da proteção do armário e se atirar em um mundo tenebroso e cruel, onde sua vida será massacrada lentamente desde o nascimento até a morte.
Aquela criança negra vai se desenvolvendo, já tendo então deixado de lado a ausência de anjinhos negros para trás. Aprende em suas igrejas que os deuses e santos são brancos de barbas brancas e que nas aulas de formação religiosa nas manhãs de domingo, não há negros em sua ancestralidade. Apresentam-lhe um Deus que castiga, flutuando entre as nuvens com longos cabelos brancos e barbas brancas, cercados por anjinhos brancos de asas brancas. Para aquela criança, o sagrado é uma deferência que Deus escolheu para as crianças brancas, pois, elas estarão livres de seus pecados e poderão ascender aos céus.
O desenvolvimento daquela criança negra será um corolário de inconformismos e sofrimentos em um país de matriz multirracial. Nos livros de contos de fadas ela não encontrará nenhum rei, rainha, príncipe ou princesa negros. Aprenderá que a bondade, a generosidade e a realização espiritual se dá em valores caucasianos. Nas histórias em quadrinhos o personagem negro de maior destaque é Cascão da Turma da Mônica que não toma banho de jeito nenhum e o Pelezinho que tem suas virtudes circunspectas às habilidades futebolísticas.
A criança negra vai crescendo e chega o momento de iniciar sua vida escolar. Momento de grande alegria e expectativa por parte dela e toda sua família. Não sabe em sua pura ingenuidade o mundo invisível que a aguarda. Seu ingresso no mundo real se dá geralmente através das escolas públicas onde seus profissionais lutam bravamente para oferecer ensino de qualidade, que possibilitem àquela criança competir em igualdade de condições com as caríssimas escolas privadas da burguesia. Aquela criança está sob a coordenação cognitiva do mundo invisível, onde lhe é passado que através de seu esforço e dedicação, poderá realizar todos os seus sonhos, através do aprendizado no ambiente acadêmico. A criança parte feliz para uma jornada que lhe invariavelmente lhe será adversa por quase toda a sua vida.
A partir desse momento terá início a luta titânica do mundo invisível com o mundo visível. O mundo invisível, em seus mais puros requintes de perversidade, lhe mostrará um mundo maravilhoso, que poderá ser conquistado caso ela tenha disciplina e obediência aos valores impostos pela sociedade eurocêntrica. É como aquela imagem do burro com uma vara amarrada ao pescoço e com uma cenoura na extremidade da vara à sua frente. O burro caminha eternamente tentando alcançar a cenoura sem nunca porém consegui-lo.
Aquela criança negra passará grande parte de sua vida buscando a cenoura dourada dos seus sonhos sem contanto poder consegui-la, pois, o prêmio por uma formação de qualidade reconhecida pelo mercado profissional é oferecido somente aos caucasianos da classe média, que nascem em vantagem competitiva em diversos itens como nutrição, ambiente familiar moderado, habitações de acordo com suas necessidades e acesso à engenhos de comunicação eficientes, cultura e bens materiais.
Algumas daquelas crianças negras desistem no meio do caminho. Muitas delas não conseguem suportar a transição da escola de primeiro segmento para o ensino médio e partem para o sub emprego no mercado de trabalho, pois sua família não consegue suportar um membro não produtivo que necessite de alimentação, roupas, remédios e afins.
O mundo invisível em sua perversidade inicia a formação do exército de mão de obra disponível que propicia ao capital oferecer baixos salários em suas corporações econômicas, para uma massa de desempregados que anseiam por uma vaga no mercado de trabalho, ou um lugar ao sol como costumam dizer. Mais uma vez o mundo invisível se manifesta em sua necropolítica ao gerar uma imensa competição entre os que nada possuem, evitando assim a sedição e o movimento popular organizado por justiça e igualdade social. Com esse mecanismo sórdido, o mundo invisível mantem o “rebanho” ocupado em se colocar no mercado de trabalho e não em lutar por melhores condições de vida ou de sobrevivência até.
O mundo invisível é muito atuante no período escolar e acadêmico da população negra. Ele em seu pérfido refinamento, prepara os filhos da burguesia branca para ocupar os espaços de poder na sociedade. As escolas da elite são caríssimas e sempre se constituíram no principal óbice para que jovens negros pudessem acessar educação de qualidade. Ao construir esse muro de bloqueio ao acesso invisível, o mundo invisível garante a perpetuação de sua existência. É o modo de racismo mais sutil que existe, pois, leva a sociedade acreditar que os meios de acesso são justos e meritocráticos.
O sistema demolidor da autoestima do mundo invisível tem seu início nas primeiras séries das escolas, onde as crianças negras são alcunhadas das piores designações possíveis, destruindo suas autoestimas e gerando um sentimento de inferioridade que em muitos casos as acompanhará pelos restos de suas vidas.
O sistema do mundo invisível é cruel no ambiente escolar. Apesar de esforços tímidos, nada é capaz de deter a força do projeto do mundo invisível. A formação do professorado não compreende com lucidez a desconstrução do racismo e a decolonização cultural eurocêntrica. A cultura não é somente eventos e entretenimentos. cultura é a forma de viver de um povo, seus legados, seus costumes, sua constituição enquanto nação. Por conta da formação muitas vezes incompleta, o corpo docente das instituições de ensino pode repetir os valores tradicionais da sociedade aristocrática burguesa, causando assim um dano irreparável na formação e no desenvolvimento de seus alunos, brancos ou negros.
Os jovens negros crescem tentando superar o racismo que povoa seus cotidianos. Ao romper a barreira da infância e entrar na pré-adolescência eles têm contato com a maior dor que podem sentir enquanto seres humanos que é a rejeição do amor de uma paixão. Envolvidos pelas tramas do mundo invisível, não atentam que a cor, a melanina, a epiderme, será uma barreira decisiva em suas relações afetivas dali por diante. As meninas se encantam e se apaixonam pelo menino loiro de olhos azuis, de poder aquisitivo maior, com família economicamente estabilizada. Em muitos casos são estimuladas pelos genitores a ensaiarem uma relação afetiva com os meninos detentores desses atributos. Os jovens negros não são opção preferencial das meninas brancas e como foram criados envolvidos pela doutrinação eurocêntrica, passam a cobiçar essas meninas, em detrimento às meninas negras da escola ou da comunidade. Então o mundo invisível se torna mais poderoso ainda, pois, faz o negro rejeitar, recusar o outro negro, desejando viver com uma pessoa diferente de sua etnia, que em certos aspectos está renegando. Por um outro lado as meninas negras sofrem racismo por diferentes vias e tristemente pelos seus iguais. Cria-se então a desordem na compreensão afetiva dessas pessoas tão jovens e já tendo que administrar a dor da rejeição por conta de suas características étnicas. Mais uma etapa vencida pelo mundo invisível, onde ele massacra a autoestima e a força de representatividade da juventude negra. Essa juventude talvez carregue até o túmulo os dissabores da rejeição de amores tão imberbes e inocentes, O resultado poderá ser visto anos depois nos casamentos e nas relações maduras, onde sempre surgem fagulhas das cinzas da adolescência e dos amores platônicos.
Algumas daquelas crianças negras conseguem chegar aos cursos de graduação superior, onde o funil de recepção é muito estreito e alguns mecanismos de ação afirmativa são necessários para garantir o ingresso de negros nas universidades públicas, onde há uma luta fenomenal por vagas em seus cursos, todos de excelência.
Realizando um retrospecto sobre a desigualdade social e racial na educação superior, podemos constatar que o sistema de cotas sempre existiu na universidade públicas desde sua fundação. O percentual de brancos nas universidades públicas sempre girou em torno de 97%, cota praticamente irremovível até a década de 60. Com o crescimento do ensino técnico no país, uma leva de negros e pardos passaram a sonhar com o acesso nas universidades públicas e assim foram construindo lentamente os patamares inferiores da densidade social e racial naquelas instituições. Com o advento das cotas raciais inicia-se uma verdadeira revolução nas universidades públicas, com debates acalorados entre cotistas, calcados nas centenas de anos de escravidão e da negação de acesso ao ensino, e dos meritocratas, que defendiam o acesso através do mérito somente, onde deveria ser jogar com as regras do jogo estabelecidas por eles. O debate chegou ao Supremo Tribunal Federal – STF, que garantiu o tratamento desigual para os que foram desigualmente tratados pelo estado brasileiro.
O sistema de cotas garantiu um incremento de jovens negros nas universidades nunca visto antes. Porém, a burguesia ainda manteve alguns nichos intactos como os cursos de Medicina, Engenharia, Direito e Administração, entre outros. Os negros em sua maioria optaram pelas ciências sociais, onde a competição não é tão acirrada e o conjunto de seres humanos com conteúdo étnico mais diversificado.
O mundo invisível continua operando com intensidade nas universidades. Primeiro, seleciona para os melhores postos de trabalho os candidatos oriundos das universidades de excelência, detentores de coeficientes de rendimento elevadíssimos. Depois passam a exigir outros dotes como domínio de idiomas, habilidades específicas diversas e redes de relacionamento comprovadas. Ao fim priorizam a pós graduação em universidades estrangeiras do hemisfério norte, inviabilizando assim a possibilidade de um jovem negro e pobre, oriundo das camadas populares da população conseguir uma vaga de trabalho em uma empresa de ponta.
Aquelas crianças negras que não conseguiram superar o ensino médio, serão a força de trabalho do país, o exército de reserva, a peãozada como costuma se dizer no chão de fábrica. Os que conseguirem superar o ensino médio estarão em postos intermediários nas cadeias produtivas e alguns através de muito esforço conseguirão concluir o curso superior nos cursos noturnos de alguma universidade privada ou então através da nova modalidade EAD, que cada vez cresce mais no país.
Os negros que concluíram a graduação superior lutarão bravamente por um espaço no mercado de trabalho, que sempre optará prioritariamente pelo fenótipo caucasiano masculino. Muitos desses negros egressos das universidades, tendo tomado percepção da realidade do mundo invisível, serão obrigados a assumir a pecha de “empreendedores”, que significa dispor de seu conhecimento adquirido à duras penas e imenso sacrifício em atividades não remuneradas, onde sua produção é que lhe garantirá o ganha pão. O mundo invisível também opera em nível governamental e criou o SEBRAE, que nada mais é que uma válvula de escape da panela de pressão que é o elevado índice de desemprego no país. A ilusão do empreendedorismo em um país de miseráveis é a mais tosca visão do fracasso de um projeto de nação que deveria incluir sua população negra no acesso à riqueza e ao desenvolvimento.
O Mundo Invisível trabalha diuturnamente para que as escolas sejam cada vez mais precarizadas, pois assim, faz a população se revoltar contra o sistema público e valorizar as redes privadas de ensino. Lentamente faz a sociedade migrar para o ensino pago, e os que não podem pagar são obrigados a deixar os filhos em instituições que poderiam ser de excelência, mas infelizmente não são. Dizia o educador Darcy Ribeiro que a destruição da educação pública brasileira não é um acaso e sim um projeto. Torna-se comum encontrarmos pessoas negras talentosíssimas que foram obrigadas a abandonar a escola pelos mais diversos óbices e problemas. Grandes Pesquisadores, Médicos, Advogados, Engenheiros, Sociólogos, Administradores e toda uma gama de profissões perdem anualmente milhares de negros e negras talentosos, que tiveram seus sonhos interrompidos pelo poder da força do capital que é a energia motriz do Mundo Invisível.
Por fim, aquela criança negra que veio ao mundo cheia de sonhos e alegrias, chega ao final da vida sem ter realizado suas metas de prosperidade, ancorado que foi, profissionalmente, em vendas de cotas de pirâmides financeiras, ou então no serviço público, o último refúgio de conforto de um negro antes de se despedir desta vida, provavelmente sepultado em cova rasa, acomodado em um caixão de terceira.
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