Luiz Gonzaga Pinto da Gama, chamado o ‘Spartacus Brasileiro’, é um dos maiores brasileiros de todos os tempos. Nasceu na cidade de Salvador, capital da Bahia, em 21 de junho de 1830, em um sobrado da Rua do Bângala, na Freguesia de Santa’Anna. Sua mãe, Luiza Mahin, segundo alguns historiadores, foi uma princesa da Costa da Mina, sequestrada de sua casa real e trazida para o Brasil na condição de escrava. Do pai de Luiz Gama ninguém nunca soube o nome. O que se sabe é que foi um fidalgo branco de posses e pertencente a uma tradicional família baiana de origem portuguesa.
A mãe era mulher culta, letrada e islamizada. Conseguiu comprar a própria liberdade no ano de 1812. Alforriada então, inicia sua participação em inúmeros levantes de escravos que lutavam por liberdade na Bahia. Luiza Mahin sempre foi uma revolucionária convicta, participando de quase todas as rebeliões de cativos que sacudiram a Bahia no início do século XIX, com destaque para a Revolta dos Malês e também a Sabinada. Sua casa servia de local de encontro dos insurretos e Luiza, como trabalhava como quituteira nas ruas de Salvador, era encarregada de distribuir as mensagens secretas para os revoltosos, com as instruções de reuniões e atos de sabotagens. Foi perseguida e refugiou-se no Rio de Janeiro onde ao chegar integrou-se em outras rebeliões. Algumas fontes dizem que foi presa e deportada para África. Outras asseguram que refugiou-se no Maranhão, onde desenvolveu o Tambor de Criola. Seu verdadeiro destino permanece em mistério até hoje.
Luiz Gama foi o homem que Rui Barbosa, o Águia de Haia, se referiu na Conferência sobre o Abolicionismo de 1911 da seguinte maneira: “...foi uma rara fortuna ter cultivado intimamente a amizade de Luiz Gama em lutas que nunca esquecerei”. Rui Barbosa e Castro Alves formavam com Luiz Gama o trio baiano de abolicionistas mais brilhantes na capital paulista. Era no escritório de advocacia de Luiz Gama que Castro Alves, Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, entre outros, se reuniam para falar de política abolicionista, república, Direito e Maçonaria, ordem onde Luiz Gama galgou os mais altos graus da Loja América em São Paulo, um centro irradiador da abolição da escravidão e da república. Foram nas reuniões desta Loja que eles tomaram conhecimento desses ideais liberais e progressistas. A amizade entre os baianos é comprovada quando Luiz Gama levou o amigo Castro Alves ao navio que o transportaria ao Rio de Janeiro para se tratar de um acidente com arma de fogo. Do Rio de Janeiro o Poeta dos Escravos partiu para a Bahia e nunca mais retornou a São Paulo, morrendo muito jovem, retirado na propriedade de seus genitores.
Como consolidar a amizade entre dois representantes da alta burguesia baiana com um negro, vendido pelo pai aos 10 anos de idade como escravo. O menino escravo, tornou-se um voraz autodidata, que por força da vida, já que foi proibido de frequentar a Faculdade de Direito de São Paulo por sua condição racial, ensinava Direito a seus pupilos conterrâneos que nela estudavam. Porém o infortúnio do destino, a escravidão em voga e o racismo, não permitiram que ele pudesse nela estudar.
Ao completar 10 anos, no dia 10 de outubro de 1840, Luiz Gama ouviu de seu pai que fariam um passeio. Apesar de nunca falar sobre seu genitor, nem mesmo pronunciar seu nome, disse que o pai era carinhoso com ele. Porém, mesmo pertencente a uma rica família, endividou-se me demasia, metido em súcias que vivia, e o passeio de barco do menino na verdade era a sua venda como escravo para o Rio de Janeiro, em um navio de nome Saraiva. Sua mãe estava foragida por contas de sua participação em diversos movimentos sediciosos e deixou o menino com o pai até que pudessem reunir a família novamente, o que nunca mais aconteceria.
Ao desembarcar no Rio de Janeiro na companhia de um grupo de cerca de cem escravos, foi entregue a um português de nome Vieira, que possuía um comércio de velas na Rua da Candelária no centro da cidade. Vieira também comerciava grupo de escravos oriundos da Bahia em troca de polpudas comissões. O português o levou para a própria casa, onde avaliou que o menino poderia fazer companhia, servindo de pajem a seus filhos. A esposa do lusitano se afeiçoou ao pobre piá negro, assim como todas as mulheres da casa, que se encantaram com o menino tão jovem, indefeso, envolvido pelo manto da tanta penúria, porém repleto de doçura. Deram-lhe um bom banho, roupas limpas e o colocaram em uma cama para dormir, quando enfim pode ter sua primeira noite de sono tranquila e em segurança, desde que havia saído da Bahia no paquete Saraiva.
O português Vieira, com seu coração na sola do pé, resolveu vender o menino para outro traficante de escravos, que o levou com um grande grupo de cativos para São Paulo em viagem de navio. Desembarcaram no Porto de Santos e subiram a perigosa e temida Serra de Cubatão rumo a longínqua cidade de Campinas, percurso que fizeram à pé, em sofrida caravana. Tanto em Campinas como em Jundiaí, os compradores de escravos rejeitaram Luiz Gama por ser de origem baiana. Os senhores de escravos tinham notícias das revoltas de cativos na Bahia e recusavam qualquer escravo oriundo daquele estado. “Ainda mais com 10 anos!”, diziam “Já é coisa ruim desde pequeno, boa coisa não deve ter feito por lá!”. Que triste fado! Vivendo entre tantas rejeições o menino também era rejeitado inclusive como escravo, talvez o mais baixo degrau da escala humana.
O traficante de escravos sem conseguir vender o menino, o devolveu ao seu proprietário, um alferes de nome Cardoso, no centro da cidade de São Paulo. O comerciante morava em um amplo sobrado na Rua do Comércio, bem próximo à Rua Direita. Passando a viver no sobrado, Luiz Gama aprendeu diversos ofícios como sapateiro, engomador, lavador, costureiro e copeiro.
Os bons ventos da sorte começaram a lhe bafejar quando veio morar no sobrado dos Cardoso o jovem Antônio Rodrigues, um hóspede muito culto e com a mente voltada para o altruísmo e para as humanidades, estava ali para concluir seus estudos. Esse jovem mais tarde se tornou advogado e juiz de direito. Antônio Rodrigues se afeiçoou a Luiz Gama, lhe ensinando a ler, para logo depois lhe abrir as portas do mundo das ciências matemáticas e humanidades. O progresso de Luiz Gama com as letras era tamanho que passou a ensinar os filhos do Alferes Cardoso e por assim fazer, solicitou sua alforria, alegando que seu trabalho intelectual estava acima e não compreendia os ofícios de um escravo. Além disso, alegava que era um homem livre, pois seu pai era um fidalgo e sua mãe uma escrava liberta que havia comprado sua alforria. O alferes Cardoso obviamente negou a alforria e Gama após conseguir provas incontestes de sua condição de homem livre, fugiu da casa dos Cardoso e se tornou soldado da milícia estadual aos 18 anos de idade, onde permaneceu até 1854. Ocupava a patente de Cabo de Esquadra quando foi obrigado a dar baixa do serviço por supostos “atos de insubordinação” contra um oficial. Além da baixa forçada, esteve preso por 40 dias antes de ser posto em liberdade. Nos idos de 1840, em plena vigência da escravidão, a palavra de um praça negro não tinha a mínima credibilidade perante a acusação de um oficial branco. Um tribunal penal militar jamais estaria ao lado de um jovem negro de baixa patente, em detrimento ao libelo acusatório proferido por um oficial caucasiano.
Pelo que se pode observar, na trajetória de vida de Luiz Gama, desde quando foi entregue à escravidão pelo próprio pai, ainda menino e depois rapazola e homem feito, sua caminhada sempre foi eivada de revezes, onde todos, um a um foram removidos e superados, inclusive um dos principais à época que era o analfabetismo. Mais uma vez Gama teve que buscar um novo rumo para seguir em frente, pois, desde que embarcou no paquete Saraiva rumo ao assustador destino no Rio de Janeiro, longe da mãe que nunca mais veria, passou a ter a própria existência como sua principal tirana.
Luiz Gama aprendeu com a dureza da vida, que o caminho se faz caminhando. Durante os anos em que abraçou a carreira militar trabalhava nas horas vagas como Copista no escritório do Escrivão Major Benedito Coelho Neto, já então seu amigo. Também sendo amanuense, algo como auxiliar administrativo, no gabinete de Francisco Furtado de Mendonça, catedrático da Faculdade de Direito do qual também tornou-se, por seu correto comportamento e louvável saber, ordenança e homem de confiança. Serviu como Escrivão para várias autoridades policiais, sendo nomeado amanuense da Secretaria de Polícia onde ficou até 1868, de onde foi demitido a bem do serviço público como “turbulento e sedicioso”, pelos políticos dos partidos conservadores que chegaram ao poder. Luiz Gama ainda estava no período da escravidão e sua condição de negro em cargos públicos de referência incomodava o sistema escravista que se estruturava sobre a quebra da autoestima do negro, de sua alegada condição inferior, de ser quase que um objeto que falava. A sua ascensão social e política na sociedade onde o escravismo ditava as leis, certamente incomodava o poder supremacista local da época.
Como Jornalista Gama escreveu para vários periódicos onde através de sátiras defendia o fim da escravidão e a república, atacando ferozmente a aristocracia brasileira. Em seu trabalho de advogado, exercido de maneira gratuita para os negros, conseguiu libertar mais de 500 escravos. Em seu círculo de relações abolicionistas, entre tantas outras personalidades, torna-se amigo íntimo de José Bonifácio, o Moço, professor de Direito, neto do Patriarca da Independência, amizade correspondida que durou por toda de ambos.
Em julho de 1859 assiste ao nascimento do seu filho Bendicto Graccho Pinto da Gama, fruto de sua união com Claudina Fortunata Sampaio, que viria a se tornar engenheiro eletricista e que está sepultado a seu lado no mausoléu do Cemitério da Consolação. Neste mesmo ano publica “Primeiras Trovas Burlescas de Getulino”. No ano seguinte publica a segunda edição da mesma obra revisada e corrigida na cidade do Rio de Janeiro, onde mais uma vez tenta encontrar sua mãe Luiza Mahin, sem obter êxito.
A partir de 1861 Gama dedica-se de corpo e alma ao seu trabalho no jornalismo, com ênfase na “República das Letras”, focando sua verve literária e o saber jurídico na defesa das ideias liberais, republicanas e abolicionistas. Os movimentos sociais republicanos avançam juntamente com a pressão internacional pelo fim da escravidão, capitaneada pela Inglaterra com seu interesse em vender máquinas e engenhos à vapor paridos pelo ventre da Revolução Industrial.
A Junta Francesa para Emancipação dos Negros, ligada à Maçonaria, encaminha carta ao governo brasileiro para que a abolição da escravatura se torne um processo rápido e concreto. Que obteve como resposta do Império Brasileiro que seria apenas uma questão de forma e oportunidade. Todo esse movimento incendiava o país. Estados como Ceará e Rio Grande do Norte já encaminhavam seus processos de abolição, assim como o Rio Grande do Sul. Revoltas escravas aconteciam de norte a sul do país e em 28 de setembro de 1871, como um preâmbulo para a abolição geral e irrestrita, foi promulgada a Lei do Ventre Livre.
No ano de 1877, em meio ao incansável trabalho humanitário, Luiz Gama estabelece sua banca de advogados com Antônio Carlos Soares e Antônio Ferraz, onde exerce a profissão de advogado até o fim de sua vida. Doente e consumido pelo diabetes sua militância no final da vida era motivo de admiração por toda a sociedade. Mesmo assim fundou o Centro Abolicionista de São Paulo e José do Patrocínio por sua influência cria no Rio de Janeiro a Sociedade Brasileira contra a Escravidão, cujo presidente era Joaquim Nabuco. Tornou-se destacado maçom, recebendo daquela fraternidade todas as honrarias possíveis.
Morreu em 24 de agosto de 1882 na cidade de São Paulo. Exatamente 6 anos antes da abolição da escravatura, pela qual tanto lutou e dedicou sua vida de jurista, jornalista e poeta. Seu funeral foi o maior já registrado na história da capital paulista. Se fossemos calcular proporcionalmente em relação aos dias de hoje, seriam milhões de pessoas às ruas acompanhando a passagem do cortejo fúnebre.
Luiz Gama deixa como exemplo para o povo negro, que nada pode suplantar a força de vontade, a garra de vencer e a paciência para triunfar. São inúmeros recados que sua existência deixou para a posteridade. Mas alguns são basilares como a importância da educação formal na vida de todos os seres humanos. O segundo exemplo é a retidão de caráter e a determinação na crença do que é o bem natural e humano, e o último, que é a lealdade do compromisso com a justiça e a liberdade. Se hoje pessoas negras conseguem galgar patamares significativos tanto na vida pública como na iniciativa privada, com certeza há a pena, o cérebro e o olhar de Luiz Gama. Se em cada parque, praças e praias do país as crianças negras correm livres e felizes está ali o sorriso de Luiz Gama. Ele nos deixou como responsabilidade uma tarefa imensa que é defender o legado dos abolicionistas, que dedicaram suas vidas para que nós pudéssemos ter as nossas bem ao alcance de nossas mãos.
A vida de Luiz Gama é uma saga inimaginável. Se fosse no hemisfério norte, certamente teria se transformado nas mais altas linguagens culturais, artísticas e históricas. Nós escritores, poetas e amantes da liberdade, podemos homenageá-lo com lindas produções literárias que comporão essa coletânea tão especial. Traçaremos linhas de uma teia que serão o amálgama de um admirável mosaico, daquele ser humano que nasceu livre, foi tornado escravo pelo próprio pai aos 10 anos de idade, sofreu todas as intempéries da vida, deu a volta por cima e, mesmo atado aos grilhões da escravidão, soube perseverar e transformou todos os limões azedos que a vida sempre lhe ofertou em uma deliciosa e refrescante limonada chamada liberdade, para si e para todos os negros escravizados do país em que vivia e os que viriam depois.
A faculdade de Direito do Largo de São Francisco, emitiu um diploma post mortem de Direito parra Luiz Gama e erigiu um busto em sua homenagem, tentado reparar e ao mesmo tempo homenagear aquele que talvez tenha sido o maior advogado brasileiro de todos os tempos.
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