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Eu Negro

segunda-feira, 2 de maio de 2022

OLHAR DE FOLHETIM


De nada adianta chorar o que passou

O viço de outrora que o tempo levou

Foi se largando por aí, pela vida, sem eira nem beira

Pelas noitadas, madrugadas, carreiras e bebedeiras

Foram tantas tentativas, tantos erros, tantas marcas de amor

Marcas doídas e sofridas

Marcas de vida que o rouge teima em ocultar

Cumpro minha cruzada em silêncio, em solidão

Minha tosca rotina vive bares repletos de aflição

Enfrento meus moinhos de vento porém sem o escudeiro

Quero um copo amigo, quem sabe um corpo amigo, um parceiro

Um corpo como abrigo, quem sabe verdadeiro

Me abrigar das tormentas que me atormentam nesse louco mundo picadeiro

Ouvir um tango de Gardel, onde o bandoleón passional envolva meus soluços em arte e dor

Peço uma dose de amparo e o garçom me diz que acabou há tempos

Até um falso beijo amargo me faz crer que eu possa amar

Mas qual o quê!

Sigo a sina de mulher sozinha nessa vida sem afeto

Perdida na vida como cão sem dono

Perdida no próprio abandono

Consumindo sonhos e desejos

Tragando homens, álcool e cigarros

Homens fracassados e vis com seus beijos senis

Mesmo assim digo sim às propostas carentes

Não tenho porque dizer não

Sou minha dona, atrevida, sou da vida, quase bandida

Não tenho família para abraçar aos domingos

Aceito a cópula com delicadeza

A mesma delicadeza com que se confeita um bolo de noiva

Mesmo investida de falsos brios

Sei que somos humanos estranhos, diferentes, sombrios

Cúmplices indecentes em nossos sorrisos pérfidos e amarelos

Lentamente o álcool me aquece

Aos poucos me incendeia em fogo

Me entrego ao seu calor para esquecer a dor

Mergulho na falsa sensação de amor, é o que me resta, é o que tenho

Minhas dores são tão presentes que nunca se tornam passado

Marcas de uma vida sem recato

Adicta do presente devasso e hedonista

Carrego marcas e cicatrizes, gloriosas e ferozes das ferrenhas luta de cio

Não fui à lona, não estou derrotada

Sou esperta e sagaz

Sei fingir prazer, sei ser teatral

Divido pó e pecados igualmente

Não necessariamente nessa ordem

O prazer marginal tem um ótimo sabor, é agradável

O sabor do interdito nos eleva em torpor ao inimaginável

É tanto revés, submundo, falsidade

Que até parece que é amor de verdade

E quando a aurora invade o quarto atrevida e curiosa através do tule

Assusta-se com o sabor intragável do ambiente

Meu corpo é a Tróia invadida, conquistada e colonizada por um Menelau sociopata e vazio

Jaz lasso sob os escombros de um fogo que o consumiu violentamente

São abertas as cortinas do palco da vida onde o cenário é cruel e aterrador

No campo de batalha somos guerreiros feridos pela vida

Onde a indiferença e o arrependimento predominam em uma cama sem sabor

O ar fresco da manhã é tomado pelo gosto amargo da derrota e da dor

Em lágrimas ocultas apago o cigarro

Incinero nas cinzas os teus cheiros de vida, das outras mulheres, do teu suor, da tua bebida

Rota colombina embriagada de um pobre pierrô de vida corroída

Não sou imortal, posso ser frágil, mas sou fatal

Sou do botequim, sou a diva dos desesperados, sou da rua

Dama dos restos, dos copos solitários e dos seres abandonados

Sou o falso sorriso que sempre diz sim

Mas meu amigo eu lhe recomendo

Nunca acredite no meu olhar de folhetim.

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