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sábado, 8 de outubro de 2022

ANNIE ERNAUX - A LUTA DE CLASSES ESTÁ EM MIM (Mario Sérgio Conti)



Até que enfim uma notícia boa, Annie Ernaux ganhou o Nobel de Literatura. Não que precisasse dele. É a grande autora de "Os Anos" que dá dignidade ao prêmio, e não o contrário. O importante é que a láurea pop-acadêmica levará mais gente a ler seus livros.

A leitura de Annie Ernaux ensina a se ensimesmar e a sair de si. A percorrer o túnel de dor e de vergonha e emergir do outro lado lacerado, mas vendo mais claro o que há de irreconciliável entre a existência íntima e a em sociedade. Só a arte radical e popular é capaz disso.

Arte radical: ela inventou um modo literário para expressar uma parte da condição humana, a de uma francesa que, nascida numa família operária, católica e provinciana dos anos 1940, se torna professora de classe média. Faz isso com o aço afiado da inteligência. Sua literatura mescla confissões sofridas com análise fria.

Combina o esgarçamento da família tiranizada pela necessidade com a sociologia de uma França que humilha os pobres. Os traumas de um aborto ilegal com a hipocrisia de uma sociedade carola. Relata sua fuga para o casamento e o congelamento numa nova família patriarcal que, com a corrosão dos anos, a encarcera noutra solidão.

Arte popular: suas frases — diretas, atentas a detalhes, de adjetivos pálidos— alternam a primeira pessoa e a terceira. Contudo, o "eu" que relata é objetivo e desconfia do que conta. E a terceira pessoa não é a de um narrador onisciente, do papai sabe-tudo dos romances tradicionais.

Embora seu engenho formal seja inventivo, ele não dificulta a comunicação. Porque o subjetivo e o objetivo não têm o mesmo peso nos seus livros: formada por células e celas individuais, a sociedade prepondera. Annie Ernaux aspira ao universal, e não à expressão de gemidos sentimentaloides de um ego cheio de si, ou astutamente comercial.

Que ela tenha se tornado popular na França mesmo estando na contracorrente; que tenha causado sensação ao ser traduzida para o inglês; e que agora lhe tenham dado o Nobel —tudo isso prova o vigor da grande arte da literatura.

Radical: Annie Ernaux é uma intelectual de esquerda de carteirinha. Era próxima do PCF e continuou comunista depois que o partido, caudatário do stalinismo até o último suspiro, virasse pó junto com a União Soviética. Marxista, batalha pela justiça social aqui e agora. Não faz média.

Popular: enquanto a esquerda caviar parisiense tinha chiliques com o levante dos coletes amarelos, lá estava ela, quase sozinha na defesa do povo irado da França profunda, vituperando a destruição dos serviços públicos organizada por Macron, o janotinha empombado da alta finança.

Radical: nas últimas eleições, Annie Ernaux integrou o Parlamento da União Popular, que conduziu a campanha para presidente de Mélenchon, candidato que pregava a ruptura. Para ela, a França insubmissa tem de pôr abaixo o sistema patronal e criar uma república que atenda os interesses dos deserdados.

O convívio entre o radical e o popular costuma ser conturbado. "A Terra Gasta", de T.S. Eliot, foi um poema revolucionário pouco entendido quando saiu. Ainda mais porque seu autor era antissemita, um reacionário de quatro costados cujo ideal era a Idade Média. Cem anos depois, o poema é um monumento que serve de emblema para a alienação moderna.

Aqui, Machado de Assis era um sereno conviva da monarquia. Mas seus últimos romances, de vanguarda, deixam entrever a torpeza da classe dominante, cosmopolita em teoria e escravista na prática. Causaram espécie, mas ficaram populares porque arreliam o presente perene. Vide Paulo Guedes, tipinho de patifaria machadiana: liberal e bolsonarista.

Annie Ernaux é um caso à parte de consonância entre estética e política, já que é uma vanguardista na forma que milita na esquerda pura e dura, além de feminista bem antes disso virar moda, atitude. Já em 2012 ela disse: "A luta de classes está em mim".

A interpenetração entre arte avançada e socialismo lembra a integridade de Brecht — mas os dois têm pouco a ver entre si por que a obra de uma é diferente da do outro. E, na vida e na arte, o que importa é a obra.

O que fica é o que se faz com as feridas abertas na alma pela luta de classes —e pelo amor, pela humilhação, pelo alumbramento, pela história, pelo sexo, pela alegria de viver e criar. Não é preciso concordar com a política de Annie Ernaux para se engrandecer com seus livros. Comece com "Os Anos", que é algo cada vez mais raro: uma obra prima."

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