quarta-feira, 30 de outubro de 2024
Eu Negro
Eu negro quando me olho no espelho costumo não gostar do que vejo. Meu eu negro se reflete em estilhaços, em uma grande entropia de cristais, que representam o desmonte de minha frágil e inconstante psique.
Me eu negro quando se reflete no espelho, traz consigo uma carga imensa de sofrimentos ancestrais. Em cada estilhaço do meu eu negro reflete dores primordiais da alma negra, violentada, flagelada e crucificada após uma ultrajante e pérfida via crucis sociológica
Quando meu eu Negro defronta-se diante do espelho estilhaçado, tenta se reconhecer em meio a tantos ‘eus’ disformes e assimétricos. São ‘não eus’ que recusam compor minha verdadeira alteridade física e emocional, como o instrumento desafinado em meio a uma maviosa orquestra. Não consigo estabelecer um acordo com meu eu no espelho estilhaçado, porque além da recusa diante da impossibilidade normativa, há uma realidade distópica atuando em moto contínuo que não abre espaço para concertações humanas
A triste saga do meu eu negro carrega consigo as cicatrizes de batalhas atávicas memoráveis. Traz consigo o luto antropológico e a perversão do cativeiro. Tanto mar salgado batendo em minha alma. Tantos porões desumanos no ventre dos navios negreiros. Tanto mar, tanto mal, tanto sofrimento que durante séculos de perversão humana, formataram um sísifos existencial, que exaure minha mente nas infinitas e contínuas escaladas dos rochedos do existir.
Meu eu negro que permanece no espelho em estilhaços, vive uma teogonia voltada para o lado humano, que passou a compreender o destino que sempre cumpriu, sempre preso a uma hermenêutica construída pelo proselitismo caucasiano, que insiste em apagar e destruir minha cosmovisão ancestral, multicultural e pluriétnica.
Meu eu negro insiste em se descobrir humano em um mundo de reflexos inumanos e hostis. A visão turva oriunda de uma falsa deidade de sociopatas eugênicos, me faz caminhar lento e claudicante nas vielas tortuosas de um mundo triste e decadente. É assustador ver e não se reconhecer. De qual mundo? Existe um mundo? Ou somente seguir em manada até o destino final? Apagar o passado soturno? Varrer para debaixo do tapete os restolhos cínicos das diferenças fenotípicas? Viver eternamente no porão enquanto outros refestelam-se em suntuosos palácios?
Interrogações seculares que permanecem e me cobram através do reflexo do espelho. Me atiçam em chamas, cobrando um modo de ação carbonário e revolucionário. Gritam em meus ouvidos, sangram meu corpo, esmagam os recônditos de minha alma. As interrogações são bárbaras e desumanas. Partem dos estilhaços do espelho como raios certeiros, tendo como alvos principais o coração e a psique negra. Penso em deixar tudo para depois. Sabendo me enganar assim como as mães fazem ao dizer para o filho insistente em pedir uma guloseima: “na volta a gente compra”. Sim, na volta talvez eu lute, na volta talvez eu sorria, na volta talvez me encontre.
O encontro do ser humano consigo mesmo certamente ocorre através da liberdade. A liberdade porém não é um constitutivo natural da alma humana e tampouco nasce compondo a personalidade da pessoa. A liberdade é um estado que reside na dimensão do sentir, do protagonismo da conquista, da sublimação do protagonismo dentro de um tempo histórico. Portanto a liberdade reside na existência de seres humanos históricos, protagonistas da história, e os negros brasileiros nunca foram convidados para esta contradança.
Viver apartado da verdadeira liberdade, a liberdade dos vencedores, dos protagonistas, daqueles que escreveram e escrevem a história é uma carga sobre humana que preciso carregar. Minha voz não ecoa no mundo branco e continua sendo ouvida com desesperança no mundo negro. Alguns brancos me ouvem com alguma curiosidade como se estivessem participando de um experimento antropológico. Esperam ansiosos que eu fale de samba e carnaval, enquanto ensaio Cheik Abra Diop, Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez.
As dimensões que nos toleram enquanto seres humanos protagonistas ficaram restritas ao samba e ao futebol. Aos tambores e à bola. Somos os restolhos civilizatórios de um continente bárbaro, segundo eles. Somos a escumalha que empreteceu a população brasileira para horror dos eugenista tupiniquins. Somos aqueles e aquelas que são confinados nas senzalas contemporâneas que são os quartinhos de empregada, onde purgamos nossa subalternidade entre quatro paredes sufocantes sem janelas.
A branquitude adora quando bradamos que o negro é lindo, que façamos gestos que significam o poder negro. Nos apoiam em todas essas coisas e depois vão ao concerto erudito nos teatros municipais da vida e nos entregam os utensílios necessários para que lavemos suas latrinas imundas.
Obviamente que estamos avançando. Eu mesmo aqui ousando escrever, me desafiando no mundo das letras, tentando viver a liberdade que antevejo nas entrelinhas que desejo nas páginas em branco. Mas quanto mais escrevo mais né desespero. Quanto mais escrevo mais me descubro e redescubro minha localização na vida, que grita em meu âmago que devo ser forte, que devo ser livre, pois somente assim poderei ajudar os meus irmãos e irmãs que vivem no mundo da ilusão ou na ilusão do mundo. Esses irmãos e irmãs são as pessoas mais importantes para mim, pois sem eles nas trincheiras, minha luta em prol da liberdade verdadeira não tem o menor sentido.
Os negros escravizados no Brasil eram proibidos de usar sapatos. Podiam até usar roupas vistosas como era comum no caso dos escravos de ganho e nos serviçais da casa grande. Porém sempre descalços, para sentir a aspereza dos caminhos, para viver sabendo ser inferiores, para compreenderem que eram os derrotados da Terra. Viver uma vida inteira descalços era a maior demonstração de humilhação e ausência de liberdade. Paulo da Portela em meados do século 20 dizia que o negro deveria se esmerar ao se vestir e estar sempre com o pescoço e os pés ocupados, utilizando sempre que possível gravatas e sapatos. Via nesses acessórios um sinal de emancipação, de respeitabilidade e liberdade para a população negra.
O espelho hoje apresenta alguns estilhaços virtuosos. A casa dia que passa mais jovens negros adentram no ensino superior, modelando lentamente uma sociedade do futuro mais heterogênea. São conquistas que além do valor individual do ser negro, requisitaram duríssimas batalhas ao movimento negro em confrontos memoráveis contra o racismo estrutural brasileiro. Nossas conquistam são lentas, pois apesar da urgência de nossas emergências, somos submetidos a um judiciário branco, machista e racista. Nosso judiciário é a tal praia onde os negros nadam...nadam e morrem na praia. O Congresso Nacional possui o mesmo perfil eurocêntrico e excludente do judiciário, transformando a vida da população negra em um verdadeiro inferno ao legislar continuamente contra leis já aprovadas, que estabelecem direitos através de algumas ações afirmativas, que propõem mecanismos de correções de diversas assimetrias raciais históricas.
O resumo da existência negra no Brasil está contido na ausência de liberdade. Na verdade é uma retroexistência lastreada pela xenoafetividade endêmica que remonta aos tempos de cativeiro do período colonial. Nossa imagem no espelho nos pede socorro, pois nossa velocidade de avanço social e menor que o avanço do racismo. Precisamos pensar ativamente na verdadeira liberdade, na honestidade epistemológica do nosso existir sem as cercas ladeadas da branquitude, sem o pôr de sol esmaecido que o racismo estrutural sempre nos apresentou.
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