quarta-feira, 5 de março de 2025

Não deixe o samba morrer

Agora cismaram que nos desfiles de escolas de samba tudo é religiosidade africana. Esse pessoal podia estudar um pouco mais os enredos sobre a cosmovisão africana e suas ancestralidades. O Continente Africano possui 54 países com mais de 100 idiomas e culturas diferentes. De muitos desses países  vieram os escravizados que participaram de nossa cons tituição indo-afro-ibérica. A empresa colonial e escravista transportou para o Brasil entre o Século XVI e o Século XIX cerca de 5 milhões de africanos escravizados, sendo que 1 milhão deles e delas morreram na travessia e foram jogados ao mar, muitos ainda vivos mas com enfermidades.
No século XVI o Continente Africano era totalmente desconhecido pelos europeus. Salvo a costa do Marrocos onde os portugueses conquistaram Ceuta em 1415, quando partiram de Lisboa com 220 navios e 50 mil homens.
A partir de Ceuta os portugueses passaram a avançar pela costa africana prevendo a instalação de entrepostos que serviriam de apoio para a carreira das Índias, completada por Vasco da Gama em 1498.
O Cristianismo na África Subsaariana ainda era muito incipiente no Século XVI mas tomou impulso com a emissão das s bulas papais Dum Diversas e Romanus ok, onde a Igreja Católica passou a permitir a escravização de não-cristaos, gentios e sarracenos. 
Os escravizados que foram trazidos para o Novo Mundo cultuavam suas religiões e credos de matriz africana, desse modo não conheciam outra religião e tampouco o Cristianismo. Voltando para a Marquês de Sapucaí, se o enredo for contar alguma história do povo negro, que construiu essa nação, necessariamente passará pelas religiões de matriz africana. A própria existência das escolas de samba está intimamente vinculada aos centros de Umbanda Omolokô e terreiros de Candomblé. Foi no intenso caldeirão cultural da Pequena África, no Centro do Rio de Janeiro, que o samba carioca começou a tomar forma. A referência principal da gênese do samba foi a casa da Tia Ciata, Iaquequerê do terreiro do famoso babalorixá João Alabá, que assumiu o terreiro do babá Bamboxé Obitikô, que voltou para Lagos na Nigéria após a abolição da escravatura. 
Tia Ciara curou uma ferida renitente na perna do Presidente Wenceslau Braz, que em reconhecimento proibiu a polícia de interferir tanto na prática religiosa do terreiro, como nas rodas de batuque que varavam as madrugadas. Existiam também outras "tias" como Amélia, Perciliana (mãe de João da Baiana), Bebiana e Carmem do Xibuca de Amaralina, que animavam as noites da Pequena África. Dali o samba foi se moldando e se espraiando para todo o Rio de Janeiro. A turma do Estácio com Ismael Silva, Bide, Marçal , Brancura e Edgard deram luz ao ritmo cadenciado para o samba que é tocado assim até hoje. Madureira tinha o Ogã e jongueiro Paulo da Portela que fundou o Conjunto Oswaldo Cruz que passou a se chamar Vai Cono Pode e depois Escola de Samba Portela. Na Serrinha tinha a Dona Eulália, Vó Joana e Tia Maria, todas do jongo, além de Mestre Fuleiro, Molequinho, Mano Décio e Eloi Antero Dias, o Mano Elói, pai de santo que levou o samba para a Mangueira. Carlos Cachaça que foi testemunha ocular do fato afirmou que Mano Eloi apresentou o samba no terreiro de Omolokô de Tia Fé, na presença de Zé Espinguela, o Pai Olufá e outros presentes. Tia Fé, figura lendária e venerada até hoje em Mangueira fundou um rancho carnavalesco denominado Pérolas do Egito, que junto com outras agremiações formaram a Estação Primeira dé Mangueira em 1928 sob a direção de Cartola, que era cambono da Umbanda Carioca ou Omolokô, Saturnino Gonçalves pai de Dona Neuma, Abelardo da Bolinha, Carlos Cachaça, Seu Euclides, Zé Espinguela, Seu Maçú e Pedro Paquetá. Em Vila Isabel tinha Noel Rosa que viveu embates famosos com Wilson Batista.
Aliás, Paulo da Portela e Zé Espinguela no ano de 1929, realizaram o Primeiro Encontro de Escolas de Samba no terreiro de Zé Espinguela Engenho de Dentro que foi a gênese dos atuais desfiles de escola de samba. Esses pioneiros e pioneiras passaram muito aperto com a repressão da época por fazerem samba. 
Como não falar de religiosidade se as baterias das escolas de samba tocam cada uma para seu orixá. A Mangueira, por exemplo, toca para Oxossi enquanto que a da Portela e da Mocidade para Ogun, União de Padre Miguel para Xangô e e assim por diante.
Após recebermos este tesouro cultural, passamos a ser cerceados pela branquitude beócia de nossa ancestralidade, tentando através de discursos anódinos, conter nosso vigor e paixão pela riqueza de nossa origem multicultural e pluriétnica. Para eles é fatigante ouvir nossas ancestralidades e de acordo com seus desejos, não poderemos mais contar nossas epifanias, cantar as histórias de nossos ancestrais na festa que nós criamos e eles querem ditar as regras. Até compreendemos que é difícil emocionados das bolhas do zap compreenderem a complexidade cultural da cosmovisão africana. Assim é mais fácil se levantarem escudados em falsos biombos de proselitismos. Pode haver Oktoberfest todos os anos com as mesmas mulheres loiras, olhos azuis, caucasianas e batavas, aboletadas em cima dos mesmos carros alegóricos, cantando as mesmas canções saxônicas que está tudo certo. Mas nos carros alegóricos dos negros não pode. Como diz Milton Cunha, escola de samba é negritude, pretitude, gente suada falando alto, tomando cerveja, é macumba sim, é resistência e aquilombamento. Quem não pode com mandinga não carrega patuá. Valeu Zumbi.

segunda-feira, 3 de março de 2025

O desfile das escolas de samba que você provavelmente não conhece

Acabei de sair do desfile da Mangueira como membro da consagradíssima Ala dos Compositores, a primeira desse tipo nos desfiles e fundada por Cartola. Não sei se sou merecedor mas me empenho por ser, sabendo que por ela passaram além de Cartola, Nelson Cavaquinho, Nelson Sargento, Zé Ramos, Hélio Turco, Leci Brandão (ainda membro), Carlos Cachaça, Saturnino Gonçalves, Zagaia, Xangô, Jamelão, Jurandir, Zé Criança, Geraldo da Pedra, e Gradim entre tantos outros.
Dentro de um desfile existem vários desfiles. Enquanto a escola passa desfilando sua imponência, centenas de pessoas trabalham esbaforidas para que nenhum contratempo aconteça ou então corrigindo contratempos que podem retirar pontos da escola. 
O desfile não permite teste drive para os carros alegóricos. Nos ensaios técnicos as atenções são voltadas para som, luz, evolução e cronometragem. No desfile prá valer as operações pré desfile são tensas: colocar os destaques no topo dos carros alegóricos, subir os componentes nas alegorias, verificar os obstáculos aéreos, bombeiros civis para prevenção de incêndio, hidratação dos componentes na concentração, dar os últimos retoques nas alegorias, conferir as fantasias das alas e garantir o melhor alinhamento possível das fileiras de componentes antes de entrar na avenida. Correndo por fora tem a afinação dos instrumentos da bateria e os testes de som p os intérpretes e da própria bateria. Existem ainda diversos detalhes que são infinitesimais como maquiagem da comissão de frente, efeitos especiais e por aí vai.
O resultado final é sempre consagrados, destarte um tombo aqui e outro ali, uma alegoria perder uma peça, abrir espaços entre as alas (buracos) e a escola ter que correr no final para não extrapolar o tempo. 
Geralmente todas as escolas passam bem, dentro do tempo mas sempre com uma pequena falha em algum setor. É o preço que se paga por colocar quase 4 mil pessoas em uma grande ópera à ceu aberto com músicos e cantores sem formação musical da academia, separados por esculturas gigantescas se movendo em direção ao final do desfile.
É no mínimo uma façanha. Portanto, independente do resultado, os componentes dessas agremiações colocaram seus corações em casa detalhe, em casa alfinete, nos ensaios de canto, nos ensaios de rua, nos ensaios técnicos e nas fantasias. Essas pessoas em prol das cores de seus pavilhões deixam a vida de lado e mergulham na obsessão da construção do carnaval de suas escolas. São as garbosas Velhas Guardas com seus bravos componentes octogenários, os membros das baterias e comissões de frente com seus ensaios extenuantes, poetas e compositores responsáveis pelo hino que a escola levará para a avenida, om seus ensaios extenuantes, passistas, casais de Mestre- Sala e Porta-Bandeiras que ensaiam de forma ensandecida e as deliciosas alas das comunidades onde o sangue da escola pulsa com mais vigor.
O esforço da direção da escola para controlar esse turbilhão é louvável. São centenas de profissionais assalariados na quadra de ensaios e no barracão de alegorias, abastecimento de bares a quadra, realização de eventos para arrecadação de fundos, controle de mensalidades, gastos com fantasias, viagens de representação etc. Tudo isso acontece o ano inteiro para que a escola desfile por 80 minutos para jurados imparciais vê inclementes. 
Ao fim somente uma será campeã e todas as outras amargarão a derrota e o ano investido com tanta fibra e dedicação.
Esses são os desfiles dentro do desfile. É como um iceberg onde só enxergamos a parte acima da superfície. Faz pó arte da nossa cultura e é sempre bom lembrar que todo esse espetáculo tem sua origem na Umbanda Omolokô e nos terreiros de Candomblé da Pequena África.

sábado, 1 de março de 2025

O samba pede passagem


A escola de samba e o samba sempre foram os principais espaços de socialização da comunidade negra no Brasil. Desde os primórdios da História do Samba que o povo negro se empenhou em manter um espaço comunitário, onde pudesse compartilhar com sua família atividades sociais e de lazer. A indústria do entretenimento na sociedade burguesa sempre foi voltada para as pessoas da classe média, com razoável poder aquisitivo. Nesses espaços, os negros com raríssimas exceções, podiam frequentar e participar dos eventos como convidados. O apartheid social e econômico pelo qual a população negra foi submetida, após o fim da escravidão, levou os negros a se organizar em torno dos principais processos onde mantinham algum tipo de domínio, protagonismo e poder, o Candomblé e o samba. A escola de samba é o templo profano do povo negro. Nela as famílias se reúnem e se desenvolvem no aprendizado de suas diversas características artísticas e culturais.
A cosmovisão do samba está entre as coisas mais deliciosas dessa vida. Não há nada mais gratificante que desfrutar de um bom momento, cantando e relaxando em uma boa roda de samba, ou então nos ensaios de quadra das escolas de samba que alegram os fins de semana de parte da sociedade em todo o país. A sensação é divina, e nada melhor que soltar o corpo, se entregar ao deleite do ritmo pagão, cantando e alegrando-se em animados arrasta-pés, regados a uma boa cachaça de alambique, aquela que “matou o guarda”, acompanhada de uma boa cervejinha gelada com um pratinho de tira-gosto como acompanhamento.
Quem nunca deu aquela sambadinha gostosa, ao ouvir um samba malandreado, dolente e gostoso? Bem devagar, devagarinho, como canta o Martinho da Vila. O samba sempre foi a cadência da batida do coração do povo brasileiro. É o principal alimento cultural que nos nutre e o maior legado que a população negra delegou para nossa sociedade. Suas origens são ligadas ao continente africano, aos tambores, ao Candomblé e aos folguedos da cultura negra além-mar.
João Gilberto cantava que o samba veio da Bahia e estava correto. Pois esse menino dengoso, o samba, veio aconchegado no colo ancestral das Mães de Santo do Recôncavo Baiano, principalmente de Santo Amaro da Purificação e Cachoeira, que após a abolição da escravidão foram viver no Rio de Janeiro, para onde partiram em um movimento denominado “Diáspora Baiana” ou “Êxodo Baiano”. Partiram levando na bagagem essa joia cultural fantástica que encanta o planeta. O samba é filho dileto do Jongo, do samba de roda do Recôncavo, possuindo uma relação direta com o culto aos Orixás, Inquices e Voduns, do Omolokô e daquilo que Cartola chamava de Umbanda Carioca, da qual era cambono. O samba também bebeu na fonte das tradições culturais e religiosas da África Subsaariana. Nasceu como representante de uma representação cultural que servia como momento de lazer e ao mesmo tempo como o bálsamo que amenizava o terrível sofrimento pelo qual passava o povo negro escravizado, tanto no eito de trabalho como na senzala, nos tempos do Brasil Colônia e Brasil Império.
O parto do samba carioca ocorreu com certeza nos terreiros de Candomblé e Centros de Umbanda Omolokô da Pequena África e também nas rodas de Jongo como dizem alguns historiadores. Havia uma grande concentração desses terreiros na região que abrangia um imenso território no Centro da cidade do Rio de Janeiro denominado Pequena África que ia dá Gamboa/Pedra do Sal até a Praça XI.
A certidão de nascimento do samba contém algumas lacunas, mas com certeza no formato que conhecemos hoje, surgiu entre o fim do século XIX e o início do século XX. Veio ao mundo abençoado pelos sons dos atabaques e dos tambores tocados com dedicação e amor por ogãs e alabês das casas de santo. Nasceu no instante compreendido entre o cansaço e a preguiça. Cansaço porque depois de um trabalho puxado de axé no terreiro, era necessário dar descanso ao corpo, que há pouco estava entregue ao poder espiritual, para que assim recobrasse as forças. Preguiça porque era necessário preparar o terreiro para o ritual agora profano, com comidas, tambores e outros apetrechos essenciais.
O batizado com o nome “Samba” pode ser oriundo do termo angolano “Semba”, que significa umbigada. É um tipo de dança profana do povo bantu, mas não sagrada como são as umbigadas do Jongo, como afirmam alguns pesquisadores.
Foram as tias baianas que assistiram e abençoaram o nascimento do samba, forrando seu berço com carinho e tradição. O samba em seu berço foi ninado com canções do samba de roda do Recôncavo entremeadas com batuques, lundus, polcas, maxixes e jongo. Essas tias baianas eram em sua grande maioria Ialorixás renomadas e poderosas, exerciam grande influência sobre a comunidade negra no Centro do Rio de Janeiro.
O início do século XX foi um momento de intensa felicidade para a população negra, que vivia sob os efeitos idílicos do fim da escravidão. Os negros comemoravam e agradeciam principalmente à princesa Isabel pela promulgação lda Lei Áurea, que lhes libertou definitivamente do cativeiro do branco opressor, depois de intermináveis 350 anos de sofrimentos. Apesar de tantas agruras e dificuldades, a alegria havia voltado aos corações da população negra tão sofrida e vilipendiada pelo cruel regime recém-extinto. Eram livres, mas nunca deixaram de ser vigiados pelo sistema de repressão e controlados pelo sistema jurídico, que sempre exarou leis em defesa da elite branca e sistematicamente contra a população negra.
Apesar da vigilância constante da polícia, os negros e negras se reuniam em diversos lugares denominados “zungus” para comemorar a liberdade, comer comidas típicas, buscar trabalho, praticar religiosidade e como não podia deixar de ser, utilizavam o samba de roda, o jongo, o maxixe a polca e o lundu como fundo musical para suas comemorações. A certidão de nascimento do samba foi lavrada nos terreiros das tias baianas, com destaque para as tias Ciata, Amélia e Perciliana.
Os sambistas consideram Tia Ciata como a grande parteira e mãe amamentadora do samba carioca. Nascida em 1854, em Santo Amaro da Purificação, terra de Caetano Veloso, Assis Valente e Maria Bethânia, chegou ao Rio de Janeiro em 1876 aos 22 anos de idade, onde casou e constituiu família, tendo sido mãe de 14 filhos.
Ciata além de grande doceira e festeira, era uma Mãe de Santo respeitada pelo povo negro. Ficou mais famosa ainda após ter curado com suas ervas e unguentos uma ferida renitente na perna do à época Presidente do Brasil, Wenceslau Brás. Sua proximidade com o Presidente da República, que lhe garantiu que a polícia não interromperia e encerrasse sob catatau as suas obrigações religiosas nem as animadas festas embaladas principalmente pelo imberbe samba.
Além da própria riqueza musical reinante, naquela época não havia transportes durante a madrugada. Os frequentadores dos terreiros aproveitavam que deveriam aguardar o dia amanhecer para retornar aos seus afazeres cotidianos. A madrugada era consumida então em animadas rodas de batuque, já que a designação “samba” ainda não havia sido cunhada. Geralmente o arrasta-pé virava a noite e a partir daí pode ter surgido o termo “sambar até o sol raiar”.
Pela casa de Tia Ciata passaram grandes nomes da música popular e do samba como Ataulfo Alves, Paulo da Portela, Cartola, Carlos Cachaça, Natal da Portela, Zé com Fome, Silas de Oliveira, Pixinguinha, Hilário Jovino e Donga. Sinhô, Ismael Silva, Bide, Marçal que eram frequentadores assíduos formavam a Turma do Estácio. Essa turma de bambas do Estácio foi a que mudou o ritmo do samba para uma versão mais cadenciada, fugindo do maxixe, como o que se toca até os dias de hoje nas baterias das escolas de samba. Essa mesma turma também cunhou o nome “escola de samba”, pois ensaiavam defronte a uma Escola de Formação de Professores no bairro do Estácio.
Antes do samba que conhecemos o que se dançava era um ritmo maxixado, como podemos constatar no fonograma do primeiro samba gravado no Brasil por Donga, o famoso “Pelo Telefone”. Muitos sambistas torcem o nariz para esse samba, dizendo que o fonograma é um maxixe. Outros sambistas alegam que Pelo Telefone não foi o primeiro samba, pois havia duas gravações anteriores que eram samba como Casa de Baiana em 1913 e Urubu Malandro em 1914. Pelo Telefone foi uma composição coletiva com participação de vários frequentadores da casa da Tia Ciata, mas foi registrada na Biblioteca Nacional por Donga somente, como sendo dele. Mais tarde incluiu também Mauro de Almeida como seu parceiro na composição. Um dos maiores defensores da tese de criação coletiva foi o baiano Hilário Jovino que alegava ser um dos compositores. Hilário Jovino era pai do malandro Saturnino da Praça 11 e primo de Heitor dos Prazeres. Precursor dos ranchos e do Carnaval do Rio de Janeiro, Jovino fundou inúmeros ranchos, que seriam os blocos e escolas de samba de hoje, sendo que um dos mais famosos que se tem notícia llfoi o Ameno Resedá, que tinha entre seus admiradores mais destacados o escritor Coelho Neto. O Ameno Resedá é lembrado até hoje nos desfiles das escolas de samba.
Os sambistas pioneiros não eram vistos com bons olhos pela sociedade. João da Baiana contava que seu pandeiro tinha a assinatura de um senador da república, pois, somente assim poderia transitar livremente com o instrumento pela cidade. Os sambistas eram perseguidos e geralmente vinculados pela polícia a marginais, malandros e capoeiristas, grupo também perseguido e para quem havia sido criada a lei no Código Penal de 1890 que punia quem praticava a capoeira, a Lei da Capoeiragem, cujo texto era o seguinte: "Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação de capoeiragem: pena de prisão celular por dois a seis meses".
Após a Lei Áurea em 1888, o governo brasileiro iniciou um gigantesco processo de embranquecimento de sua população, estimulando a imigração de europeus, primeiramente com alemães e italianos e depois do Japão, quando em 1908 atracou no Porto de Santos o navio Kasato Maru com a primeira leva de 781 imigrantes japoneses que vieram contratados para trabalhar nas fazendas do interior paulista.
Enquanto o país passava pelo processo de embranquecimento ou eugenia como muitos alegam, no Rio de Janeiro era iniciado um imenso processo de gentrificação por parte do governo.
O Rio de Janeiro era a capital do Brasil no início do século XX. O país recém-saído da escravidão era a maior cidade afroatlântica da época, mas ainda com vestígios de vocação rural. Com os novos tempos passou a sofrer mudanças que visavam sua inserção entre as grandes capitais do mundo moderno, reivindicando sua nova vocação urbana incipiente e engatinhando na industrialização. O Centro do Rio era composto por muitos cortiços, alguns com até 2 mil pessoas como o “Cortiço Cabeça de Porco”, daí o nome de cabeça de porco para qualquer tipo de ajuntamento de habitações pobres do mesmo formato. As epidemias sanitárias se sucediam na capital e a classe burguesa clamava por higienização e modernização do centro da cidade.
O Presidente Rodrigues Alves deu plenos poderes ao Prefeito Pereira Passos, que governou a cidade entre 1902 e 1906. Passos foi inspirado pela modernização da cidade de Paris, dando início ao período conhecido como Belle Époque, onde um dos principais exemplos é o Teatro Municipal no Centro do Rio de Janeiro, uma obra prima da arquitetura da época, desenhado por Francisco Pereira Passos, filho do Prefeito, que optou em desenhar uma cópia fiel da Ópera de Paris. Apesar dos esforços de Pereira Passos a inauguração do Teatro Municipal aconteceu somente em 1909 sob a gestão do Prefeito Souza Aguiar, seu sucessor.
O processo de gentrificação da capital foi avassalador e violento, com foco no centro da cidade, onde cortiços foram derrubados à revelia para dar lugar a grandes edifícios, e modernas avenidas. Essas intervenções de Pereira Passos foram consideradas autoritárias, quando grande parte da população pobre foi expulsa desses cortiços sem indenização, tendo que se deslocar para as encostas dos morros da cidade, originando um incremento no número das poucas favelas que existiam naquele período.
A modernização transformou a imagem da cidade com a inauguração da moderna e ampla Avenida Central, no estilo dos boulevares parisienses, com suas lojas e cafés de luxo. Também foi inaugurada a impressionante à época iluminação pública, a reforma do Porto do Rio de Janeiro, o primeiro sistema de saneamento básico eficiente e a vacinação forçada da população sob o comando do sanitarista Oswaldo Cruz. A vacinação compulsória levou a deflagração da insurgência negra denominada “Revolta da Vacina”. A partir da Bélle Epoque, com a modernização da capital do país, o Rio de Janeiro entrou definitivamente para o clube das grandes e modernas cidades do planeta.
A população negra foi a que mais sofreu com os impactos da gentrificação. Primeiro tendo que abandonar o local de moradia de forma compulsória, contra sua própria vontade. Segundo dentro do contexto cultural, onde as manifestações populares como o samba e a capoeira foram perseguidas e proibidas, devido ao forte recorte racial de seus praticantes, motivada pela intenção das elites da capital de europeizar o cenário das artes e da cultura da cidade, banindo a crescente cultura negra do cenário urbano. Para tanto passaram a prender sambistas que portavam instrumentos musicais e verificavam se seus dedos possuíam calos adquiridos com a arte de tocar percussão. Todo esse contexto de gentrificação originou a criação de uma forte burguesia carioca, que repudiava qualquer manifestação de origem africana ou afrodescendente.
Com o passar dos anos, o samba foi se organizando e aos poucos e cada vez mais passando a fazer parte da vida cultural da cidade. No início dos anos 1920 o carnaval de rua organizado era alegrado pelos ranchos carnavalescos da burguesia. Os desfiles aconteciam na moderna Avenida Central e eram um feudo exclusivo da elite e da classe média. Os pobres não podiam desfilar nos ranchos e corsos da Avenida Central, devido ao alto custo exigido na confecção das fantasias, e também por não pertencerem ao mesmo estrato social dos foliões. O primeiro rancho popular a desfilar foi o “Reis de Ouro” de Hilário Jovino, que criou as figuras do Mestre Sala e Porta Bandeira e também o conceito de enredo, depois absorvidos pelas escolas de samba. Os pobres também desfilavam em blocos e cordões compostos por maioria negra que vivia na região da Pequena África. Esses blocos mantinham a tradição de usar atabaques e tambores que marcavam o ritmo das batucadas africanas mescladas com elementos do Candomblé. As primeiras licenças para desfiles de blocos emitidas pela polícia datam de 1889 para os blocos “Grupo Carnavalesco São Cristóvão”, “Teimosos do Catete”, “Corações de Ouro” e “Piratas do Amor”, entre outros.
Havia ainda os “blocos de sujo”, que assim eram denominados porque eram compostos por trabalhadores que saíam do trabalho diretamente para o carnaval, sem tomar banho. Esses trabalhadores-foliões compravam máscaras de Clóvis ou de Velhos e saíam na frente dos cordões, abrindo o desfile dos blocos. Marchavam sempre em grupo, abrindo os desfiles, criando então o embrião das atuais Comissões de Frente das escolas de samba.
Nos anos 1920 a contribuição da Turma do Estácio foi fundamental para compreendermos o samba como é tocado hoje. Os sambistas do Estácio eram famosos e também participavam dos saraus da casa da Tia Ciata, com destaque para Ismael Silva, Bide, Marça e Brancura. Bide foi o criador do surdo de marcação, quando utilizou pela primeira vez uma lata de banha de 20 quilos vazia, colocou papel de saco de cimento molhado amarrou nas extremidades com barbante e arame, aquecendo o instrumento na fogueira. A marcação do surdo criado pela Turma do Estácio retirou o ritmo maxixado do samba e manteve sua característica cadenciada que é utilizada até os dias atuais. Bide também alterou a estrutura de apresentação dos sambas das escolas que eram cantados de maneira improvisada, passando então a ser compostos e ensaiados antecipadamente.
Em 1929, Zé Espinguela ou Pai Olufá, Pai de Santo do Morro da Mangueira e o sambista Paulo da Portela, realizaram o primeiro encontro de escolas de samba, defronte à casa de Zé Espinguela no bairro do Engenho de Dentro. Juntos definiram critérios como Mestre Sala e Porta Bandeira, Samba de Enredo, Ala das Baianas em homenagem a Tia Ciata e a Bateria no que seria a gênese do que assistimos hoje nos sambódromos de todo o país.
Nos anos 1930 os desfiles das escolas de samba eram desorganizados. Não havia uma metodologia definida e a única obrigação das escolas era passar defronte à casa de Tia Ciata, na Praça 11, para reverenciá-la e receber sua aprovação. Não havia um local pré-definido e nem premiação. Nos anos 40 passa a ter início a organização “profissional” das escolas de samba. Alguns sambistas eram muito respeitados pelo mundo do samba e poderiam ser chamados de Embaixadores do Samba, autênticos líderes de ébano, entre os quais se destacava Paulo da Portela e Zé Espinguela. Através das gestões de Paulo da Portela e outros sambistas, o Presidente Getúlio Vargas, empenhado em demonstrar apreço pelo nacionalismo e pela cultura nacional, promulgou finalmente a descriminalização do samba durante o Estado Novo.
A partir desse momento, livres juridicamente para atuar, as escolas de samba se proliferaram com força total, reunindo principalmente nos subúrbios inúmeras agremiações como o Império Serrano, dissidência do Prazer da Serrinha no Morro do São José Operário em Madureira, Conjunto Oswaldo Cruz que depois se tornou Vai Como Pode e finalmente Portela também de Madureira/Oswaldo Cruz, Salgueiro na Tijuca que foi o resultado da fusão de duas escolas do Morro do Salgueiro as “Depois Eu Digo” e “Azul e Branco”. A Imperatriz Leopoldinense na Zona da Leopoldina originária da Recreio de Ramos, tendo como base o Complexo do Alemão, Mocidade Independente de Padre Miguel da Zona Oeste que surgiu a partir do time de várzea local “Independente Futebol Clube”, Unidos Vila Isabel fundada por seu China inspirado não bloco “Acadêmicos da Vila”, bloco da “Dona Maria Tataia” e dos clubes “Unidos da Vila” e “Vila Futebol Clube”. Vila Isabel é um bairro conhecido pelo talento de seus compositores, sendo que os dois mais conhecidos são Noel Rosa e Martinho da Vila, a Deixa Falar sempre carregou sua enorme tradição, que depois se tornou Estácio de Sá, no Centro do Rio de Janeiro, a Vizinha Faladeira reivindica ser a primeira escola de samba e foi a agremiação que introduziu o luxo nos desfiles. A Beija Flor de Nilópolis, da Baixada Fluminense é uma das grandes forças atuais do samba e investe em enredos voltados para a negritude, tendo em Joãosinho Trinta, Neguinho da Beija Flor, Selminha Sorriso e Pinah seus grandes destaques. A nova geração é composta pela União da Ilha do Governador , Unidos do Viradouro, Porto da Pedra, ambas do lado de lá da Baía de Guanabara, Grande Rio, Unidos da Tijuca e São Clemente, União da Ilha, Caprichosos de Pilares, Acadêmicos de Santa Cruz, Unidos de Lucas, entre muitas outras.
As escolas de samba seguem uma antiga tradição de se organizarem por famílias. Tirando a Mangueira como exemplo, podemos ver o poder da escola distribuído entre as famílias. Entre os principais clãs da negritude daquele território estão as famílias da Dona Neuma/Saturnino/Chininha e Guesinha, Geraldo da Pedra, Zé Criolinho, Zé Ramos, Cartola e Zica, Dória, Tia Fé/Gilda/Roberto Firmino e Guanaira, Nelson Sargento, Tinguinha/Elmo, Carlos Cachaça, Zé Criolinho,  Tantinho, Hélio Turco, Alvinho e Padeirinho. Todas famílias importantes na genealogia mangueirense, que sempre mantiveram o poder entre si, excetuando um ou outro pequeno hiato.
A Mangueira surgiu da união de diversos blocos e ranchos da comunidade. No morro já existia o rancho da de Tia Fé denominado Pérolas 

Paulo Barros contra Zumbi

O Carnavalesco Paulo Barros causou polêmica ao afirmar seu repúdio aos enredos afros das escolas de samba. O mais surpreendente é que ele como carnavalesco afirmar que "não gosta" de enredo sobre a cosmovisão africana. Qualquer ser humano que que tem o privilégio de montar esta grande aula a céu aberto que é o desfile de uma escola de samba, dirigida para milhões de pessoas em todo o planeta, deveria ter orgulho de mostrar as raízes africanas que estão entranhadas na identidade nacional de maneira inquestionável. 
Não se trata de "gostar", trata-se sim de honestidade intelectual, pois, em 2022 na Paraíso do Tuiuti, Barros apresentou o enredo afro "Ka Riba Tí Ye - Que nossos caminhos se abram", quando a escola amargou o décimo primeiro lugar. Portanto o debate deveria se concentrar não em gostar ou não gostar e sim saber ou não saber desenvolver um enredo sobre a cosmovisão africana. Para quem já fez enredo sobre "Playmobil", demonstrando que atira em todas as direções, geralmente sem o sucesso da vitória, deveria se manter respeitosamente calado sobre o tema e não criticar os seus adversários com manifestações que insuflam a extrema-direita nacional. Ao negar de maneira peremptória a importância das raízes africanas, sempre sub representadas e até ocultadas pela historiografia oficial, Paulo Barros, por conta de sua limitação intelectual, presta um grande desserviço à luta pela promoção da igualdade racial no país. Não são somente "enredos afros", e sim o resgate histórico da saga de um povo que amargou 350 anos de cativeiro, registrado como um dos maiores genocídios da história universal. A redução da tragédia transatlântica afrodiaspórica, que sequestrou e escravizou nas Américas e Caribe mais de 20 milhões de africanos sequestrados de seus lares, onde eram livres em África deve ser sempre lembrada, para que nunca mais se repita. Se a representação artística desse trágico e inesquecível panorama "desgosta" o carnavalesco Paulo Barros é porque ele possui sérios problemas em relação às reparações históricas que estão em curso em todo o mundo democrático. Paulo Barros já fez um enredo sobre a Alemanha em 2013 e teve um carro alegórico sobre o Holocausto Judeu proibido pela justiça em 2008, evento que causou protestos e grande comoção na comunidade judaica, representada no fato pela Federação Israelita. Paulo Barros originalmente , em seu enredo, vestiria um destaque de Adolfo Hitler no carro alegórico do Holocausto da Viradouro. O escândalo foi rapidamente abafado pela escola e assim que terminou o desfile o carnavalesco foi defenestrado da instituição. Em tempos de recrudescimento do fascismo e do nazismo no Brasil, acho melhor passarmos a prestar mais atenção em seus movimentos, pelo que podemos observar sua capivara não é das melhores e suas digitais estão espalhadas por aí.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

É Carnaval!

O Carnaval está se aproximando do seu clímax. Escolas de samba nós preparativos finais estão sob estresse profundo. Blocos de rua se organizam para enfrentar a maratona desgastante sob o sol abrasador arrastando multidões pelas ruas do país. Grupos de bate-bolas, colombinas e pierrôs ensaiam suas singularidades para se divertirem no tríduo momesco que em breve varrerá o Brasil.

O Carnaval além do ambiente de alegria que contagia a população, é uma verdadeira usina de produzir dinheiro. A cadeia produtiva do Carnaval responde por indicadores significativos nos PIBs dos municípios brasileiros. Não é somente sair pelas ruas se divertindo sem compromisso. O Carnaval envolve uma poderosa teia de empreendimentos que sustenta milhões de famílias enquanto atividade produtiva e econômica. É como um iceberg, onde enxergamos somente a ponta emetsa e não a parte submersa. Para cada purpurina, instrumentos musicais, fantasias, bailes, escolas de samba e blocos, há uma imensa e febril cadeia produtiva que vai do vendedor ambulante do bloquinho aos aviões que despejam turistas à rodo nos hotéis das cidades brasileiras.

O evento talvez seja a maior fábrica de sonhos do planeta. Diversas situações típicas envolvem seus participantes: os casais que são formados nos blocos, o flerte nas arquibancadas dos sambódromos e até mesmo as esperanças depositadas nos desfiles das agremiações carnavalescas como as gigantes escolas de samba que promovem verdadeiras óperas populares à céu aberto onde milhares de músicos e atores encenam seus enredos em busca de um troféu ansiado.

O desfile das escolas de samba é a evidência mais inconteste da capacidade criativa e protagônica do povo negro. Saindo da Pequena África para o mundo, os desfiles são produções primorosas onde a capacidade criativa e empreendedora da população negra, faz demolir o discurso preconceituoso de uma histórica subrepresentatividade étnica, criativa e empreendedora do povo negro.

Nascido nos terreiros de Candomblé e Omolokô da Umbanda Carioca, no colos das mães de santo, iaôs, ogâns e alabês da Pequena África, o samba, esse menino travesso, se tornou a cadência da batida da cultura brasileira. Esses negros e negras que lutaram contra a repressão do sistema opressor da época de seu nascimento, fizeram um trabalho difícil de acreditar e que se transformou em um dos maiores espetáculos da Terra.

Estamos aqui para saudar Tia Ciata, Carmem do Xibuco, Tia Perciliana, João da Baiana, Tia Amélia, Babá Bamboxé, Zé Espinguela, Tia Fé, Dona Esther, Maria Rainha, Paulo da Portela, Cartola, Hilário Jovino, Djalma Sabiá, Joãosinho Trinta, Fernando Pamplona,  Dona Eulália, Molequinho, Mano Elói, Mano Décio, Natal, Chico Santana, Dona Neuma, Dona Zica, Dodô, Chico Porráo, Alfredo Português, Carlos Cachaça, Argemiro, Casquinha, Mônaco, Ataulfo Alves, Heitor dos Prazeres, Ismael Silva, Bid, Marçal e Edgard e toda a turma do Estácio, Noel Rosa, enfim, todas as pessoas que desde os primórdios dos anos 20 do Século XX construíram a história do samba com resiliência e dignidade.

Destarte a criminalização do Carnaval por parte das religiões cristãs, a festa já abriu suas portas para a população vivenciar esse período de alegria e confraternização. Rogamos aos deuses que seja de alegria e paz.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

A Dor do Negro


Qual será o nível de resignação de um homem negro no campo das dores? Talvez nunca saibamos, pois, a alma negra possui tantas camadas imperscrutáveis que se torna praticamente impossível decifrá-la. Não sabemos se a Psicanálise compreende ou desenvolveu técnicas específicas para a persona do negro. Freud era branco e vivia em um mundo branco, onde a academia sequer se importava com os infortúnios e as dores negras.
Existem inúmeras dimensões por onde coexistem os sentimentos humanos. Porém, sentimentos humanos passam a ideia de que são os sentimentos dos brancos. A academia é branca e não se preocupa em compartimentar a alma humana dentro do espectro melanínico, ou seja, por origem racial. Portanto, o processo de “coisificação” do negro, destarte a contemporaneidade, permanece sendo uma realidade inconteste. Obviamente que as pessoas sofrem, independente do grupo étnico ou social. Porém um contingente humano rebaixado etnicamente, sempre sofrerá de uma maneira diferente e até perigosa. Suas dores não serão as dores universais, as dores do mundo. As dores do negro são particulares, descartáveis e infindáveis. Talvez a dor maior do negro seja a de simplesmente existir. Sim, existir em um mundo onde o branco é o paradigma existencial natural, onde a beleza do branco representa a beleza universal, onde o sucesso do branco se reflete em todos os campos da ciência e da intelectualidade.
O negro surge na história de maneira equivocada, não como o primeiro grupo humano mas como uma legião de flagelados necessitando de cultura e desenvolvimento. Uma trapaça da branquitude gerou pseudociências que condenaram muitas gerações de negros ao colonialismo e à escravidão mercantil de alto espectro. Sempre em prol de um desenvolvimento que nunca aconteceu no Continente Africano e sim na Europa, que encontrou na empresa colonial fortuna e poder.
A engenhosidade das sociedades caucasianas geraram afroprosopopeias, onde em um processo distópico e surreal, passaram a atribuir características humanas ao seres humanos negros. Engendraram o apagamento de vivos, de cultura viva e de religiões e cosmovisões vivas.
Boaventura Santos cunhou como “epistemicídio” o intento de apagar saberes, culturas, conhecimentos e cosmovisões não eurocêntricas. Quando se destrói uma aldeia se destrói também uma biblioteca viva. O que o colonialismo efetivou em África foi um verdadeiro genocídio, tanto humanos como espiritual. Porém as narrativas não se compreendem apenas aos livros e publicações históricas. A destruição de sociedades organizadas africanas em prol de um desenvolvimento que nunca existiu trouxe as dores. São muitas dores, sendo que atreladas à morte das guerras coloniais veio a escravização e comercialização de mentes e corpos africanos.
Junto com as dezenas de milhões de mortes de africanos em África ou na diáspora, houve o amálgama das dores, que de tão silenciosas, como são as dores do povo negro, ficaram nas calendas. O que se herdou das injustiças está sendo corretamente cobrado em processos onde se clama por reparações históricas e ações afirmativas. Porém de tão silenciosas que são, as dores seguem coexistindo em um limbo primordial, como os pântanos de Nanã. Lá onde se convulsionam em sentimentos plúmbeos, não se pode medir ou definir suas dimensões, tampouco engendrar um processo de amenizá-las e mais ainda, quiçá saná-las. A compreensão do branco acerca das dores negras é praticamente nula. Apesar de encontrarmos bravos aliados na caminhada, eles não trazem em seu conjunto genético os sofrimentos e as dores do povo negro. Eles não compreendem o que é ser considerado um ser humano inferior, um cidadão de segunda classe, um coadjuvante no processo civilizatório universal. A maioria dos brancos olha para o povo negro como um possível problema, como um povo que retira prováveis benesses de suas vidas por conta de programas sociais do governo. Não há solidariedade, que deveria ser o primado básico da convivência entre os povos.
Saber não ser considerado um igual no que tange à cidadania e detentor dos mesmos direitos dos brancos faz o negro sangrar espiritualmente. Para esse tipo de hemorragia não há cauterização ou cicatrização. Não há medicina ou doutores que impeçam o jorrar incessante de assimetrias que se tornam lamentos e incompreensões.
Os brancos criaram as religiões que remetem os seres humanos a um estado constante de culpas e pecados, onde um Deus vingativo e perverso envia as almas para queimar no inferno, por seus erros básicos humanos. A antevisão do inferno com demônios vermelhos açoitando as almas penadas durante toda a eternidade fez dos negros seres confusos, pois a perda da cosmovisão politeísta africana os deixou sem opções de salvação a não ser aceitar e se conformar com o novo modelo existencial proposto pelo branco. Modelo perverso, onde trabalhar até à morte sem remuneração, perder a posse dos próprios corpos, dos desejos e da ideia de sociedade, os levou à bancarrota da autoestima. Portanto aí residem os relicários da maioria das dores negras que ainda persistem na sociedade contemporânea.
O negro está condenado dentro da sociedade capitalista a sofrer de maneira continuada, pois assim, não reúne forças para se rebelar. São colocados no mercado de trabalho em subrepresentações laborativas. Engenhosidade do capitalismo para que não tenham tempo de pensar em rebelião. Desse modo, são atirados pelo sistema econômico da branquitude às periferias distantes dos centros de trabalho, onde coexistem com um ambiente degradado e eivado pela violência do narcotráfico. A branquitude e seu sistema capitalista olham o negro como um hamster correndo naquelas rodas onde o fim é o início e o início é o fim. A roda nunca para de girar e o negro corre eternamente sem nunca ter tempo para cuidar de sua família, estudar, progredir e se e rebelar. Por trás desse sistema perverso estão as religiões abraâmicas, insistindo carinhosamente que sofrer é o melhor caminho para um pseudo paraíso em uma vida fora da terra, após sua morte. Uma maneira inteligente de encapsular as dores com a promessa de uma vida venturosa no paraíso. O grande óbice para a construção de uma sólida convergência negra de construção de alteridade é que a opção da via do paraíso está vencendo de goleada.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

LUIZ GAMA, O SPARTACUS BRASILEIRO

Luiz Gonzaga Pinto da Gama, o Spartacus Brasileiro, foi um dos maiores brasileiros de todos os tempos. Nasceu na cidade de Salvador, capital da Bahia, em 21 de junho de 1830, em um sobrado da Rua do Bângala, na Freguesia de Santa’Anna. Filho de Luiza Mahin, que segundo alguns historiadores, foi uma princesa da Costa da Mina, sequestrada de sua casa real e trazida para o Brasil na condição de escrava. Do pai de Luiz Gama ninguém nunca soube o nome. O que se sabia era que foi um fidalgo branco de posses e pertencente a uma tradicional família baiana de origem portuguesa. A mãe era mulher culta, letrada e islamizada. Conseguiu comprar a própria liberdade no ano de 1812. Alforriada então, inicia sua participação em inúmeros levantes de escravos que lutavam por liberdade na Bahia. Luiza Mahin sempre foi uma revolucionária convicta, participando de quase todas as rebeliões de cativos que sacudiram a Bahia no início do século XIX, com destaque para a Revolta dos Malês e também a Sabinada. Sua casa servia de local de encontro dos insurretos e Luiza, como trabalhava como quituteira nas ruas de Salvador, era encarregada de distribuir as mensagens secretas para os revoltosos, com as instruções de reuniões e atos de sabotagens. Foi perseguida e refugiou-se no Rio de Janeiro onde ao chegar integrou-se em outras rebeliões. Algumas fontes dizem que foi presa e deportada para África. Outras asseguram que refugiou-se no Maranhão, onde desenvolveu o Tambor de Criola. Seu verdadeiro destino permanece em mistério até hoje. Luiz Gama foi o homem que Rui Barbosa, o Águia de Haia, se referiu na Conferência sobre o Abolicionismo de 1911 da seguinte maneira: “...foi uma rara fortuna ter cultivado intimamente a amizade de Luiz Gama em lutas que nunca esquecerei”. Rui Barbosa e Castro Alves formavam com Luiz Gama o trio baiano de abolicionistas mais brilhantes na capital paulista. Era no escritório de advocacia de Luiz Gama que Castro Alves, Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, entre outros, se reuniam para falar de política abolicionista, república, Direito e Maçonaria, ordem onde Luiz Gama galgou os mais altos graus da Loja América em São Paulo, um centro irradiador da abolição da escravidão e da república. Foram nas reuniões desta Loja que eles tomaram conhecimento desses ideais liberais e progressistas. A amizade entre os baianos é comprovada quando Luiz Gama levou o amigo Castro Alves ao navio que o transportaria ao Rio de Janeiro para se tratar de um acidente com arma de fogo. Do Rio de Janeiro o Poeta dos Escravos partiu para a Bahia e nunca mais retornou a São Paulo, morrendo muito jovem, retirado na propriedade de seus genitores. São mistérios que somente a Bahia possui. Como consolidar a amizade entre dois representantes da alta burguesia baiana com um negro, vendido pelo pai aos 10 anos de idade como escravo. O menino negro escravo, tornou-se um voraz autodidata, por força da vida, já que foi proibido de frequentar a Faculdade de Direito de São Paulo por sua condição racial, ensinava Direito a seus pupilos conterrâneos que nela estudavam, mas o infortúnio do destino, a escravidão em voga e o racismo, não permitiram que ele pudesse nela estudar. Ao completar 10 anos, no dia 10 de outubro de 1840, Luiz Gama ouviu de seu pai que fariam um passeio. Apesar de nunca falar sobre seu genitor, nem mesmo pronunciar seu nome, disse que o pai era carinhoso com ele. Porém, mesmo pertencente a uma rica família, endividou-se me demasia, metido em súcias que vivia, e o passeio de barco do menino na verdade era a sua venda como escravo para o Rio de Janeiro, em um navio de nome Saraiva. Sua mãe estava foragida por contas de sua participação em diversos movimentos sediciosos e deixou o menino com o pai até que pudessem reunir a família novamente, o que nunca mais aconteceria. Ao desembarcar no Rio de Janeiro na companhia de um grupo de cerca de cem escravos, foi entregue a um português de nome Vieira, que possuía um comércio de velas na Rua da Candelária no centro da cidade. Vieira também comerciava grupo de escravos oriundos da Bahia em troca de polpudas comissões. O português o levou para a própria casa, onde avaliou que o menino poderia fazer companhia, servindo de pajem a seus filhos. A esposa do lusitano se afeiçoou ao pobre piá negro, assim como todas as mulheres da casa, que se encantaram com o menino tão jovem, indefeso, envolvido pelo manto da tanta penúria, porém repleto de doçura. Deram-lhe um bom banho, roupas limpas e o colocaram em uma cama para dormir, quando enfim pode ter sua primeira noite de sono tranquila e em segurança, desde que havia saído da Bahia no paquete Saraiva. O português Vieira, com seu coração na sola do pé, resolveu vender o menino para outro traficante de escravos, que o levou com um grande grupo de cativos para São Paulo em viagem de navio. Desembarcaram no Porto de Santos e subiram a perigosa e temida Serra de Cubatão rumo a longínqua cidade de Campinas, percurso que fizeram à pé, em sofrida caravana. Tanto em Campinas como em Jundiaí, os compradores de escravos rejeitaram Luiz Gama por ser de origem baiana. Os senhores de escravos tinham notícias das revoltas de cativos na Bahia e recusavam qualquer escravo oriundo daquele estado. “Ainda mais com 10 anos!”, diziam “Já é coisa ruim desde pequeno, boa coisa não deve ter feito por lá!”. Que triste fado! Vivendo entre tantas rejeições o menino também era rejeitado inclusive como escravo, talvez o mais baixo degrau da escala humana. O traficante de escravos sem conseguir vender o menino, o devolveu ao seu proprietário, um alferes de nome Cardoso, no centro da cidade de São Paulo. O comerciante morava em um amplo sobrado na Rua do Comércio, bem próximo à Rua Direita. Passando a viver no sobrado, Luiz Gama aprendeu diversos ofícios como sapateiro, engomador, lavador, costureiro e copeiro. Os bons ventos da sorte começaram a lhe bafejar quando veio morar no sobrado dos Cardoso o jovem Antônio Rodrigues, um hóspede muito culto e com a mente voltada para o altruísmo e para as humanidades, estava ali para concluir seus estudos. Esse jovem mais tarde se tornou advogado e juiz de direito. Antônio Rodrigues se afeiçoou a Luiz Gama, lhe ensinando a ler, para logo depois lhe abrir as portas do mundo das ciências matemáticas e humanidades. O progresso de Luiz Gama com as letras era tamanho que passou a ensinar os filhos do Alferes Cardoso e por assim fazer, solicitou sua alforria, alegando que seu trabalho intelectual estava acima e não compreendia os ofícios de um escravo. Além disso, alegava que era um homem livre, pois seu pai era um fidalgo e sua mãe uma escrava liberta que havia comprado sua alforria. O alferes Cardoso obviamente negou a alforria e Gama após conseguir provas incontestes de sua condição de homem livre, fugiu da casa dos Cardoso e se tornou soldado da milícia estadual aos 18 anos de idade, onde permaneceu até 1854. Ocupava a patente de Cabo de Esquadra quando foi obrigado a dar baixa do serviço por supostos “atos de insubordinação” contra um oficial. Além da baixa forçada, esteve preso por 40 dias antes de ser posto em liberdade. Nos idos de 1840, em plena vigência da escravidão, a palavra de um praça negro não tinha a mínima credibilidade perante a acusação de um oficial branco. Um tribunal penal militar jamais estaria ao lado de um jovem negro de baixa patente, em detrimento ao libelo acusatório proferido por um oficial caucasiano. Pelo que se pode observar, na trajetória de vida de Luiz Gama, desde quando foi entregue à escravidão pelo próprio pai, ainda menino e depois rapazola e homem feito, sua caminhada sempre foi eivada de revezes, onde todos, um a um foram removidos e superados, inclusive um dos principais à época que era o analfabetismo. Mais uma vez Gama teve que buscar um novo rumo para seguir em frente, pois, desde que embarcou no paquete Saraiva rumo ao assustador destino no Rio de Janeiro, longe da mãe que nunca mais veria, passou a ter a própria existência como sua principal tirana. Luiz Gama aprendeu com a dureza da vida, que o caminho se faz caminhando. Durante os anos em que abraçou a carreira militar trabalhava nas horas vagas como Copista no escritório do Escrivão Major Benedito Coelho Neto, já então seu amigo. Também sendo amanuense, algo como auxiliar administrativo, no gabinete de Francisco Furtado de Mendonça, catedrático da Faculdade de Direito do qual também tornou-se, por seu correto comportamento e louvável saber, ordenança e homem de confiança. Serviu como Escrivão para várias autoridades policiais, sendo nomeado amanuense da Secretaria de Polícia onde ficou até 1868, de onde foi demitido a bem do serviço público como “turbulento e sedicioso”, pelos políticos dos partidos conservadores que chegaram ao poder. Luiz Gama ainda estava no período da escravidão e sua condição de negro em cargos públicos de referência incomodava o sistema escravista que se estruturava sobre a quebra da autoestima do negro, de sua alegada condição inferior, de ser quase que um objeto que falava. A sua ascensão social e política na sociedade onde o escravismo ditava as leis, certamente incomodava o poder supremacista local da época. Como Jornalista Gama escreveu para vários periódicos onde através de sátiras defendia o fim da escravidão e a república, atacando ferozmente a aristocracia brasileira. Em seu trabalho de advogado, exercido de maneira gratuita para os negros, conseguiu libertar mais de 500 escravos. Em seu círculo de relações abolicionistas, entre tantas outras personalidades, torna-se amigo íntimo de José Bonifácio, o Moço, professor de Direito, neto do Patriarca da Independência, amizade correspondida que durou por toda de ambos. Em julho de 1859 assiste ao nascimento do seu filho Bendicto Graccho Pinto da Gama, fruto de sua união com Claudina Fortunata Sampaio, que viria a se tornar engenheiro eletricista e que está sepultado a seu lado no mausoléu do Cemitério da Consolação. Neste mesmo ano publica “Primeiras Trovas Burlescas de Getulino”. No ano seguinte publica a segunda edição da mesma obra revisada e corrigida na cidade do Rio de Janeiro, onde mais uma vez tenta encontrar sua mãe Luiza Mahin, sem obter êxito. A partir de 1861 Gama dedica-se de corpo e alma ao seu trabalho no jornalismo, com ênfase na “República das Letras”, focando sua verve literária e o saber jurídico na defesa das ideias liberais, republicanas e abolicionistas. Os movimentos sociais republicanos avançam juntamente com a pressão internacional pelo fim da escravidão, capitaneada pela Inglaterra com seu interesse em vender máquinas e engenhos à vapor paridos pelo ventre da Revolução Industrial. A Junta Francesa para Emancipação dos Negros, ligada à Maçonaria, encaminha carta ao governo brasileiro para que a abolição da escravatura se torne um processo rápido e concreto. Que obteve como resposta do Império Brasileiro que seria apenas uma questão de forma e oportunidade. Todo esse movimento incendiava o país. Estados como Ceará e Rio Grande do Norte já encaminhavam seus processos de abolição, assim como o Rio Grande do Sul. Revoltas escravas aconteciam de norte a sul do país e em 28 de setembro de 1871, como um preâmbulo para a abolição geral e irrestrita, foi promulgada a Lei do Ventre Livre. No ano de 1877, em meio ao incansável trabalho humanitário, Luiz Gama estabelece sua banca de advogados com Antônio Carlos Soares e Antônio Ferraz, onde exerce a profissão de advogado até o fim de sua vida. Doente e consumido pelo diabetes sua militância no final da vida era motivo de admiração por toda a sociedade. Mesmo assim fundou o Centro Abolicionista de São Paulo e José do Patrocínio por sua influência cria no Rio de Janeiro a Sociedade Brasileira contra a Escravidão, cujo presidente era Joaquim Nabuco. Tornou-se destacado maçom, recebendo daquela fraternidade todas as honrarias possíveis. Morreu em 24 de agosto de 1882 na cidade de São Paulo. Exatamente 6 anos antes da abolição da escravatura, pela qual tanto lutou e dedicou sua vida de jurista, jornalista e poeta. Seu funeral foi o maior já registrado na história da capital paulista. Se fossemos calcular proporcionalmente em relação aos dias de hoje, seriam milhões de pessoas às ruas acompanhando a passagem do cortejo fúnebre. Luiz Gama deixa como exemplo para o povo negro, que nada pode suplantar a força de vontade, a garra de vencer e a paciência para triunfar. São inúmeros recados que sua existência deixou para a posteridade. Mas alguns são basilares como a importância da educação formal na vida de todos os seres humanos. O segundo exemplo é a retidão de caráter e a determinação na crença do que é o bem natural e humano, e o último, que é a lealdade do compromisso com a justiça e a liberdade. Se hoje pessoas negras conseguem galgar patamares significativos tanto na vida pública como na iniciativa privada, com certeza há a pena, o cérebro e o olhar de Luiz Gama. Se em cada parque, praças e praias do país as crianças negras correm livres e felizes está ali o sorriso de Luiz Gama. Ele nos deixou como responsabilidade uma tarefa imensa que é defender o legado dos abolicionistas, que dedicaram suas vidas para que nós pudéssemos ter as nossas bem ao alcance de nossas mãos. A vida de Luiz Gama é uma saga inimaginável. Se fosse no hemisfério norte, certamente teria se transformado nas mais altas linguagens culturais, artísticas e históricas. Nós escritores, poetas e amantes da liberdade, podemos homenageá-lo com lindas produções literárias que comporão essa coletânea tão especial. Traçaremos linhas de uma teia que serão o amálgama de um mosaico admirável, daquele ser humano que nasceu livre, foi tornado escravo pelo próprio pai aos 10 anos de idade, sofreu todas as intempéries da vida, deu a volta por cima e mesmo atado aos grilhões da escravidão, soube perseverar e transformou todos os limões azedos que a vida sempre lhe ofertou em uma deliciosa e refrescante limonada chamada liberdade.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Não provoque, é cor de rosa-choque.

O velho Marx jamais imaginaria que uma jovem chinesa pudesse dar um baque de 1 trilhão de dólares na economia dos EUA em somente um único dia, lembrando que o PIB brasileiro atualmente é de U$ 2 trilhões. Fuli é a principal desenvolvedora do chatbot chinês deepseek, a nova ferramenta de Inteligência Artificial que chegou com seu código fonte aberto espantando o mundo e assombrando as big techs estadunidenses. É cor de rosa-choque, não provoque.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Os Cavaleiros do Apocalipse

A posse de Donald Trump foi um duro recado aos pobres do mundo: não venham para os Estados Unidos! E para os imigrantes que lá estão os tambores da deportação começaram a rugir com a chegada do primeiro grupo de brasileiros que chegaram algemados e acorrentados ao Brasil. O ideal de sonho americano para estrangeiros da periferia do capital acabou.
Os brasileiros da direita que debandaram para os EUA após a vitória de Lula, buscando um país livre do comunismo e da opressão da esquerda, segundo eles, estão em pânico e se organizando desesperados para deixar o país que tanto amam, o berço da democracia contemporânea, segundo eles. O Deus Trump mostrou para esses iludidos que eles os estadunidenses, não gostam de brasileiros ou de qualquer tipo de latino, mesmo os que usam bonés e adesivos republicanos. Voltarão humilhados acusando o governo comunista brasileiro de nada ter feito para evitar a terrível humilhação a que foram submetidos, sim, Lula será o culpado.
Para a saúde do planeta, de uma maneira geral, o recado está dado com a saída dos EUA do Acordo de Paris e consequente enfraquecimento da COP 30 na Amazônia, que ainda trazia algum alento sobre a melhoria da situação climática global. Segundo especialistas nosso planeta resistirá no máximo 100 anos, se continuarmos nesta célere marcha inexplicável em direção ao auto extermínio. 
Se observarmos os convidados do evento, todos os CEOs das grandes petroleiras globais estavam presentes marcando posição pró combustíveis fósseis, mostrando que a grande revolução tecnológica que decretaria o fim da atual e poluidora matriz energética de base petrolífera, irá para as calendas. A margem equatorial brasileira está sob vigilância e cobiça das grandes empresas de petróleo do hemisfério norte. Caso o governo brasileiro insista em fazer parte desta aventura a Amazônia Brasileira será severamente atingida.
O novo presidente estadunidense decretou o fim do identitarismo, cravando um punhal no coração das políticas de inclusão e das ações afirmativas como estratégias de reparações. O primeiro movimento foi o fim das ações afirmativas e as diversas identidades de gênero. Agora nós EUA só existem os dois gêneros tradicionais, masculino e feminino e as mulheres trans quando presas serão enviadas para presídios masculinos. Todos os segmentos historicamente discriminados e em situação de vulnerabilidade serão tornados invisíveis aos olhos do governo, onde passarão a sofrer todo o tipo de opressão e perseguições sem querer possam recorrer ao amparo governamental.
A sociedade estadunidense está voltando ao século XIX com todo vigor. Haverá um enorme aprofundamento das já débeis políticas de desregulamentação trabalhistas e um pesado investimento em robótica e desenvolvimento em Inteligência Artificial, destruindo empregos, promovendo demissões em massa e gerando fome e miséria, aumentando mais ainda o esgarçamemto do tecido social estadunidense. Pela primeira vez na história daquele país os nativos digladiarão com imigrantes disputando empregos de baixo perfil.
As políticas que serão adotadas impactarão seriamente o draconiano sistema de saúde que fechará cada vez mais suas portas aos que não podem pagar por seus extorsivos serviços de saúde. Esse tipo de política gera situações assombrosas como aumento da taxa de suicídio de idosos que não conseguem pagar pelo serviço de saúde.
Os jovens estão sendo convencidos pela política  "woke" de direita a se tornarem empreendedores, já que está em curso a política que determina o fim do emprego formal em grande espectro. Para isso o sistema educacional investirá cada vez mais na busca de currículos que atendam ao mercado de TICs e IA, abandonando o contexto fabril de produção humana. Na verdade é como se o dinossauro estivesse preparando a chegada do meteoro.
O fascismo sempre preconizou um mundo para poucos. Assim foi com Mussolini e Hitler e agora com Trump, que destinará aos deserdados do planeta o sal amargo da terra.
O Brasil com sua vocação de subserviência aos EUA, certamente absorverá grande parte desta doutrina eugenista e excludente. A nostalgia da escravidão e do poder senhorial por parte de nossa elite cafona e atrasada, nos faz ligar o sinal de alerta para os ataques que virão, principalmente contra as políticas afirmativas que protegem indígenas, negros, deficientes, movimento antimanicomial, lgbtqiapn+, trabalhadores rurais sem terra e sem teto, atingidos por barragens, mulheres e outras inúmeras frentes de luta por inclusão e representatividade.
A foto do evento mostra qual o público que estará dando as cartas no pano verde da geopolítica global. Apesar de alguns espinhos no caminho como China, Rússia, Irã e BRICS, o império estadunidense criará a expansão da pobreza, as guerras e intervenções militares, a execração dos povos negros e latinos, além da persecução do patriarcado e da sub representatividade da mulher.
Somadas as fortunas da primeira fila do evento no Capitólio, o valor corresponde ao PIB de 160 países. Dinheiro para comprar a consciência dos congressistas mundo afora é o que não falta. 
Havia um informe publicitário de bebida alcoólica aqui no Brasil que dizia: “Eu sou você amanhã”. Se liga Brasil.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Aniversário da Ala de Compositores da Mangueira no Palácio do Samba

Cartola fundou a Ala dos Compositores da Mangueira em 20 de Janeiro de 1939, dia de Oxóssi ou São Sebastião no sincretismo. A Mangueira surgiu em um Centro de Umbanda Omolokô cuja Mãe de Santo era Tia Fé, responsável pelo rancho Pérola do Egito, embrião da atual Mangueira. Tia Fé que é falecida, é avó da atual presidente, Guanaíra Firmino, mulher negra e também membro de religião de matriz africana. 
Nós compositores herdamos a responsabilidade de representar nossos eternos mestres como Cartola, Nelson Cavaquinho, Zé Espinhela, Abelardo da Bolinha, Euclides, Maçu, Alfredo Português, Verinha, Hélio Turco, Saturnino, Pedro Caim, Jurandir, Zagaia, Carlos Cachaça, Nelson Sargento, Criança, Gradim, Aloízio, Padeirinho, Tantinho, Geraldo da Pedra, Zé Grande, Alfaiate, Preto Rico, Zé Ramos, Jajá, Comprido, Zé com Fome, Geraldo Pereira, Baiano, Zé Branco, Brogogério, Tolito, Odaléa madrinha da ala e muitos poetas e poetisas que criaram os hinos que a Mangueira leva para a avenida dos desfiles no carnaval
Hoje a Ala dos Compositores da Estação Primeira de Mangueira é Patrimônio Imaterial do Rio de Janeiro o que torna nossa responsabilidade maior ainda. Os antigos certamente estão tomando conta do nosso trabalho lá do Orum. Que orgulho pertencer ao Quilombo da Mangueira e lutar para que o mundo seja cada vez mais um moinho que triture sonhos mesquinhos.

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Dostoiévski passeando nas estrelas

Os sinos dobram quebrando o silêncio nas noites estreladas de São Petersburgo. A pérola do Neva está de luto. Fiódor Dostoiévsky deixa o mundo dos vivos. Seu corpo jaz hirto e solene na casa dos mortos onde crimes e castigos são perdoados e os demônios definitivamente exorcizados. A gente pobre, o idiota e o jogador choram observando o esquife que descerá à tumba.
A partir de então será uma triste memória no subsolo marejando os olhos dos irmãos Karamazov. Os sons dos sinos enlutados cobrem a cidade dourada com uma tristeza indescritível. As catedrais em lamento anunciam a emancipação espiritual do seu corpo livre do frágil cárcere de carbono que limita a alma à estrutura que compõe a pobre e tosca matéria humana.
Enfim livre! Está livre deste calabouço de expiações. Repositório de tristezas e lamentos do que um dia pode ser chamado de vida. A humanidade está cada vez mais desumana e cruel, tornando-se tristemente inumana, onde seus representantes estão perdendo as características basilares da solidariedade e do amor. As pessoas que ainda persistem nessas virtudes são como comunidades raras e retiradas em um mundo violento e em princípio de auto-extinção.
Infelizmente a alma humana não deu conta da complexidade do existir e capitulou diante dos discursos de ódio e das segregações infinitas como por cor da pele, credo, ideologias, culturas e cosmovisões. Se há um criador, ou criadora, devem lamentar o tanto de tempo que foi perdido para a evolução desses seres para que se tornassem tão cruéis assim, tão intolerantes assim, tão estranhos e perversos. Viver preso a este mundo sufocante deixou de ser graça para ser castigo. A morte soa como um chamado bem-vindo que retira toda a gente deste sombrio vale de lágrimas.
A Terra agora é um planeta doloroso e incompreensível que ficou para trás. É apenas um pálido ponto insignificante que insiste em brilhar envergonhado no negrume da noite eterna. Continuará sendo o purgatório das dores de um povo que se entregou à cobiça e acúmulo de riquezas e poder a qualquer custo. São cativos da usura e da perfídia, buscando através do sofrimento e exploração de seus semelhantes uma vida farta, mesmo que obsessiva e triste.
Há que surgir uma Nêmese que possa restaurar a gênese redistributiva do espírito humano que esqueceu do milagre dos peixes fartamente narrado nas escrituras dos cristãos.
Como oriundos do útero das estrelas nossa missão é brilhar e iluminar o semelhante e não escravizá-lo e submetê-lo à subcidadania. As mulheres devem ser exaltadas e não humilhadas, devendo ser restaurados todos os seus sacros lugares de geradoras da humanidade. A fome, a miséria, a ferocidade e a sordidez são situações devem ser banidas de nossa condição humana, para que possamos viver efetivamente livres.
A alma do poeta enfim partiu livre e sem amarras pela imensidão do universo. Sobrevoa extasiado por quasares, pulsares, estrelas de nêutron, gigantes vermelhas, sistemas binários e constelações que nascem nascem no mais profundo caos. Em sua trajetória surgem nebulosas e berçários de estrelas dançando sobre a matéria escura. Milhares de sóis brilhantes adornam sua jornada, coroando o sonho de um homem místico que considerava a morte uma história desagradável, pois sempre acreditou que a vida somente é suportável através da esperança e de que a morte é apenas uma ilusão.
Segue cruzando dimensões incríveis, mundos paralelos, misteriosos buracos negros com seus horizontes de eventos. Em sua fantástica viagem rejubila-se com a perspectiva de estar diante do Dono de todo esse poder.
A Terra, aquele velho, pesado, incompreensível e doloroso mundo ficou para trás, é apenas um pálido ponto azul no negrume universal. Cumpriu sua expiação naquele território de expiação e sofrimentos onde os humanos purgam suas dores existenciais e seus desejos de ouro e poder.
Na serenidade da liberdade mais pura, ouve os acordes que soam nos campanários do paraíso, espaço onde o pensamento está livre das limitações da matéria, dos julgamentos, dos duplos comportamentos, das culpas.
Flutua livre e suave nos infinitos recônditos do universo inimaginável sob o troar dos Pilares da Criação, onde luzes rasgam as trevas imemoriais criando novos mundos através da gênesis primordial.
Assiste maravilhado a magia da Criação gerando novos corpos celestes em um universo sem fim.
Observa espantado e feliz em sua magnificência de todo o ordenamento universal: Grupo Local, Aglomerado de Virgem, Laniakea, o Grande Atrator, Pontes Einstein-Rosen, Muralha de Hércules – Corona Borealis e a imensidão inimaginável bo universo profundo. Apesar da fúria e do caos parido no ventre da dialética de Deus há paz e harmonia. As ondas de amor que sente são as cordas da harpa da criação divina. Tudo se resume em amor, tudo é amor, absolutamente amor
Fique em paz na luz eterna e amorosa amado irmão, camarada e poeta Dostoiévski. O ser humano que falava a língua dos anjos.

sábado, 11 de janeiro de 2025

Um amor que nasceu nas estrelas


 

Todos os dias ele sentava-se sob a marquise do velho armazém abandonado, no antigo cais, atualmente um porto seco. Ficava ali cismando, absorto, imaginando como teria sido o provável vai e vem das embarcações, hoje barcos fantasmas, que não existem mais e pouco se importam com os vendavais. Alguns o diziam louco, outros um pensador refinado de um tempo perdido, como Diógenes de Sinope. Talvez fosse um viajante do tempo, um ser metafísico oriundo de épocas imemoriais. Chamava atenção pelo fiel cão caramelo, sempre vigilante e atento ao seu lado, cuidando para que alguém nunca pudesse roubá-lo de si. Havia se tornado um andarilho de cidades, litorais e sertões, sempre procurando sabe-se lá o quê, sob o sol cáustico da caatinga ou no inverno rigoroso e úmido das cidades sulistas. Ultimamente andava refletindo sobre a criação, sobre o surgimento da vida no planeta. Quando teria sido o momento do início de tudo? a centelha primordial que sublimou Carbono, Oxigênio, Nitrogênio, Fósforo e Enxofre, gerando as primeiras células e cianobactérias, os primeiros aminoácidos, as organelas e mitocôndrias que conduziram a energia necessária para que as primeiras formas de vida surgissem.

A estória deles começou quando certa vez ouviu da parte dela, em um desses misteriosos encontros de almas no parque da cidade, ela discorrer sobre como todos esses elementos vieram do espaço profundo, para formar a base de tudo que existe aqui na Terra. Durante milhões de anos a simbiose entre esses elementos foram criando as condições necessárias para o surgimento da vida. A mulher mostrou para ele um universo fantástico, desenhando com a ponta dos dedos em um quadro imaginário e suspenso no ar, a dança relativística existente no cosmo, entre nebulosas e seus berçários de estrelas e a formação de sistemas solares pela imensidão do universo. Falava do colapso das estrelas gigantes vermelhas, das explosões das supernovas e da energia absurda e brilhante dos pulsares. Desenhava delirantemente, como se os braços e o corpo estivessem regendo em uníssono o balé primordial da vida. Uma sinfonia ora relativística e pagã, ora criacionista e divina, sob a batuta de um ser imanente, universal. Encantada ela viajava entregue aos mundos imperscrutáveis e distantes, onde residem o tudo e o nada, o inimaginavelmente grande e o reduzidíssimo e assombroso mundo quântico.

Enquanto explanava sobre gênese da vida, praticamente em transe, a mulher de modo arfante e extasiante, mostrava como esses colapsos estelares trouxeram os elementos saídos em jorro das explosões nucleares, ocorridas no coração das estrelas. Esse material em estado caótico, cumpria então uma incrível jornada de bilhões de anos através das temidas e gélidas noites do universo, chegando em forma de poeira estelar até nosso planeta e a partir desse encontro gerar a vida, rara e exuberante que vemos hoje em dia. Somos poeira de estrelas! O cálcio dos nossos ossos e dentes! O ferro do nosso sangue! O carbono de nossa estrutura! Tudo veio do interior das estrelas. Sim, somos filhas e filhos das estrelas! Por isso nossos olhos brilham! Por isso sonhamos com elas e lhes admiramos, dedicando-lhes poesias nas noites de céu cintilante, onde vaidosas estrelas brilham com todo o esplendor, como que dizendo para os humanos, seus filhos: "vejam como brilhamos! Brilhem conosco também!" Como é fantástica toda esta criação!

Depois desse encontro mágico ele nunca mais se esqueceu dela. Como poderia! Ela era intensa como um rio caudaloso que a tudo arrasta, avançando sobre as margens, beijando e cobrindo com energia as terras virgens dos vales verdejantes. Sim, era uma mulher das estrelas. Nunca mais a viu. Mas as narrativas pulsantes que ela lhe transmitiu deixaram marcas que ficaram para sempre em seu coração.

Seu nome ninguém sabia, era visto como um eremita que abriu mão dos bens materiais e dos prazeres mundanos para mergulhar no oceano de interrogações que é nossa própria existência, a existência dos humanos cercada de alegrias e decepções. Qual será o propósito de existirmos? Qual a finalidade? Por que tantos sentimentos? Hábitos e transmissões atávicas? Qual o sentido da vida? Por que estamos aqui?

Vivendo essas interrogações passou cada vez mais a visitar o mundo quântico. Um território inóspito e desconcertante, onde a metafísica se curva ao desconhecido e o brilhantismo das teorias mais brilhantes da Física simplesmente desaparecem, diante dos enigmas indecifráveis e fantasmagóricos que se apresentam no mundo subatômico.

Ouviu certa vez que ao começar a beber o vinho no copo das ciências sociais, o observador torna-se ateu. Mas no fim do líquido, Deus o estará esperando no fundo do copo. Por isso recolheu-se em silêncio, procurando um sentido para o porquê de caminhar nas areias da praia deserta recolhendo seixos lhe dava tanto prazer. Como compreender a complexidade da alma humana com suas contradições e enigmas? Para que isso tudo para um período de tempo tão ínfimo e curto que é o da vida humana no planeta?

Naquele cais seco onde sentava-se diariamente, geralmente no mesmo horário, podia ouvir o som de uma sonata ao piano. Sonata linda e melancólica, que fluía de uma pequena edícula cercada por um gramado bem aparado e de um verde vivo. A edificação estava com as janelas entreabertas, onde podia-se observar o esmero do feng shui e o bom gosto de quem habitava aquele espaço bucólico. Como saído de um transe decidiu sair pelo mundo e quem sabe nunca mais retornar àquela cidade. Porém ao voltar-se para contemplar a edícula pela última vez, pode ver através da cortina de tule os olhos brilhantes da mulher das estrelas que tanto o havia encantado, que surpresa!

Através da ilusão da transparência do tule, ela observava curiosa o modo dele caminhar. Era um andar que indicava certa fragilidade, falso desequilíbrio e ao mesmo tempo suavidade. Coisa de quem já correu mundo, correu as sete freguesias, como dizia sua amada avó. A roupa era um pouco desleixada mas limpa, a barba por fazer e os primeiros grisalhos aflorando à têmpora conferiam-lhe um certo charme de homem vivido que conhece a estrada da vida e seus atalhos.

A doçura da sonata inundava o ambiente despertando um ar nostálgico e sentimental. Não quis se aproximar muito dele, mesmo quando lhe contou sobre as atividades nos ventres das estrelas. Leu em seus olhos a natureza selvagem e fugaz de seus sentimentos. Viu também que ele possuía a necessidade incansável de descobrir o sentido para estar aqui nesse planeta, fazendo parte da imensidão cósmica como um milimétrico grão de carbono. Sentiu que ele não era afeito às interações sociais. Lembrou de Schopenhauer que dizia haver um vazio de interações sociais no âmago de pessoas possuidores de altas habilidades ou bastante intelectualizadas. Essas pessoas costumam se fechar para as convenções sociais e seus mais diversos agrupamentos humanos.

Talvez valesse à pena iniciar um flerte suave ou até um namoro com ele. Mas a preguiça e o cansaço de ter que lidar com o complexo universo masculino tirava-lhe o incentivo.

Aprendeu desde cedo que o reino dos cromossomos Y, a gênese do patriarcado, é voltado para a competição, para a guerra e para o domínio. Sorriu ao comparar esse estado de espírito ao Princípio da Incerteza do alemão Heisenberg, nesse caso demonstrando que quanto mais avaliava o estranho homem menos o conhecia. Sentia um profundo desapontamento ao imaginar um homem chegando embriagado, reclamando da vida, espalhando roupas sujas pela casa e sujando tudo por onde passasse como um animal fugido da chuva. Não, sua paz sempre foi a paz das montanhas, do verde, da natura, da meditação, dos florais, mantras e cristais. Amava deitar sobre os lençóis de linho perfumados e sedosos como seu corpo. Seu travesseiro de plumas acariciava sua cabeça mostrando que a leveza da vida é individual e egoísta. Cada detalhe da casa lhe remetia a um momento da vida. As xícaras que ganhou da tia que viveu no sul, o edredom da amiga de universidade, o jogo de panelas que ganhou da mãe e uma foto amarelada pelo tempo de um jovem empertigado que foi o pai que não conheceu pessoalmente. Tudo em seu devido lugar, sem um grão de poeira, onde suas lembranças vivas serviam como um diário iconográfico existencialista, que lhe acompanhavam curiosas pela casa, por todos os cantos de todos os aposentos.

Não torcia para ter um homem em seu santuário que era o seu lar. Não queria um macho cheirando e vasculhando seus alfarrábios e tesouros ou mudando os suas teteias de lugar. Certamente ele colocaria suas lembranças alienígenas e rudes junto das suas tão delicadas, que se assustariam horrorizadas com as atitudes brutas e deselegantes dos objetos do estranho. Uma garrafa de aguardente aqui, um pacote de fumo de rolo acolá e um punhal com cabo de madrepérola em algum canto. Isso era demais para quem vive a solitude da vida solo, em paz e integrada com a natureza.

Observava através do tule branco o caminhar daquele homem estranho se afastando lentamente. Sentiu que suas lembranças emitiram suspiros de alívio ao saberem que tudo continuaria na normalidade de sempre. Mas e o coração? Ah! O coração! Esse moço vadio e travesso, sensível e carnavalesco, profano e indecifrável. 

Sim, coração de mulher é território que homem desconhece e pensa que conquista. Lembrou-se da tia que dizia que enquanto o homem ia com a farinha a mulher já voltava com o pão de queijo assado. Os homens jamais decifrarão um coração de mulher. Podem até tê-lo por algum tempo, mas é como uma vitória ilusória, quando se pensa que ganhou já perdeu. Mulher é ser quadrifônico e homem é mono ou no máximo estéreo. Enquanto o homem vive o samba de uma nota só a mulher nos inunda com sua sinfonia universal, pois carrega dentro si o dom da vida. Ela traz a determinação das estrelas em manter acesa a chama da vida humana no universo, a mulher é a representação viva do universo, toda mulher é uma estrela.

Enquanto divagava mantinha o olhar naquele homem que caminhava desajeitado com os cotovelos balançando como se fosse movido a remos invisíveis. A absoluta ausência de pressa no caminhar e seu provável alheamento aos sistemas mundanos do cotidiano exerciam um certo fascínio sobre ela, que sentia um frisson lhe percorrer o corpo ao pensar assim. Ficou curiosa em saber para onde ele iria, em quais terras estaria pensando viver, o que lhe causava tanta inquietação para que mantivesse essa busca insana por respostas para suas inquietações. Sabia que os homens eram assim. Nunca estavam satisfeitos com o que tinham. Sempre buscavam novos prazeres e desafios. Enfrentavam moinhos de ventos imaginários, como irrequietos quixotes contemporâneos. No fundo gostaria que ele ficasse mais um pouco. Poderia tornar-se sua amiga, fazer bolo de milho para tomarem café da tarde juntos, ajeitar a bainha da calça meio surrada, cortar seus cabelos e nadarem no rio juntos nas tardes de domingo. Seria maravilhoso conversarem sobre outros mundos que povoam o universo: galáxias, planetas, nuvens e nebulosas, cometas, aglomerados, Campo de Higgs, Neutrinos, Modelo Padrão, Fermions, Quarks, Gluons, Léptons, Gravitons e toda a fascinante complexidade da Relatividade com seu gigantesco espaço/tempo e da Física Quântica, com seu mundo subatômico invisível. Não haveria outro como ele e inexplicavelmente o estava deixando partir, com aqueles maravilhosos olhos negros, barba sempre por fazer e seus resolutos cotovelos remando eternamente um bote invisível rumo a algum Shangri-Lá, enquanto caminhava.

Os homens são dependentes demais e costumam esconder suas carências atrás da máscara da autossuficiência. Na verdade a grande maioria deles nunca rompeu os laços de proteção e dependência que a mãe lhes criou. Vivem esperançosos em encontrar uma mulher que permita a conexão com seu cordão umbilical, um elo perdido entre o bisturi e o útero. Por conta disso toenam-se edipianos escandalosos e dramáticos, trapaceiros e infantis quando querem ver seus desejos atendidos, pois querem a mulher e companheira como um avatar imanente de suas mães.

Uma mulher que quer ser feliz em uma relação afetiva com um homem, deve saber que talvez tenha que abrir mão de muita coisa importante que lhe são caras, em prol dos desejos de seu parceiro chantagista. Apesar de sua autodeterminação e livre arbítrio, será sempre ela a pessoa que invariavelmente fará as vontades do parceiro e se conformar com suas perdas. Seu homem sempre procurará ser o ente dominante, através de trapaças emocionais. Porém por motivos pessoais e econômicos algumas abrem mão do brilho próprio de estrela e por vezes até se comprazem com este domínio. Homens são frágeis e emocionados, mas insistem em ser competitivos, gostam do desafio até mesmo quando sabem que a causa está perdida. Vivem em um mundo onírico onde as irrealidades lhes salvam da condenação imposta pela lei da gravidade. Os homens não lutam prioritariamente com outros homens. Eles lutam mesmo é com a lei da gravidade e têm pavor dela. Passam a vida com a espada da disfunção erétil sobre suas cabeças, um grande sofrimento oculto e inconfessável. Sofrem mais ainda ao saber que suas companheiras não nasceram com esta provação, pelo menos assim de maneira tão explícita, então desesperam-se escondidos da égide do poder lunar do feminino. A necessidade protagônica de ter que apresentar um comportamento erétil regular e eficaz, faz do homem um eterno escravo de suas inseguranças. Porém a sabedoria das mulheres compreende o tanto de vinho amargo que os homens sorvem cotidianamente, e isso fazem-nas administrar com sapiência esse tipo de conflito. Afirmam categoricamente que sexo não é tão importante assim, mesmo ardendo em chamas e desejosas por prazer.

Enquanto divagava sobre esses assuntos do mundo das interações afetivas, observava o homem remando com seus cotovelos se afastar lentamente para cada vez mais longe. Sentia um feeling estranho ao ver aquele ser felino e enigmático, quase inumano, passando pelas cercas vivas de ciprestes na paisagem bucólica e perene do caminho. Talvez fosse o homem da sua vida, aquele com quem envelheceria junto, cuidando do fogo da lareira enquanto lia poemas de Ezra Pound ou literatura de Alejo Carpentier, mas o estava deixando ir. Talvez pela preguiça de ter que engendrar um novo relacionamento, que é mentalmente muito cansativo. Ou por medo de encontrar e viver os perigos reais de uma grande explosão de felicidade, que costumava paralisar seu superego, deixando-a indefesa em mundo de grandes predadores. Preferia viver na placidez de sua vida, com seus gatos e lembranças lúdicas, sem ter que fazer bainhas, bolos de fubá e ser estimulada a conversar quando não estivesse com vontade. 

Enquanto o homem se afastava, podia-se ouvir o ruído do cascalho sendo esmagado sob suas botas, que aos poucos ia tornando-se cada vez mais inaudível. Ela imaginava que este deveria ser o homem ideal, pois com todo seu jeito desajeitado que tinha por fora, certamente era uma ser humano maravilhoso e bastante harmonizado por dentro.

Sartre disse que a existência precede a essência. Parece paradoxal mas não é. No caso daquele homem, ela avaliava que dentro da corrente do existencialismo ele primeiro se fez homem e depois erigiu sua essência com suas experiências através do tempo. Enquanto ele se tornava cada vez mais distante, remando com os cotovelos, ela sentia uma réstia de alegoria e ironia de acordo com Soren Kierkgaarg que propunha um profundo mergulho dentro do existencialismo. Aquele homem construiu sua essência como Michelangelo esculpiu Davi, preocupado com os mínimos detalhes, sem pressa, com devoção e espiritualidade, dando vida ao mármore.

Finalmente ele dobrou a esquina no fim da rua e sumiu para sempre, deixando um vácuo estranho que foi seguido por palpitações irregulares no coração agnóstico da mulher das estrelas. Um sinal de luz, um arrepio indecifrável percorreu seu corpo, quando a partir de então ela teve a certeza que enfim talvez houvesse encontrado o homem da sua vida, seu amor incondicional e transcendental, que a faria convulsionar desejosa nas noites solitárias de inverno, após as muitas garrafas de vinho degustadas ao luar, em suas noites de loba voraz.

Ela então correu para as cartas do Tarot e as cartas insistiam repetidamente em mostrar o arcano 9, o Eremita. Estava claro como água que aquele homem queria cair no mundo e encontrar seu destino. Desejava o autoconhecimento e para isso insistia na solidão dos peregrinos. Ela passou então a pensar em como seria bom a vida com ele, após o reencontro em algum dia no futuro. Não conseguia se entregar a um homem somente pelo prazer da carne. Já havia sublimado há tempos o controle de sua compulsão sexual. Havia decidido voltar para dentro de si mesma e mergulhar profundamente nos recônditos de sua alma. Precisava encontrar o limite ideal entre o emocional e o racional, entre o prazer e a elevação espiritual. Havia resolvido cuidar do seu presente como se fosse um jardim de orquídeas raras e delicadas e não se comportar como uma borderline fetichista em busca de prazer.

Apesar do tempo ser relativo, na configuração dos humanos ele existe de verdade no presente. O passado já passou, não existe mais e o futuro ainda não chegou. Portanto o tempo da vida é o tempo presente. É nele que depositamos nossas esperanças, e também é nele que projetamos os passos do nosso futuro. Qual o mistério bioquímico que faz duas pessoas interagirem quase que simbioticamente? Assim ela se perguntava e recorria ao tarot e runas em busca da resposta que sabia ser quase impossível receber. Perguntava-se qual o motivo de não encontrar o homem ideal, logo ela, tão tranquila, envolvida com a metafísica da alma, buscando sempre o bem comum e vivendo de maneira simples e imaculada? As deusas não lhe respondiam, os arcanos altos mostravam aquele Eremita, sempre ele. A cosmovisão africana também lhe mostrava pelas contas de Ifá do jogo de búzios que havia uma pessoa ligada à ela espiritualmente, caminhando e buscando respostas, um homem de Oxumarê, orixá filho de Nanã com Oxalá. Oxumarê foi abandonado pela mãe e aprendeu tudo da vida sozinho em suas andanças pelo mundo. 

Mergulhada no mundo meyafísico ela não considerava nenhuma perspectiva de envolvimento com alguém que não compartilhasse os mesmos mundos que acreditava e depositava sua espiritualidade. As propostas que surgiam geralmente giravam em torno de sexo recreativo, logo com ela que repudiava essas investidas, pois mergulhava fundo em seu próprio âmago, em seus oceanos mais profundos, em busca da felicidade transcendental.

Ele caminhava absorto como sempre em seus caminhos, sabendo que não havia um destino certo para ir. Sabia não haver uma família lhe esperando, uma mesa posta e um leito aconchegante, o que realmente nunca tinha tido. Era daqueles anjos tortos do bem que não construíam uma vida que a maioria das mulheres sonham: provedor, emprego estável, bom salário, dormir em casa todas as noites e ter finais de semana livres para almoçar na casa da sogra. Ele era absolutamente desprovido de ganância ou desejos de posse. Já nasceu assim, nunca gostou de competir com outras crianças quando era pequeno. Sempre foi tranquilo e detestava confusão. Cresceu em meio a seus silêncios e indagações, buscando na Filosofia, na Astronomia, na Astrofísica e na Mecânica Quântica, respostas aos seus questionamentos. Um ser humano que se volta para esses temas está fadado à solidão. A mesma solidão que passam os astros na imensidão do universo, um mundo gelado e enganosamente morto aos nossos olhos. Mas ao contrário do que imaginamos, é nesse vácuo onde o tudo e o nada se misturam e acontecem em uma interrogação exasperante que nunca tem fim.

Seguia em frente pensando nela. No fundo cultivava um sentimento egoísta torcendo para que ela nunca encontrasse outro homem até que ele voltasse de sua jornada exploratória. Pensava nos cabelos, no olhar, na boca e em tudo que conseguiu ver de maneira sutil através do tule revelador. Imaginava dormir e acordar ao lado daquela mulher das estrelas. Que tipo de perfume usaria? Como ajeitaria os cabelos, quão macia seria sua pele, a voz, que voz deveria ter e assim imaginava seria sua vida ao lado da mulher das estrelas.

O pior sofrimento que deve existir no campo da afetividade é você encontrar a pessoa da sua vida e deixá-la partir sem esboçar qualquer tipo de reação. Foi o que aconteceu com ele durante o encontro mágico que teve com aquela mulher. Pensou em como os seres humanos são covardes para o amor. O amor é para os bravos, para corajosos que não têm medo da felicidade, pois a felicidade é assustadora. Por isso os covardes do amor são melancólicos, lacônicos e estranhos. Se apavoram com a possibilidade de enfrentar uma vida a dois, de dividir seus sentimentos mesquinhos, de se expor abertamente para uma outra pessoa. São herméticos e infelizes, reféns da covardia e da ilusão de serem felizes sozinhos um dia, o que nunca serão.

Encontrar a pessoa que poderá compartilhar uma vida comum é um tremendo golpe de sorte, além de ser um desafio. É aquela situação de encontrar a pessoa certa no momento certo com as condições certas, na verdade um encontro das estrelas. Os casais nunca se separaram tanto como hoje em dia pois investiram em um sonho que não resistiu ao cotidiano poderoso da pós modernidade descrita por Zigmunt Bauman. Hoje não existe mais a absoluta dependência econômica dos parceiros pelas mulheres. Existem sim as mulheres disputando e ocupando o mercado de trabalho. Mulheres ativas com salários compensadores, muitas com carreiras sólidas com mestrado ou doutorado, carro do ano e um excelente saldo bancário. Qual o perfil de homem que essa mulher busca? Com certeza não será de um parceiro pobre, mesmo que nobre. Homens e mulheres buscam pessoas bem sucedidas na vida, na verdade pensam no que poderão construir junto no mundo material. Ninguém quer carregar peso extra na caminhada da vida. É a lei da modernidade onde tudo é muito rápido e as escolhas também o são e assim as decepções vão acontecendo e cobrindo a pós modernidade com as separações.

Ele refletia muito sobre a possibilidade de conviver com uma companheira. Imaginava os óbices que poderiam surgir no cotidiano do casal, possíveis discussões e atritos devido a pontos de vista diferentes. Entendia que os seres humanos são individualistas, apesar de viverem em sociedade. Sentia um imenso cansaço ao pensar em uma pessoa ao seu lado dizendo como tudo deveria ser feito, estipulando regras, horários e comportamentos. Era um homem de espírito livre, sem amarras no pensamento, um cruzado da liberdade individual, se fosse um felino seria um tigre. Através de Schopenhauer aprendeu que o ascetismo era a melhor maneira de eliminar a compulsão, a vontade e o desejo de querer sempreais, seria o caminho necessário. A renúncia voluntária dos desejos e prazeres mundanos, da sede de querer sempre mais, o levaria a um estado de vida contido,  com simplicidade, e consequentemente com paz interior.

Talvez estivesse pagando o preço por esta liberdade, pelo seu modo libertário de ser, ao não possuir e nem usufruir de um lar convencional com mulher e filhos, possuir uma família organizada de acordo com as regras sociais. Pelo contrário, vivia sozinho, caminhando em solidão e suas refeições eram sempre acompanhadas de si mesmo, de seus pensamentos e do seu inseparável cão caramelo. Gostava que assim fosse pois sentia uma certa aversão aos sentimentos mesquinhos das pessoas. As companhias, de uma maneira geral eram estabelecidas e movidas pelos mais diversos interesses e isso o aborrecia profundamente. Avaliava que se houve um ser superior que criou a humanidade ele falhou terrivelmente. O mundo vive ameaçado por guerras, pela destruição do meio-ambiente, por homicídios, agressões, roubos, traições violências de todas os tipos.

A espécie humana se tornou escrava do dinheiro, da cobiça e do poder. Para atingir esses objetivos passa por cima de princípios como a justiça e a solidariedade. Criou a política e a democracia somente para dominar e escravizar seus semelhantes mais vulneráveis, para oprimir as mulheres, discriminar os negros e negras, erigindo um conjunto de leis que protegem os mais fortes e oprimem os mais frágeis. A humanidade construiu um modelo de sociedade que dividiu os seres humanos entre vitoriosos e fracassados, entre ricos e pobres, entre inferiores e superiores. Não há lógica que explique milhões de pessoas passando fome enquanto outro milhão jogue alimentos fora. Esse tipo de atitude desumana fere o princípio do amor ao próximo e da solidariedade. Por isso falhamos enquanto humanidade. Falhamos miseravelmente quando gastamos fortunas imensas no desenvolvimento e aquisição de armas e equipamentos militares para dominar e matar outros povos, que também são nossos irmãos. Abrem mão de um futuro feliz para todos ao investir na indústria bélica no lugar de desenvolvermos pesquisas médicas para extirpar as doenças que matam e causam sofrimento à humanidade, parece que o ser humano não tem mais cura.

Assim foram passando os anos. Ela pensando na volta do estranho que havia cravado em seu coração a bandeira do amor que ela não ousou desfraldar e ele, interrogando a si mesmo se valeria à pena largar tudo e se atirar naquele colo misterioso e acolhedor. Achou melhor sair pelo mundo, sem esperanças, sem afeto ou calor de uma mulher que o compreendesse como ela. Imaginou que ela já estivesse casada com um homem correto, trabalhador e provedor, que a acompanhasse em todos os seus passos. Ele não faria isso, pois tinha atração pelo desconhecido. Sentia falta dela dos seus sorrisos adornados por duas lindas covinhas, dos lábios sussurrando belas e provocantes propostas, e seu olhar com aquela potência lunar que iluminava todos os recônditos do espírito. Para ele a mulher das estrelas era cristalina como um livro aberto. Costumava sorrir ao compará-la a um livro aberto mas de Física Quântica escrito em Aramaico.

Pensava nela, em sua incontida e esplendorosa alegria que certamente explodia no carnaval. Achava que ela com aquele seu jeito encarnava com todo o desprendimento possível uma Pagu ou até uma Leila Diniz jamais vista na Banda de Ipanema. Sentia amor quando imaginava ela brilhando e desfilando sua sensualidade hipnotizante nos blocos de sujo. Impossível resistir ao seu erotismo e sensualidade que atraiam olhares sequiosos de homens e mulheres pelas ruas do país.

Mais triste que a ausência é a certeza da perda. Nunca mais imaginariam juntos as loucas viagens à Próxima Centauri, nunca mais cruzariam os Anéis de Saturno, nunca mais se esbaldariam na espuma quântica de Plank, vibrar na frequência da Teoria das Cordas ou ensaiar viver no sanatório de Davoz Platz na Montanha Mágica de Thomas Mann. Como esquecer dela concentrada nos trabalhos de cura no Santo Daime, cantando firme e tocando maracá nos hinários “O Cruzeiro” e “O Justiceiro” de Mestre Irineu e Padrinho Sebastião. Gostava também dos hinários de Maria Damião e Madrinha Nonata.

Como amava vê-la compenetrada nos tratamentos xamânicos com kambô no meio da floresta, das celebrações wica, dos Amalás de Xangô e das belíssimas oferendas dedicadas a Oxum nas cachoeiras. Era espiritualidade pura, que mulher! Seguiu pela vida, nos quatro cantos do mundo, pensando na mulher das estrelas que havia deixado no passado e perdido a chance de ter sido feliz com ela.

Assim terminaram suas vidas. Ambos pensando um no outro, mas impregnados por um estranho sentimento que mistura amor com pavor de saltar sobre os abismos e mergulhar na escuridão que reside entre o tudo e o nada e que leva à realização plena do amor. Nunca mais se viram. Duas almas livres e incríveis que se negaram em favor da liberdade mais pura que é a própria negação da felicidade. Naquelas têmporas gris, nas noites estreladas, envelheceram cada qual em seu canto, um pensando no outro, sob um uma sinfonia doce e triste, entranhada por uma solitude serena e sincera. Cada qual no seu próprio universo observando amorosamente o céu e as estrelas, sonhando um com o outro, com aquele lindo amor que de tão incrível ficou perdido na grande imensidão universal. São namorados e amantes nos sonhos, nas noites frias e insones, nos momentos em que corpo e mente se unem independente da distância e do lugar. É o limiar do entrelaçamento quântico, rompendo todas as barreiras da ciência e estabelecendo que o amor é o bem maior e mais misterioso da natureza. Que para se realizar recebe toda a energia do panteão das deidades universais onde predomina a coroa dourada de Oxum e o manto branco de Oxalá.