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Eu Negro

sexta-feira, 17 de maio de 2024

O Eu Negro em Estilhaços

Eu negro quando me olho no espelho costumo não gostar do que vejo. Meu eu negro se reflete em incontáveis estilhaços, em uma grande entropia de cristais sediciosos, que representam o desmonte de minha estranha e inconstante psiquê.

Me eu negro quando se reflete no espelho, traz consigo uma carga imensa de sofrimentos ancestrais. Em cada estilhaço se refletem dores primordiais da alma negra, vilipendiada, violentada, flagelada e crucificada, após uma ultrajante e pérfida via crucis antropológica.

Quando meu eu negro defronta-se diante do espelho estilhaçado, tenta se reconhecer em meio a tantos eus disformes e assimétricos. São ‘não eus’ que se recusam a compor minha verdadeira alteridade física e emocional, como o instrumento desafinado em meio a uma maviosa orquestra sinfônica. Não consigo estabelecer um acordo com meu eu no espelho estilhaçado, porque além da recusa diante da impossibilidade normativa, há uma realidade distópica atuando em moto contínuo que não abre espaço para concertações humanas.

A triste saga do meu eu negro carrega consigo as cicatrizes de batalhas atávicas memoráveis. Traz o luto antropológico e a perversão do cativeiro que cruzou o mar salgado mil vezes com as ondas frias batendo em minha alma. Tantos porões desumanos no ventre dos navios negreiros, prenhes de dores e hostilidades. Tanto mar...tanto mal. Tanto sofrimento que durante séculos de indignidades humanas, formatou um sísifo existencial, que exaure minha mente nas infinitas e contínuas escaladas dos rochedos do existir.

Meu eu negro permanece no espelho em estilhaços, vive uma teogonia voltada para o lado humano, que passou a compreender o destino que sempre cumpriu, sempre preso a uma hermenêutica kantiana construída pelo proselitismo caucasiano, que insiste em apagar e destruir minha cosmovisão ancestral, multicultural e pluriétnica. 

Meu eu negro insiste em se descobrir humano, em um mundo alienígena de reflexos inumanos e hostis. A visão se torna turva diante de uma falsa deidade controladora de sociopatas eugênicos. O cansaço de conviver com esta metafísica canhestra me faz caminhar lento e claudicante, curvado pelo peso da vida por vielas tortuosas de um mundo sem vida e decadente. 

É assustador ver e não se reconhecer inteiramente como parte de um mundo que se expressa através da fenomenologia de Heidegger onde o "ser e tempo" mata e revive a metafísica, construindo e reconstruindo a maneira de ver o mundo negro sob o olhar negro.

Para qual mundo negro se deve seguir emancipado ou somente seguir com a manada, até o destino final? Apagar o passado soturno e varrer para debaixo do tapete os restolhos cínicos que os déspotas nos atiram. São migalhas humilhantes que apontam e ressignificam a miserabilidade que gradua as malditas diferenças fenotipicas do colorismo.Viver eternamente no porão da vida enquanto os capitalistas poderosos refestelam-se em suntuosos palácios às custas do nosso sofrimento. Viver em desgraça é a sina que os brancos racistas determinaram para o nosso povo negro.

Interrogações seculares que permanecem, me cobram através dos reflexos do espelho. Os estilhaços me atiçam em chamas, cobrando um modo de ação carbonário e revolucionário. Gritam em meus ouvidos, sangram meu corpo, esmagam os recônditos de minha alma. As interrogações são bárbaras e desumanas. Partem dos estilhaços do espelho como raios certeiros, tendo como alvos principais o coração e a alma negra. Penso em deixar tudo para depois sabendo me engananar, assim como as mães fazem ao dizer para o filho insistente ao pedir uma guloseima: “na volta a gente compra”. Sim, na volta talvez eu lute, na volta talvez eu sorria, na volta talvez me encontre.

O encontro metafísico do ser humano consigo mesmo, certamente ocorre através do desejo e da conquista da liberdade. A liberdade porém não é um constitutivo natural da alma humana, mas é também componente da realidade, da concretude do momento e do existir, em caminhar livre pelo mundo.

A liberdade é um estado que reside na dimensão do sentir, do desejo, da glória da conquista, da sublimação e do protagonismo dentro de um tempo histórico. Portanto a liberdade reside na existência de seres humanos históricos, protagonistas da história, e os negros brasileiros nunca foram convidados para dançarem nos bailes da vida para desfrutarem de uma revigorantecontradança.

Viver apartado da verdadeira liberdade, a liberdade dos vencedores, dos conquistadores, daqueles que escreveram e escrevem a história é uma carga sobre humana que preciso carregar. Minha voz não ecoa no mundo branco e continua sendo ouvida com descrença e desesperança no mundo negro. Certos brancos me ouvem com alguma curiosidade, como se estivessem participando de um experimento antropológico exótico. Esperam ansiosos que eu fale de samba, futebol e carnaval, enquanto ensaio Cheik Abra Diop, driblo  com Abdias do Nascimento e faço lindos gols através de Lélia Gonzalez e Patrice Lumumba.

As dimensões permitidas que nos legaram, enquanto seres humanos ávidos e protagonistas por visibilidade, ficaram restritas ao samba e ao futebol, aos tambores e à bola. Somos os espectros civilizatórios de um continente bárbaro, segundo eles. Somos a escumalha que empreteceu a população brasileira para horror dos eugenista tupiniquins. Somos aqueles e aquelas que são confinados nas senzalas contemporâneas que são os quartinhos de empregada, onde purgamos nossa subalternidade entre quatro paredes sufocantes sem janelas.

A branquitude adora quando bradamos que o negro é lindo, que façamos gestos que significam o poder negro. Nos apoiam em todas essas coisas e depois vão ao concerto erudito nos teatros municipais da vida e nos entregam os utensílios necessários para que lavemos suas latrinas imundas.

Obviamente que estamos avançando. Eu mesmo aqui ousando escrever, me desafiando no mundo das letras, pequeno e pobre escritor negro, tentando viver a liberdade que observo nas entrelinhas do papel, pelas tímidas frestas  que impulsionam meus desejos no desafio das páginas em branco. 

Mas quanto mais escrevo mais me desespero. Quanto mais escrevo mais me descubro e redescubro minha localização errante na vida, que grita em meu âmago que devo ser forte, que devo ser livre, pois somente assim poderei ajudar os meus irmãos e irmãs que vivem no mundo da ilusão ou na ilusão do mundo. Esses irmãos e irmãs são as pessoas mais importantes para mim, pois sem eles nas trincheiras ao meu lado, minha luta em prol da liberdade verdadeira não tem o menor sentido.

Os negros escravizados no Brasil eram proibidos de usar sapatos. Podiam até usar roupas vistosas como era comum no caso dos escravos de ganho e nos serviçais da casa grande. Porém sempre descalços, para sentir a aspereza dos caminhos, para viver sabendo ser inferiores, para compreenderem que eram os derrotados da Terra. Viver uma vida inteira descalços era a maior demonstração de humilhação e ausência de liberdade possível. Paulo da Portela em meados do século 20 tornou famosa uma metáfora que dizia que o negro deveria se esmerar ao se vestir e estar sempre 'com o pescoço e os pés ocupados', utilizando sempre que possível gravatas e sapatos. Via nesses acessórios um sinal de emancipação civilizatória no mundo eurocêntrico, de respeitabilidade e liberdade para a população negra.

O espelho hoje apresenta alguns estilhaços virtuosos. A cada dia que passa mais jovens negros adentram ao ensino superior, modelando lentamente uma sociedade do futuro mais heterogênea e democrática. São conquistas que além do valor e do esforço individual do ser negro, requisitaram duríssimas batalhas ao movimento negro em confrontos memoráveis contra o racismo estrutural brasileiro. Nossas conquistam são lentas, pois apesar da urgência de nossas emergências, somos submetidos a um judiciário branco, machista e racista. Nosso judiciário é a tal praia onde os negros nadam...nadam e morrem na praia. O Congresso Nacional possui o mesmo perfil eurocêntrico e excludente do judiciário. O racismo estrutural segue transformando a vida da população negra em um verdadeiro inferno, ao legislar continuamente contra leis já aprovadas,  em súmulas que estabelecem direitos através de algumas poucas ações afirmativas, em decretos que propõem mecanismos de correções de diversas assimetrias raciais históricas.

O resumo da existência negra no Brasil está contido na ausência de liberdade. Na verdade é uma retroexistência lastreada pela xenoafetividade endêmica que remonta aos tempos de cativeiro do período colonial. Nossa imagem no espelho nos pede socorro, pois nossa velocidade de avanço social é menor que o avanço do racismo em recrudescimento. Precisamos pensar ativamente na verdadeira liberdade, na honestidade epistemológica do nosso existir sem as cercas ladeadas da branquitude. Precisamos caminhar na direção do futuro sem temer o pôr de sol esmaecido que o racismo estrutural sempre nos apresentou como um horizonte lindo, fulgurante e libertador.

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