quarta-feira, 29 de maio de 2024
Deu Branco no Samba
A escola de samba e o próprio samba sempre estiveram entre os principais espaços de socialização da comunidade negra no Brasil. Desde o início do século XX que o povo negro se empenha em construir espaços comunitários de socialização. Espaços onde pudesse compartilhar com família e comunidade, atividades sociais de entretenimento e lazer. A oferta da indústria do entretenimento na sociedade brasileira sempre foi voltada para a classe média, onde os negros, com raríssimas exceções, podem frequentar e usufruir de suas mais diversas linguagens culturais.
O apartheid econômico que atingiu o imenso contingente de população negra após o final da escravidão, levou negras e negros a se organizarem em torno dos principais processos culturais onde mantinham algum tipo de domínio e poder, que são o Candomblé e o samba.
A escola de samba é o templo profano do povo negro. Nela as famílias se reúnem e se desenvolvem voltadas para o aprendizado e exercício do comunitarismo, da economia solidária, da gestão e manutenção de suas diversas características artísticas e culturais.
Uma das grandes entregas espirituais do samba, entre as tantas coisas deliciosas que recebemos da vida, é a possibilidade de curtir um bom momento lúdico, cantando e relaxando em uma boa roda de samba, ou então nos ensaios de quadra das escolas de samba, que alegram os finais de semana de grande parte da sociedade em todas as cidades do país. As sensações de compartilhamento e pertencimento só não são maiores que o acolhimento que a comunidade oferece, em sintonia com sua generosa cosmovisão africana.
Nada melhor que após uma semana repleta de atividades laborais extenuantes e problemas comuns do cotidiano, soltar o corpo e se entregar ao deleite do ritmo profano, cantando e alegrando-se em animados arrasta-pés regados a uma boa cachaça de alambique, aquela que “matou o guarda”, acompanhada de uma boa cervejinha gelada ao lado de guloseimas como torresminho, moela, ovo de codorna ou linguiça calabresa enfeitando a mesa essencial.
Quem nunca deu aquela sambadinha gostosa, ao ouvir um samba, malandreado, dolente e gostoso? Bem devagar, devagarinho, como canta o Martinho da Vila. O samba sempre foi a cadência da batida do coração da cultura brasileira. É o principal alimento cultural daquela população vulnerável, esquecida pelo poder público, que sofre as adversidades impostas pelo perverso sistema de acumulação capitalista e pelo racismo estrutural. O samba foi um dos maiores legados que a população negra entregou para nossa sociedade. A força do samba exala os odores perfumados das mais autênticas raízes africanas. Suas origens são ligadas ao sagrado do continente africano, aos tambores, ao Candomblé e aos folguedos da cultura negra com suas cores e amores.
João Gilberto cantava que o samba veio da Bahia e estava correto, pois esse menino dengoso, o samba, veio aconchegado no colo ancestral das Mães de Santo do Recôncavo Baiano, de Santo Amaro da Purificação, de Cachoeira e de Salvador principalmente.
Após o advento da Lei Áurea em 1888, houve um movimento muito importante denominado "Êxodo Baiano", onde parte da população negra livre dos grilhões do cativeiro, deixaram a Bahia para trás e partiram rumo ao Rio de Janeiro, buscando uma nova vida longe dos sofrimentos que haviam experimentado no passado.
O povo que veio para o Rio de Janeiro trouxe na bagagem, além de seus bens pessoais, a riqueza da cultura afrobaiana, uma das mais importantes manifestações culturais que contribuiu para a formação do Brasil republicano. Nessa bagagem também veio o samba, essa joia cultural fantástica que sobreviveu aos horrores da escravidão e às perseguições cometidas pela branquitude, pois trazia alegria e felicidade, e os corpos negros escravizados não podiam exprimir alegria e felicidade, se é que isso fosse possível na situação em que viviam.
Filho dileto do jongo, do samba de roda do Recôncavo Baiano, do culto aos orixás e das tradições culturais e religiosas da África Subsaariana, o samba veio balançando nos vapores marítimos que cruzavam os mares rumo ao Rio de Janeiro.
Nasceu como representante de uma manifestação cultural que servia como momento de lazer e ao mesmo tempo atuava como bálsamo que amenizava o terrível sofrimento pelo qual passava o povo negro escravizado, tanto no eito como na senzala, nos tempos do Brasil Colônia e Brasil Império.
O parto do samba carioca ocorreu com certeza nos terreiros das casas de santo do Candomblé da Pequena África, no Jongo dos morros da Congonha e da Serrinha, em Madureira e como dizem alguns historiadores, também na casas da Umbanda Omolokô. Havia uma grande concentração desses terreiros na região conhecida como Pequena África no Centro da cidade do Rio de Janeiro.
A certidão de nascimento do samba contém algumas lacunas, mas com certeza no formato que conhecemos hoje, surgiu na Pequena África entre o fim do século XIX e o início do século XX. Veio ao mundo abençoado pelos sons dos atabaques e dos tambores tocados com dedicação e amor por ogâs e alabês nos terreiros das religiões de matriz africana.
Nasceu no instante compreendido entre o cansaço e a preguiça. Depois de um trabalho puxado de axé no terreiro, era necessário dar descanso ao corpo, que há pouco estava entregue ao poder espiritual e as dimensões metafísicas do Orum.
A palavra samba pode ser oriunda do dialeto quimbundo, onde o termo “semba”, significa umbigada. É um tipo de umbigada profana e não sagrada como são as umbigadas do Jongo, de acordo com os pesquisadores.
Foram as tias baianas vindas da Bahia que abençoaram o nascimento do samba, forrando seu berço com carinho, respeito e tradição. O samba em seu berço foi ninado com canções do samba de roda, entremeadas com batuques, lundus, polcas, maxixes. Essas tias baianas, além de quituteiras e festeiras, eram em sua grande maioria Ialaorixás renomadas e poderosas, que exerciam grande influência sobre a comunidade negra do Rio de Janeiro.
O início do século XX foi um momento de intensa felicidade para a população negra, que vivia sob os efeitos eufóricos do fim da escravidão. Os negros da época comemoravam e agradeciam à Princesa Isabel pela assinatura da Lei Áurea que lhes libertou definitivamente dos 350 anos do cativeiro do branco opressor. Apesar de tantas agruras, a alegria havia voltado aos corações da população negra tão sofrida e vilipendiada pelo cruel regime de escravidão recém extinto após 350 anos de vilipêndios. Eram livres mas nunca deixaram de ser vigiados pelo sistema de repressão e controlados covardemente pelo sistema jurídico, que sempre promulgou leis em defesa da etnia branca e sistematicamente contra a população negra.
Apesar da vigilância constante da polícia, os negros e negras se reuniam em lugares específicos da comunidade negra para comemorar a liberdade. E como não podia deixar de ser utilizavam o samba de roda, o jongo, o maxixe, a polca e o lundu como fundo musical para suas comemorações.
A certidão de nascimento do samba foi lavrada nos terreiros das tias baianas, com destaque para as tias Ciata, Amélia, Carmem, Bebiana e Perciliana.
Os sambistas consideram Tia Ciata como a grande parteira e mãe amamentadora do samba carioca. Nascida em 1854, em Santo Amaro da Purificação, terra de Caetano Veloso, Assis Valente e Maria Bethânia, chegou ao Rio de Janeiro em 1876 aos 22 anos de idade, onde casou e constituiu família, tendo sido mãe de 14 filhos.
Ciata além de grande doceira e festeira, era uma Mãe de Santo respeitada pelo povo negro da Pequena África no Centro do Rio de Janeiro. Ficou mais famosa ainda após ter curado com suas ervas e unguentos uma ferida renitente na perna do à época presidente do Brasil, Wenceslau Brás. Sua proximidade com o presidente da república garantiu que a polícia não interrompesse e encerrasse sob catatau as festas embaladas pelo samba.
Além da própria riqueza musical reinante, naquela época não havia transportes durante a madrugada. Os frequentadores dos terreiros sagrados aproveitavam que deveriam aguardar o dia amanhecer para retornar aos seus lares e afazeres, promoviam animadas rodas de batuque, já que a designação ‘samba’ ainda não havia sido cunhada. Geralmente o arrasta-pé virava a noite e então a partir de então pode ter surgido o termo “sambar até o sol raiar”.
Pela casa de Tia Ciata passaram grandes nomes da música popular e do samba como Ataulfo Alves, Zé Espinguela, Heitor dos Prazeres, Hilário Jovino, Paulo da Portela, Cartola, Carlos Cachaça, Natal da Portela, Zé com Fome, Silas de Oliveira, Pixinguinha, Donga, Sinhô, Ismael Silva, Bide e Marçal, esses últimos formavam a turma do bairro do Estácio. Essa turma do Estácio foi a que mudou o ritmo do samba para mais cadenciado, como o que se toca até os dias de hoje nas baterias das escolas de samba. Eles também foram os responsáveis em cunharem o nome ‘escola de samba’, pois ensaiavam defronte a uma Escola Normal voltada para a formação de professoras no bairro do Estácio. Como na escola ensinavam as moças a serem professoras, eles defronte ensinavam samba e o resultado todos já conhecem: escola de samba.
Antes o que se dançava era um ritmo amaxixado, como podemos constatar no primeiro samba gravado no Brasil por Donga, o famoso “Pelo Telefone”. Muitos sambistas torcem o nariz para esse samba, dizendo que o fonograma é um maxixe. Outros sambistas alegam que “Pelo Telefone” foi uma composição coletiva com participação de vários frequentadores da casa da Tia Ciata. Um dos maiores defensores dessa tese foi o baiano Hilário Jovino que alegava ser um dos compositores. Hilário Jovino era pai do malandro Saturnino da Praça 11 e primo de Heitor dos Prazeres. Precursor dos ranchos e do carnaval do Rio de Janeiro, Jovino fundou inúmeros ranchos, que seriam os blocos e escolas de samba de hoje. Sendo que um dos mais famosos que fundou foi o Ameno Resedá, que tinha entre seus admiradores mais destacados o escritor Coelho Neto. O Ameno Resedá costuma ser lembrado até hoje pelos compositores nos sambas cantados pelas escolas nos desfiles das escolas de samba.
Os sambistas pioneiros não eram vistos com bons olhos pela sociedade. João da Baiana era filho de Tia Perciliana e sobrinho de Tia Ciata. Negro livre nascido em 1887, beneficiado pela Lei do Ventre Livre. Foi ajudante de ordens do ex presidente Hermes da Fonseca e autor do famoso samba “Batuque na Cozinha”, regravado por Martinho da Vila. João da Baiana era assim chamado pois naquela época havia muitos homens batizados como João e para diferi-lo dos outros, passou a ser chamado de João da Baiana, a baiana no caso era sua mãe Perciliana. Amigo de Pixinguinha e Heitor dos Prazeres, foi quem introduziu o pandeiro no samba. Pandeiro famoso que possuía a assinatura de um influente Senador da república, evitando assim que o instrumento fosse confiscado pela polícia. Os sambistas eram perseguidos e geralmente vinculados pela polícia e pela imprensa conservadora a marginais e malandros. Os capoeiristas formavam outro grupo perseguido da época, para quem inclusive, no havia sido criada um lei no Código Penal de 1890 que punia quem praticava a capoeira, a famigerada ‘Lei da Capoeiragem’, em cujo corpo, no artigo 402 rezava o seguinte: "Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação de capoeiragem: andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir lesão corporal, provocando tumulto ou desordem, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal. Pena: prisão celular por dois a seis meses". Parágrafo Único. É considerada circunstância agravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta. Aos chefes ou cabeças, se imporá a pena em dobro.
Após a Lei Áurea em 1888, o governo brasileiro iniciou um gigantesco processo de embranquecimento de sua população, estimulando a imigração de europeus, primeiramente com alemães e italianos e depois do Japão, quando em 1908 atracou no Porto de Santos o navio Kasato Maru com a primeira leva de 781 imigrantes japoneses que vieram contratados para trabalhar nas fazendas do interior paulista.
Enquanto passava pelo processo de embranquecimento ou eugenia como muitos alegam, estava em curso um intenso processo de gentrificação na capital do Rio de Janeiro.
O Rio de Janeiro era a capital do Brasil no início do século XX, e o país recém saído da escravidão e ainda de vocação senhorial, passa a sofrer mudanças que visavam sua inserção entre as grandes capitais do mundo moderno, reivindicando também sua imberbe vocação urbana e industrial. O Centro do Rio era composto por muitos cortiços, alguns com até 2 mil pessoas como o "Cortiço Cabeça de Porco", daí o nome de "cabeça de porco" para qualquer tipo de ajuntamento de habitações empobrecidas e improvisadas do mesmo formato. As epidemias sanitárias se sucediam e a classe burguesa clamava por uma higienização e modernização do centro da cidade. Para o início da modernização do Centro da cidade do Rio de Janeiro o da época Presidente Rodrigues Alves, investiu de plenos poderes o Prefeito Pereira Passos, que governou a cidade entre 1902 e 1906. Pereira Passos foi inspirado pela bela modernização da cidade de Paris, dando início ao período conhecido como Belle Époque. Iniciou-se então um processo de gentrificação da capital, com foco no centro da cidade, onde cortiços foram derrubados para dar lugar a grandes edifícios, modernas avenidas e parques. Essas intervenções de Pereira Passos foram consideradas autoritárias, quando grande parte da população pobre foi expulsa desses cortiços sem indenização, tendo que se deslocar para as encostas dos morros da cidade, originando um incremento no número das poucas favelas que existiam naquele período.
A modernização transformou a imagem da cidade com a inauguração da moderna e ampla Avenida Central, com suas lojas e cafés de luxo. Passos inaugurou uma impressionante iluminação pública, a reforma do Porto do Rio de Janeiro, o primeiro sistema de saneamento básico eficiente e a vacinação forçada da população sob o comando do sanitarista Oswaldo Cruz, que levou à deflagração da revolta negra denominada “Revolta da Vacina”, em 1904, que deixou um saldo de mais de 945 pessoas presas, 110 pessoas feridas e 30 mortos, segundo o Ministério da Saúde. A partir da “Bélle Epoque” o Rio de Janeiro entrou definitivamente para o clube das grandes e modernas cidades do planeta.
A população negra também sofreu o impacto da gentrificação, primeiro tendo que abandonar o local de moradia contra sua própria vontade e segundo, dentro do contexto cultural, onde as manifestações populares como samba e capoeira foram perseguidas e proibidas, devido ao forte recorte racial de seus praticantes. Havia também o fato do desejo das elites de europeizar o cenário das artes e da cultura na cidade, banindo a crescente cultura negra do cenário da urbano. Para tanto passaram a prender sambistas que portavam instrumentos musicais e verificavam se seus dedos possuíam calos adquiridos com a arte de tocar percussão. Todo esse contexto de gentrificação originou a criação de uma forte burguesia carioca, que repudiava qualquer manifestação de origem africana.
Com o passar dos anos, o samba foi se organizando e cada vez mais, passando a fazer parte da vida cultural da cidade. No início dos anos 1920 o carnaval de rua organizado era alegrado pelos ranchos carnavalescos da burguesia. Os desfiles aconteciam na moderna Avenida Central e eram um feudo exclusivo da elite e da classe média. O primeiro rancho a desfilar foi o “Reis de Ouro” de Hilário Jovino, que criou as figuras do Mestre Sala e Porta Bandeira e também o conceito de enredo, depois absorvidos pelas escolas de samba. Os pobres não podiam desfilar nos ranchos devido ao alto custo dispendido na confecção das fantasias e desfilavam em blocos e cordões compostos por maioria negra de operários e desempregados que viviam na região da Pequena África. Esses blocos mantinham a tradição de usar atabaques e tambores que marcavam o ritmo das batucadas africanas mescladas com elementos do Candomblé. As primeiras licenças para desfiles de blocos emitidas pela polícia datam de 1889 para os seguintes blocos: Grupo Carnavalesco São Cristóvão, Teimosos do Catete, Corações de Ouro e Piratas do Amor, entre outros.
Havia ainda os blocos de sujo, que assim eram denominados porque eram composto por trabalhadores que saíam do trabalho diretamente para o carnaval, sem tomar banho. Esses trabalhadores foliões compravam máscaras de Clóvis e saíam na frente dos cordões, abrindo o desfile dos blocos. Marchavam sempre em grupo à frente dos blocos, com máscaras de velhos, criando então o que talvez tenha sido o embrião das atuais Comissões de Frente das atuais escolas de samba.
Nos anos 1920 a contribuição da turma do Estácio foi fundamental para compreendermos o samba como é tocado hoje. Os sambistas da turma do Estácio eram famosos e também participavam dos saraus da casa da Tia Ciata, com destaque para Ismael Silva, Bide, Marçal e Brancura. Bide foi o criador do surdo de marcação, quando utilizou pela primeira vez uma lata de banha de 20 quilos vazia, colocou papel de saco de cimento molhado amarrou nas extremidades com barbante e arame, aquecendo o instrumento na fogueira. A marcação do surdo criado pela turma do Estácio retirou o ritmo amaxixado do samba e manteve sua característica cadenciada que é utilizada até os dias atuais. Bide também alterou a estrutura do sambas das escolas que eram cantados de maneira improvisada, passando a ser compostos antecipadamente.
Em 1929, Zé Espinguela, o Pai de Santo da Mangueira e o sambista Paulo da Portela realizaram o primeiro encontro de escolas de samba, defronte à casa de Zé Espinguela no bairro do Engenho de Dentro. Juntos definiram critérios como Mestre sala e Porta Bandeira, Samba Enredo, Ala das Baianas em homenagem a Tia Ciata e Bateria, no que seria a gênese do que assistimos hoje nos sambódromos de todo o país.
Nos anos 1930 o desfile das escolas de samba eram desorganizados. Não havia uma metodologia definida e a única obrigação das escolas era passar defronte a casa da Tia Ciata na Praça 11 para reverenciá-la. Não havia um local pré-definido e nem premiação. Nesse período passa a ter início a organização “profissional” das escolas de samba. Alguns sambistas eram muito respeitados pelo mundo do samba e pela sociedade e chegavam a ser tratados como embaixadores do samba, autênticos líderes de ébano, entre os quais se destacava Paulo da Portela.
Através de Paulo da Portela e outros sambistas que se dedicaram na organização das escolas de samba e seu desenvolvimento, o Presidente Getúlio Vargas, empenhado em demonstrar apreço pelo nacionalismo e pela cultura nacional, promoveu finalmente a descriminalização do samba durante o Estado Novo.
A partir desse momento as escolas de samba que eram restritas a bairros distantes e sem grandes projeções, passaram a proliferar com força total, reunindo principalmente nos subúrbios agremiações como o Império Serrano, dissidência do Prazer da Serrinha no Morro do São José Operário em Madureira, Baianinhas de Oswaldo Cruz que depois se tornou Vai Como Pode e finalmente Portela também de Madureira/Oswaldo Cruz, Salgueiro na Tijuca que foi o resultado da fusão de três escolas dos morros da Grande Tijuca, Imperatriz Leopoldinense na Zona da Leopoldina em Ramos, tendo como base o Complexo do Alemão e o bairro de Ramos, Mocidade Independente de Padre Miguel da Zona Oeste, Unidos Vila Isabel do Martinho da Vila, Deixa Falar com sua enorme tradição que depois se tornou Estácio no Centro do Rio de Janeiro, Vizinha Faladeira que reivindica ser a primeira escola de samba e a escola que introduziu o luxo nos desfiles do sambódromo da Marquês de Sapucaí, a Beija Flor de Nilópolis através de seu carnavalesco imortal Joâosinho Trinta, na Baixada Fluminense. A nova geração é composta pela União da Ilha do Governador, Unidos do Viradouro, Porto da Pedra, ambas do lado de lá da Baía de Guanabara, Grande Rio, Unidos da Tijuca, São Clemente, União da Ilha, Caprichosos de Pilares, Acadêmicos de Santa Cruz, Unidos de Lucas, entre muitas outras.
As escolas de samba seguem uma antiga tradição de se organizarem por famílias. Tirando a Mangueira como exemplo, podemos ver o poder da escola distribuído entre as famílias. Entre os principais clãs da negritude daquele território estão as famílias da Dona Neuma/Saturnino/Chininha e Guesinha; Geraldo da Pedra; Zé Criolinho; Zé Ramos; Cartola e Zica; Dória; Tia Fé/Gilda/Roberto Firmino e Guanaira; Nelson Sargento; Tinguinha/Elmo; Carlos Cachaça; Tantinho; Hélio Turco; Alvinho e Padeirinho. Todas famílias importantes na genealogia mangueirense que sempre mantiveram o poder entre si, com um ou outro pequeno hiato.
A Mangueira surgiu da união de diversos blocos e ranchos da comunidade. No morro já existia o rancho da Ialaorixá Tia Fé denominado Pérola do Egito, que junto com outras lideranças religiosas como o Pai de Santo Zé Espinguela, Maria Rainha e Chiquinho Crioulo de Minan faziam celebrações sagradas e organizavam ranchos para as famílias da comunidade se divertir. Os bons sambistas ficavam de fora porque bebiam muito, brigavam e falavam palavrões, por esse motivo eram proibidos de participar dos ranchos e blocos. Por conta disso criaram um bloco liderados por Cartola denominado ‘Arengueiros’, onde os homens se vestiam de mulher e iam para o centro da cidade brigar com os outros blocos. Após muitos anos de surras e prisões os arengueiros decidiram entrar nos eixos e Cartola propôs a fusão de todas as organizações carnavalescas de Mangueira em uma só entidade, a Estação Primeira de Mangueira. Estação Primeira é devido ao fato de a estação de Mangueira ser a primeira estação de trem depois que o trem saía da Central do Brasil e encontrava o samba. As cores verde e rosa foram em homenagem ao rancho de seu pai o ‘Arrepiados das Laranjeiras’, que tinha as cores verde e rosa.
Segundo Carlos Cachaça, testemunha ocular de todos esses eventos, quem levou o samba para Mangueira foi o Mano Elói da Serrinha, de Madureira. Elói Antero Dias, assim como Paulo da Portela, se tornou um personagem de referência no samba carioca. Pai de Santo, sambista e líder do sindicato dos estivadores no cais do porto, Mano Elói assim como Paulo da Portela era simpatizante do Partido Comunista Brasileiro. Carlos Cachaça afirmou que Mano Elói foi quem cantou samba pela primeira vez em Mangueira na casa de Tia Fé.
O PCB sempre encontrou no samba uma estratégia de se comunicar com o operariado, contrariando a afirmação que o samba era motivo de alienação popular. Tanto que em 1946 promoveu um desfile com 22 de escolas de samba no Campo de São Cristóvão em homenagem a Luís Carlos Prestes, líder comunista, Deputado Federal e comandante da famosa coluna que levou o seu nome, a inimaginável Coluna Prestes.
Uma das características que as escolas de samba possuem e que poucas pessoas sabem são as famílias das baterias. As escolas possuem batidas diferentes e essa batidas são de acordo com os orixás de cada escola.
O avanço da profissionalização do samba continuou de maneira irrefreável, depois que o Jornalista Mario Filho, irmão do teatrólogo e Nelson Rodrigues, que criou a campanha para a construção do estádio do Maracanã organizou através de seu jornal Mundo Esportivo o primeiro desfile de escolas de samba no ano de 1932. Evento que passou a ser organizado a partir de então pelo jornal O Globo. No ano de 1935 houve a legalização das escolas de samba pelo Prefeito Pedro Ernesto, oficializando os desfiles que até os anos 50 eram vencidos em revezamento entre Portela e Mangueira. Com a profissionalização os temas passaram a ser controlados e os critérios de julgamentos passaram a ser mais criteriosos. Uma das exigências é que as escolas deveriam apresentar enredos sobre a História do Brasil, quando os sambas de enredo passaram a ser longuíssimos, desprezando qualquer poder de síntese, com enormes trechos desconectados da realidade histórica. Dizem que a expressão “samba do crioulo doido” surgiu dessas imprecisões históricas contidas nos sambas.
Enquanto as escolas de samba se estruturavam a passos largos rumo à profissionalização, os antigos ranchos e blocos de sujo também avançavam na sociedade. Os blocos faziam um desfile à parte para a população e entidades como o Cordão da Bola Preta, Bafo da Onça e o Cacique de Ramos dominavam o cenário dos blocos no carnaval no Rio de Janeiro, com destaque para o Chave de Ouro do Engenho de Dentro que saía somente na Quarta Feira de Cinzas, causando invariavelmente a prisão de seus componentes. Em Recife existem blocos tradicionais de grande expressão como o Galo da Madrugada e em Salvador os Filhos de Gandhi, Olodum e Ilê Aiyê, além da Timbalada. Nos últimos 30 anos centenas de novas agremiações surgiram para animar o carnaval de rua e blocos como o Simpatia é Quase Amor, Suvaco de Cristo, Bloco do Barbas, Spanta Neném, Bloco da Preta, Carmelitas, Bloco da Preta, Bloco da Anita, Fogo e Paixão entre outros. Esses blocos arrastam milhões de foliões pelas ruas do Rio de Janeiro. Um bloco que se tornou de grande tradição foi o Bloco das Piranhas que desfilava nas ruas de Madureira durante o carnaval, onde todos os seus componentes desfilavam vestidos de mulher. Atualmente os blocos de carnaval configuram um novo fenômeno nas grandes capitais brasileiras mas não representados mais pela população negra, pelo contrário, são administrados pelos representantes da classe média da zona sul, que inclusive criaram uma liga para representar seus interesses, a Sebastiana.
O desfile das escolas de samba que antes tinha seu foco no Rio de Janeiro passou a acontecer em diversas unidades da federação. O governador do Rio de Janeiro Leonel Brizola solicitou ao seu fiel escudeiro e Vice-Governador o Antropólogo Darcy Ribeiro que encaminhasse a construção de um espaço fixo para o desfile das escolas de samba. A genialidade de Darcy Ribeiro uniu-se a de Oscar Niemeyer para criarem a Avenida dos Desfiles, depois Passarela de Desfiles e finalmente Passarela Professor Darcy Ribeiro. Mas como o próprio Darcy Ribeiro chamava, ficou popularizado com o nome sambódromo. Hoje existem sambódromos em todo o país que garantem o maior espetáculo da Terra.
Nos tempos atuais as escolas de samba tradicionais se tornaram grandes organizações culturais e econômicas, ode despendem milhões de reais para realizar o desfile no sambódromo com possibilidades de vitória. Seus principais profissionais são contratados a peso de ouro e entre eles podemos citar os carnavalescos, as rainhas de bateria, os diretores de bateria, Mestre-Sala e Porta bandeira, cantores e cantoras. No barracão de alegorias que é uma fábrica que trabalha febrilmente durante o ano inteiro há uma equipe especializada e bem remunerada como os ferreiros que cuidam dos chassis dos carros alegóricos, a equipe da fibra de vidro e resina que molda os personagens, a pintura de arte e os aderecistas. Muitas equipes trabalham fora dos barracões como o pessoal da chapelaria, sapataria e costura, que costumam ser nas própria s comunidades ou em seus arredores. Essas equipes de fora do barracão costuram as fantasias das alas, que geralmente são coordenadas pelas famílias mais importantes da escola.
A era digital propiciou que a s escolas elaborassem seus sites na Internet e se comunicassem com o mundo. As grandes escolas possuem dezenas de Embaixadas e Consulados no Brasil e em todo o planeta, de onde vem componentes para desfilar no carnaval carioca. A Mangueira possui sua filial em Portugal que é verde e rosa e se chama Trepa no Coqueiro, no Japão existe Yokohama Saúde Mangueira em Londres existe há 30 anos a Unidos de Londres.
O que antes, nos anos 40, eram quadras de chão de saibro batido agora são verdadeiros palácios do samba, onde a população negra fica cada vez mais distante devido ao preço elevado dos ingressos e das bebidas e tira-gostos durante os ensaios. O padrão étnico das quadras das grandes escolas mudou radicalmente com a classe em média em peso, ocupando os espaços que antes era dos representantes da comunidade. As fantasias são caríssimas e a única opção para o negro pobre desfilar é conseguir uma fantasia na Ala da Comunidade que é financiada pela escola, ou então na “Ala da Força”, que empurra os carros alegóricos do barracão de alegorias até a avenida dos desfiles, durante os desfiles e retorno ao barracão. Obviamente que a bateria recebe as fantasias, assim como o casal de Mestre sala e Porta Bandeira e as Rainhas de Bateria.
O evento que antes era perseguido e discriminado agora é um espetáculo milionário que movimenta milhões de reais todos os anos em todos os estados da federação. Os negros não estão mais no centro das decisões, com algumas raras exceções. O samba se tornou uma indústria milionária assim como o cinema. E nesses casos os negros ocupam os degraus mais baixos da cadeia produtiva do carnaval.
Deu branco no samba.
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