segunda-feira, 27 de maio de 2024
A Negritude Brasileira
No Brasil ser negro significa ter que dedicar grande parte de sua vida a lutar contra a desigualdade, o preconceito e todas as formas de exclusão que o racismo estrutural impõe sobre negros e negras desse país. Se abaixar a cabeça passa a ser explorado e se torna escravo contemporâneo. Se resolve se organizar e lutar contra o sistema racista é taxado de radical, racista ao contrário, comunista, esquerdista e outras designações afins.
Por isso o negro deve estar a postos cotidianamente, lutando pela democracia, buscando a igualdade, sendo solidário com seus iguais, se aquilombando, se rebelando contra as injustiças, estudando sempre, exigindo ser tratado como um cidadão pleno de seus direitos, enfim, compreendendo que a sociedade eurocêntrica, branca e racista, que erigiu o racismo estrutural, nunca lhe oferecerá nada a não ser humilhação, opressão, exclusão e miséria.
Desde quando o primeiro navio negreiro aportou por aqui com sua "carga" (des) humana, no século XVI que o povo negro sofre nas mãos do branco colonizador e opressor. A população negra, tanto a escrava e mesmo depois de ser tornada livre, nunca recebeu por parte do estado brasileiro qualquer tipo de reparação histórica pelo hediondo crime de lesa-humanidade cometido contra o povo negro que sofreu durante 350 anos os horrores do cativeiro.
A realidade social brasileira sofreu uma grande guinada com a promulgação da famélica Lei Áurea, que decretou tardiamente a extinção da escravidão no Brasil em 1888. Foi um período de grandes sobressaltos, que inaugurou novos experimentos sociais. Período que em tese passou a considerar através de diversos eufemismos a liberdade do povo negro até então submetido ao cativeiro no país. O negro respirava feliz os novíssimos ares de uma liberdade ansiada. Alvíssaras cobriam o país que observava preguiçoso o fim do pesadelo da escravidão. Um país ainda assustado com a nova e inconteste realidade, que a partir de então passaria aprender a viver como uma nação livre da instituição do cativeiro.
Mesmo consolidada pelo marco jurídico, a tão sonhada liberdade passou a ser um “estorvo” para a burguesia branca nacional da época, que nutria verdadeira ojeriza pelos "crioulos da terra" e queria vê-los longe do novo país que surgia com a república.
A partir de então foi cometido o segundo grande crime contra a população afrodescendente, que foi o projeto governamental de embranquecimento da população brasileira.
O projeto foi iniciado através do incentivo à imigração maciça de cidadãos europeus empobrecidos, que receberam do governo brasileiro todas as condições necessárias para refazerem suas vidas, realizarem seus sonhos e prosperarem no novo país “democrático”.
Enquanto os brancos europeus e depois os asiáticos chegavam aqui aos borbotões, recebendo todas as garantias possíveis de promoção e desenvolvimento, a população negra recém-liberta, era jogada na sarjeta, como um entulho étnico inconveniente e desnecessário. Foi um movimento premeditado, criminoso e covarde, pois, de um dia para o outro, centenas de milhares de negros e negras se viram em estado legal de liberdade mas ainda infelizmente cativos, por força da ausência de oportunidades de subsistência.
O enorme contingente de negros e negras em estado de liberdade foi expulso do território rural onde vivia pelos antigos senhores, quando se pôs em marcha pelas estradas do país buscando uma nova vida. Em flagelos saíram sem rumo, sem eira nem beira, largados e entregues aos sortilégios de uma Lei Áurea covarde e geradora de miséria. Lei inconclusa que se absteve das láureas da glória para se ofuscar ao proporcionar um destino cruel para o povo negro, sem oferecer qualquer tipo de promessas de reparações.
A triste odisseia do povo negro em terras brasileiras começou com o primeiro grande crime, que foi o sequestro e a escravização em massa de 5 milhões de negras e negros, trazidos cativos do continente africano. O segundo momento do mesmo crime foi a tenebrosa travessia transatlântica, que ceifou milhões de vidas africanas e alterou inclusive a rota migratória milenar dos tubarões, que passaram a seguir os navios negreiros sabendo que se alimentariam de carne fresca dos corpos que eram atirados ainda vivos dos navios, por motivo de doença, rebelião ou então logo após o falecimento. O terceiro momento foi o estabelecimento do cativeiro no Novo Mundo, onde os escravizados cumpriam o triste destino de trabalhar de maneira forçada, gratuita e extenuante até à morte, sem nunca poderem tocar novamente o Continente Africano de onde vieram acorrentados.
O segundo crime foi o abandono por parte do governo brasileiro de toda a população negra que havia sido escravizada e aguardava ansiosa por reparações no pós abolição. Ao não assumir as responsabilidades pelas reparações pelos crimes de lesa-humanidade cometidos contra o povo negro, o governo brasileiro destruiu todas as possibilidades de ascensão e promoção social desse contingente étnico, caracterizando que não foi um acaso ou uma falha geracional que propiciou a miséria que grassa hoje em dia na população negra, e sim um projeto oficial do estado brasileiro, para eliminar lentamente qualquer tipo de soerguimento do povo negro em terras brasileiras.
O projeto governamental de branqueamento de nossa população foi apresentado inclusive no Congresso Mundial das Raças, realizado na cidade de Londres em 1911. A delegação brasileira chefiada pelo antropólogo racista João Batista Lacerda, do Museu Nacional, previu ao terminar a apresentação do projeto: "Sur les métis au Brésil" (Sobre os mestiços do Brasil) que com o vigoroso processo de miscigenação que estava em curso no país, através da chegada de imigrantes europeus, dentro de um prazo de 100 anos, ou seja, em 2011 o Brasil teria 80% de sua população composta por brancos, 17% de indígenas, 3% de mestiços e 0% de negros. Baseado em seus estudos, Lacerda garantiu que em 2011 nasceria o último negro brasileiro.
Entre a abolição da escravatura e curso do projeto de erradicação do negro brasileiro, houve um abandono proposital da população negra, que foi tornada invisível e deixada de lado pelo estado brasileiro, sem capacitação profissional, analfabeta, subnutrida, sem habitação adequada e não sendo beneficiada por qualquer tipo de política pública de inclusão social e perspectiva cidadã.
Sem saber como fazer, mas ao mesmo tempo na emergência de ter que sobreviver, o povo negro passou a ocupar os territórios mais precarizados e periféricos das cidades. Sem o trabalho no campo que era sua especialidade, agora ocupado por mãos imigrantes, o povo negro migrou para as cidades, em busca de qualquer tipo de trabalho que lhes garantisse a sobrevivência, já que mesmo na condição de humanos livres, tiveram a cidadania negada, além de terem sido submetidos propositalmente à invisibilidade social.
A população negra nunca pode viver em paz nesse país, que sempre foi notadamente racista. O Brasil enquanto projeto de nação tem suas digitais e seu DNA fundamentados no instituto da escravidão. O resultado dos crimes cometidos contra o povo negro geraram profundas feridas sociais que ainda hoje permanecem vivas e abertas, nos assustando com suas hemorragias voluptuosas e incessantes.
Os indicadores sociais da população negra são absurdos e gritantes no que concerne às assimetrias relacionadas ao contingente de população branca do país. Por mais incrível que possa parecer, a generosidade da cosmovisão africana é tão ampla e solidária que consegue internalizar em seus filhos a necessidade da tolerância, do compartilhamento e da convivência pacífica com a mesma etnia que a massacrou durante mais de três séculos
Assim sendo, os brancos vão ao samba para se divertir, ao candomblé para se espiritualizar, às rodas de capoeira para treinar, nas manifestações de Jongo em comunidades periféricas, onde são bem recebidos e de lá saem felizes. Porém na direção contrária não querem dividir com os negros os assentos do Teatro Municipal nos eventos de óperas ou música erudita. Assim a banda vai passando e tocando o mesmo trecho da velha rapsódia, onde os negros permanecem sendo secundarizados por um sistema racista, segregador e excludente. Sistema eficiente que promove para os brancos delícias, benesses e privilégios engendrados pela branquitude e respaldados pelo racismo estrutural.
Negras e negros no Brasil vivem em constante estado de tensão racial provocado pelo poder imanente dos racismos estrutural e institucional, que nos remetem a sucessivas derrocadas psicossomáticas ocasionadas pelo sofrimento emocional. Enveredando por trilhas fanonianas é bastante previsível que enquanto seres humanos sensíveis, negras e negros sofram a pior das dores que é a presunção de serem considerados renegados dentro de seu próprio país, oprimidos inclusive por leis e discriminações advindas do próprio estado brasileiro, que os tornam vítimas sofridas de uma apatridia violentadora cometida no próprio solo em que nasceram.
O Brasil insiste em ser uma nação democrática, mas na verdade vive uma fantasia, uma ilusão constitutiva que violenta sua população negra descaradamente. Impõe aos negros e negras um sistema cruel de desumanidades, que os agride desde a concepção no útero da mãe através da violência obstétrica até ao sepultamento na cova rasa destinada aos miseráveis quando morrem (muitas vezes sepultados como indigentes) no final da vida. Por isso sofrem sucessivos abalos emocionais ocasionados pelas violentas ameaças estruturais, originadas de um sistema amorfo, moldado para segregar e oprimir um contingente étnico considerado inferior, apenas por possuir um percentual maior de melanina em seus corpos.
A branquitude nos ensinou a nos odiarmos, sim odiarmos uns aos outros em nossos cotidianos. Nos convenceram que éramos feios, horrorosos. Nos levaram a acreditar que seríamos mais bonitos se alisássemos nossos cabelos crespos. Nos fizeram sentir que éramos aberrações estéticas, incapazes de nos igualarmos a eles que detinham o modelo de padrão de beleza oriundo do helenismo. Sentíamos inveja dos brancos com suas peles brancas, seus cabelos lisos e loiros, seus olhos verdes e azuis, pois nos ensinaram também que esse era o modelo de beleza universal.
Sempre fomos humilhados e taxados como descendentes de escravos, incapazes e preguiçosos, filhos de trabalhadores braçais e de profissões ligadas à subalternidade. Sonhávamos e invejávamos a branquitude, o modo de viver branco com boas casas e automóveis reluzentes. Nos maldizíamos pelo simples fato em não ser como eles. Para as crianças e para a juventude negra, o belo sempre foi o branco, o líder é o branco e crescemos com essa certeza ao constatarmos que a escola escolhe a rainha da primavera entre as meninas brancas. A branquitude não para de cometer crimes históricos contra a população negra e esse é um dos mais perversos que existe que consiste na pulverização de nossa autoestima por conta da cor de nossa pele, do nosso cabelo, dos nossos traços fenotípicos e de nossa origem ancestral.
A branquitude e o racismo estrutural nos empurraram junto com nossa autoestima para o fundo do abismo da auto rejeição e da não aceitação enquanto pessoa, e por lá nos manteve durante três séculos.
A não aceitação em ser negro faz os negros abastados economicamente, buscar mulheres brancas para casar. São diversos sentimentos embutidos nessa opção que muitos consideram errática e discutível. Pode ser por amor, por atração física ou os dois juntos. Mas também pode ser por auto promoção, para ser reconhecido amado e aceito pelo mundo branco. Falam em atração dos opostos e realmente esta opção existe. Mas não é tão comum uma mulher branca e rica se casar com negro pobre. Obviamente que existem exceções, mas são em gradações tão infinitesimais que são desprezadas pelas pesquisas. Geralmente os casamentos ou uniões inter-raciais acontecem entre negros bem sucedidos economicamente e mulheres brancas pobres (geralmente loiras). A questão colocada é oriunda da interrogação que não pode calar e grita abertamente sobre o porquê de negros que ganham muito dinheiro não fazem a opção pelas mulheres negras? Talvez porque mesmo que saídos do ventre de uma delas, não queira se ver através delas e nem desejam passar a vida ao lado delas, pois na verdade, devido ao seu espírito deformado pela branquitude, se depara com um espelho onde não gosta de se ver. O racismo se entranhou de tal forma em sua personalidade, que ele rejeita sua própria imagem no espelho, indo se olhar em um espelho que reflete um mundo que o despreza, que o vê como inferior, mas mesmo assim ele insiste em sua jornada equivocada, ancorada em vergonhosas clivagens sociais amparadas em frágeis sofismas.
A força da empresa colonial foi pródiga em demonizar as culturas de seus territórios colonizados, caracterizando-as como manifestações barbaras e até demoníacas. As religiões de matriz africana nunca invadiram países ou promoveram morticínios em nome de seus deuses. Esta sempre foi uma prática cometida pelo cristianismo, promovendo matanças e genocídios históricos como as cruzadas em Jerusalém, a Ordem de Cristo com seu projeto de apoio às grandes navegações e colonização nos territórios do Novo Mundo, além da cruel Inquisição da Igreja Católica, que durante a Idade Média executou milhares de inocentes, principalmente judeus e mulheres, sempre em nome de Cristo.
A força e o poder do cristianismo são tão grandes que por mais incrível que possa parecer, o Candomblé e a Umbanda passaram a ser as religiões acusadas de possuírem pacto com o diabo, de serem cultos demoníacos e até sexualizados. A branquitude com seu poder de controle midiático faz a população acreditar nisso através dos meios de comunicação e em seus púlpitos. Então o jovem cuja família professa uma religião de matriz africana é obrigado a esconder sua opção confessional por conta do patrulhamento do cristianismo nas escolas e nos espaços sociais de lazer. Apesar do catolicismo ter sido abolido como religião oficial do Brasil na Constituição de 1891, instituindo o estado laico, ainda podemos ver, mesmo 130 anos depois, a cruz de Cristo pregada nas paredes de tribunais e outras repartições de estado. Nas escolas públicas é comum a celebração do Pai Nosso com os alunos formados antes de se dirigirem para suas salas de aula.
O proselitismo cristão contribuiu de maneira impositiva para a derrocada da autoestima da juventude negra. Ao se professar um credo onde os santos em sua imensa maioria são brancos, onde o Filho de Deus é branco e o próprio Deus é branco, onde reina imponente nos céus cercado por anjos brancos. Fica evidente que a cor negra não está lidada à santidade e sim ao vício e ao pecado.
Os setores mais conservadores do cristianismo alegam que a pele preta é o sinal que Deus colocou em Caim, após ele matar seu irmão Abel, para que com esta marca todos os seus descendentes pudessem ser reconhecidos em qualquer lugar da Terra.
Fica difícil ser verdadeiramente feliz quando se é considerado a parte fracassada da sociedade, que adoecida, opera através da inversão de valores, abandonando a cooperação e visando a competição, onde a supremacia dos brancos sobre a população negra torna a com petição extremamente desigual. O resultado é dor e sofrimento, pois o negro, desde quando acorda até ir se deitar para dormir é um ser em fuga do seu próprio destino, que não lhe oportunizou a felicidade do orgulho dos valores de sua ancestralidade. Por isso vive titubeando em um panorama existencial difuso, criado pelo oportunismo covarde e excludente que é a branquitude, emulada pelo capitalismo concentrador.
No Brasil o desemprego, a sub cidadania, a ausência de educação de qualidade e a oferta de um sistema de saúde precarizado são o carro-chefe da sub cidadania, aliando-se também o meio-ambiente deteriorado, o encarceramento em massa, além da necropolítica e proximidade com a morte, são as sombras que permeiam o horizonte assustador, que invariavelmente paira durante toda uma vida do povo negro. Por mais que a cama seja confortável, não há condições para dormir em paz, pois o chamado ancestral não permite e nos retira do sono para nos lembrar que há uma guerra a lutar. Não seremos um titanic antropológico que insiste em navegar na direção do grande iceberg que é o capitalismo voraz das economias centrais. Capitalismo que se apropriou de nossos corpos e mentes e poderá nos destruir causando nosso naufrágio nos mares traiçoeiros do mundo branco.
Para nós negros poder acordar e viver um novo dia já é uma grande vitória. Nosso sangue escorre impunemente pelas ruas e vielas das periferias das cidades sem alma e sem coração. A visão de corpos negros descompostos, esquartejados, crivado de balas faz parte do cotidiano escabroso da necropolítica que alegra e encanta a burguesia branca. Elite feia, cafona, sem cultura e cruel que nos detesta e nos quer ver bem longe de seus espaços. Para a elite branca brasileira quanto mais negros perderem a vida será melhor, pois assim o estado está reduzindo o percentual de população negra do país.
Bradam em uníssono que bandido bom é bandido morto, mas não refletem sobre o porquê da existência do bandido. Qual o fenômeno social que gera o bandido. Qual o meio ambiente em que o bandido nasceu e foi criado. Quais foram as possibilidades de promoção social e redução de vulnerabilidades que ele recebeu. O que o estado brasileiro ofereceu para aquele ser humano desvalido ser um cidadão produtivo e dotado de todas as prerrogativas e ferramentas sociais e cognitivas que lhe permitisse superar os óbices do impostos pelas regras disformes do mundo branco? Não pensam em solucionar o problema social, quando é muito mais cômodo mandar eliminar e se livrar da matéria enterrando os corpos. Apesar do panorama social trágico gerado pela necropolítica e pelo controle dos corpos oprimidos à exaustão, a burguesia abusando do cinismo social consegue ganhar muito dinheiro com todo esse caos social. Tanto pode ser pela corrupção, como pelo abastecimento enlouquecido dos equipamentos necessários para os aparelhos de repressão de estado.
Então ao negro restou o samba como espaço de socialização. O samba esse grande patrimônio nacional, que gera bilhões de reais para o país nos 365 dias do ano. Uma manifestação cultural que possui uma cadeia produtiva gigantesca que gera muito dinheiro. Costumamos assistir somente a ponta do processo da cadeia produtiva que são os grandes eventos como os desfiles e ensaios das escolas de samba e blocos de rua, que arrastam milhões de foliões pelas ruas e avenidas do país. Por trás dessa culminância há um esforço gigantesco para que tudo aconteça, onde atividades como estúdios de gravação de músicas, fabricação de instrumentos de percussão, chapelarias e fábrica de calçados, produção de adereços e fantasias, construção de carros alegóricos com ferreiros e especialistas em fibra de vidro, resinas, isopor, indústria de efeitos especiais, transportes, hotelaria, milhões de vendedores ambulantes, indústria de bebidas, equipes de rádio e televisão, comentaristas e imprensa especializada, comercialização de direitos musicais e de imagens, contadores e advogados, seguranças, viagens mundo afora, enfim, uma cadeia produtiva monumental que gera trabalho e renda o ano inteiro no Brasil e também no exterior.
Mas quem comanda esse grande império do samba e do carnaval? Os brancos obviamente. Mas como pode ser, se os negros foram os que começaram com toda essa maravilha cultural? Sim, começaram e sofreram todo tipo de perseguição durante décadas. Sofreram na carne e inclusive com prisões e torturas, por insistirem em praticar o samba. Desde a casa da Tia Ciata até o governo Getúlio Vargas os negros passaram por intensos períodos de perseguições quando foram colocados em conflito com a lei somente pelo fato do samba ser uma manifestação da cultura negra e rejeitado pela cultura branca cosmopolita da época.
Quando o samba deixou de ser perseguido, a branquitude finalmente encontrou uma brecha, um grande nicho para fazer fama e fortuna com a exploração da atividade cultural. Hoje podemos assistir os brancos comandando o samba e o carnaval enquanto que os negros se tornaram componentes secundários e até escanteados em alguns casos. Por mais incrível que possa parecer as próprias baterias das escolas de samba que sempre resguardaram a herança atávica e ancestral dos tambores africanos e dos orixás, passaram a ser precedidas por mulheres denominadas rainhas de bateria, louras siliconadas e marombadas, que pagam uma fortuna para ocupar o posto, antes um lugar que historicamente sempre pertenceu às mulheres negras das comunidades periféricas onde as escolas de samba realizavam seus ensaios.
Seguindo em frente na mesma direção podemos ver a perseguição ao funk e ao hip hop, por parte da sociedade branca racista. Essas manifestações culturais são a forma da juventude negra se comunicar musicalmente com a sociedade. É a voz das periferias, das comunidades, de negros e negras que não possuem condições políticas de manifestar seus descontentamentos com o racismo e o abandono por parte do estado. O movimento de apropriação do funk e do hip hop pela branquitude já começou. Em um futuro bem próximo assistiremos o mesmo movimento de apropriação cultural.
A capoeira sofreu o mesmo destino do samba, depois que passou a ser considerada um esporte com inclusão inclusive nos currículos escolares de algumas unidades escolares. Hoje a capoeira está consolidada em todo o planeta com seus mestres loiros de olhos azuis vicejando a arte marcial negra nos principais palcos do mundo. Porém, em um passado não muito distante, entre os anos de 1889 a 1937 o governo manteve na vigência no Código Penal a Lei da Capoeiragem, que previa a prisão dos praticantes da capoeiragem, além do castigo físico de 300 açoites. Nossa história é recheada de protagonismos e usurpações. A branquitude nos observa e fica pensando no melhor momento de se aproveitar do resultado de nossos talentos e ganhar dinheiro com a atividade. É como chupar a cana extraindo a doçura do seu caldo e depois jogar o bagaço fora, no caso o bagaço somos nós.
A história das grandes cidades demonstra que há uma guerra civil em curso, que ceifa em torno de 60 mil vidas pretas todos os anos, terminando com os sonhos de uma juventude que em sua curta existência só conheceu a indiferença, a violência e o desamor em uma vida corrompida e miserável.
A corrupção estatal depende e se sustenta através dessa guerra para fazer girar a roda da fortuna. O negro famélico que segura o fuzil na comunidade é um pobre fantoche de um enorme teatro de horrores. Ele é a base da pirâmide do mundo do crime, sendo considerado um joguete, uma peça do estoque étnico descartável que é a juventude negra. Os donos da dinheirama gerada pelo narcotráfico vivem de maneira nababesca em confortáveis mansões, cercados de luxos e advogados, contando o dinheiro que chega aos borbotões em suas mãos, ocupam postos parlamentares no Poder Legislativo e muitos até chegam ao Poder Executivo eleitos prefeitos e governadores. O pretinho do fuzil na comunidade não pode estudar, pois a ditadura cruel do seu cotidiano lhe diz que precisa aprender somente a linguagem da violência que é sua companheira inseparável. Foi educado e sabe que para sobreviver precisa fazer dinheiro para o seu “patrão”. Por isso as penitenciárias estão repletas de negros e negras, o sistema mantém o projeto de precarização étnica e lucra bastante com isso. Para a elite é o jogo do ganha/ganha, enquanto que para o povo negro só tem a opção do perde/perde.
Estamos na luta contra todo esse horror institucional e não sairemos das trincheiras, não arredaremos pé, nelas não se dorme e o combustível que nos mantém alerta e combativos é o cheiro do suor de irmãs e irmãos que lutam ombreados e aquecidos com a chama da liberdade. É uma guerra longa, oriunda dos tempos imemoriais, de onde viemos vencendo batalha por batalha, conquistando e fincando a bandeira da justiça em territórios antes interditados aos negros e negras. Assim foi com as cotas nas universidades, nos espaços privilegiados de governo, nos parlamentos e na sociedade de uma maneira geral.
Somos filhos da grande África, o berço da humanidade e da civilização, onde a caminhada humana sobre o planeta Terra teve início. Infelizmente só podemos contar com nós mesmos, pois não há atualmente qualquer tipo de devir civilizatório onde o povo negro possa estar incluído ou quiçá considerado protagonista, que não tenha sido eurocentrismo nos tirou tudo isso com o colonialismo e a escravidão, mas estamos lutando para recuperar nossa história, nossa cosmovisão e nossa espiritualidade. Estamos erguendo cada vez mais nossos monumentos, tijolo por tijolo, felizes e esperançosos com o lindo amanhecer que nos aguarda logo ali adiante em um belo alvorecer da história, conquistado com muita luta. Não somos vistos como referência histórica afirmativa enquanto construtores de um projeto de futuro de nação. O
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