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Eu Negro

quarta-feira, 29 de maio de 2024

A Beleza Verdadeira

"O primeiro gole do copo das Ciências Naturais o transformará em um ateu. Mas no fundo do copo Deus estará lhe esperando". (Werner Helsenberg, pai da Física Quântica) 

O capitalismo e sua filha dileta a branquitude, criaram para o povo negro uma proposta de cosmovisão similar como a que foi apresentada no livro 07 da República de Platão, denominado “Alegoria da Caverna”. Através de uma grande trapaça intelectual, os mentores da branquitude arquitetaram uma grande armadilha para o povo negro. Elaboraram a construção de um mundo falso, imaginário, onde seres humanos despidos de seus direitos e com suas humanidades retiradas, passassem a coexistir pacificamente, sem o instituto da rebelião, em um ambiente perverso, segregador, excludente e violento. Um ambiente onde martírios, sofrimentos, exploração, dominação e a exploração de seres humanos servissem como pano de fundo para enriquecimento e poder de uma Europa racista, ambiciosa e colonialista. Uma Europa fundamentada na razão míope e dependente da exploração colonialista. Esta mesma razão, baseada em retóricas sofistas como as de Górgias de Leontini e Tísias de Siracusa, erigiu os pilares sustentadores das pseudo ciências como a teoria da Frenologia desenvolvida por Franz Joseph Gall (1758–1828) em 1800 e estendida para a teoria forense como a Antropologia Criminal, criada pelo italiano Cesare Lombroso (1835-1909) que teceu a teoria do “reo nato”, baseado na crença que características físicas eram responsáveis pela opção ao crime por parte de certos grupos humanos. Obviamente que essas pseudo ciências serviram como suporte para a caracterização do negro como uma pessoa propensa à criminalidade e ao estado de barbárie. Essas teorias consolidaram o processo de invasão e conquista de novos territórios que seguiam seu curso desde o século XV. Construíram a falsa ideia do fardo que o povo branco europeu deveria carregar ao levar civilização aos povos negros, asiáticos e ameríndios, para eles povos bárbaros e carentes de evangelização e civilização. A cosmovisão criada para substituir a dos próprios negros, a fantástica cosmovisão africana, passou a projetar imagens de um mundo falso, onde propalaram que a verdade está nas trevas do cativeiro e não na luz da liberdade. Os poderosos donos do capital e gestores da economia global, querem que aceitemos a subalternidade dentro de um cenário de hierarquização racial e a compreensão da naturalização da miséria como um “ethos constitutivo da alma negra”. Destacando que a população negra deve viver de maneira pacífica e ordeira, mesmo que em completo abandono por parte do estado, sofrendo em comunidades ambientalmente degradadas, dominadas pelo terror do narcotráfico e eivadas por todas as formas de violências e arbitrariedades. A xenoafetividade interracial cultuada pela branquitude, propõe a aceitação da dialética da emancipação através da alienação (Ferreira 2021) como proposta de uma visão afro-futurística enviesada, onde em ciclotimia paira o paradigma freiriano e diversionista do deleite entre senzala e casa-grande. Infelizmente nossos destinos ainda permanecem nas mãos das elites herdeiras dos mesmos brancos poderosos das capitanias hereditáriaOpções s brasileiras que fizeram fortuna através da escravização e do tráfico negreiro dos tempos coloniais. Apesar da contemporaneidade, eles ainda nos iludem com uma matrix anódina, distópica e geradora de óbices antropológicos que nos mantêm atados aos horrores do passado, mesmo estando atentos e vivos no presente. Impuseram-no antolhos como fizeram com os habitantes da caverna de Platão, que nos foram colocados no passado, quando desde então e desse modo, ficamos impedidos enquanto grupo étnico descartado socialmente, de ver e atingir a luz da verdade e do conhecimento, que impera fora do ambiente bruxuleante da caverna e do qual estamos desesperadamente precisados. O desafio que nos instiga é a possibilidade de alcançar a verdadeira utopia libertadora, que se pode antever no materialismo histórico de Marx, centrado na dialética que coloca o ser humano como seu próprio protagonista, produzindo ciência, construindo pensamentos e visões de mundo, flertando entre o xamanismo de Krenac (1953), o existencialismo cristão de Soren Kierkegaard (1813–1855) o ateísmo humanista de Ludwig Feuerbach (1804–1872) e o niilismo de Nietzsche (1844–1900), levando Deus às catacumbas, ao decretar a morte do divino gerado pelos humanos, pelos cristãos em suas tocas falibilidades, que através da metafísica impõe culpa e pecado, determinando céu e inferno como uma grande ameaça para o pobre e sofrido espírito humano. Uma construção engendrada pelos próprios humanos, tentando explicar uma transcendência inexplicável. Assim colocaram a humanidade no carrossel epistemológico de um carcomido e velho proselitismo religioso. O estado de contrição advindo desta elaboração infundada retira o ser humano do lugar de concretude e materialidade desejado, do qual é sempre é afastado, para que possa cumprir seu triste fado de ser cativo de uma imanência transcendente que lhe foi imposta como padrão existencial natural que deve ser representado na sociedade. Lugar triste em demasia que nos retira da verdade, do que é palpável, do que estamos deveras precisados. Chega em boa hora e em alvíssaras o tempo que nos clama a deixarmos a caverna, onde a branquitude eurocêntrica nos colocou. Chegou o tempo de emprenhar um “ser negro” novo, com novas hermenêuticas, sem as amarras traiçoeiras do racismo estrutural e da retro negritude. Chegou o tempo de refletirmos sobre as rotineiras narrativas trombeteantes que afirmam que ‘negro é lindo’, ‘tudo negro é lindo’. Trilhas estranhas que talvez possam ser a metavisão da cosmovisão, que pode se tornar uma representação insidiosa de uma antro polissemia, componente de um estranho mosaico interiorizado e entranhado de um contexto étnico branco e burlesco, que propõe situar o negro em uma dimensão existencial de clivagem epicurista. Abraçar a proposta que é apresentada, significa a mesma coisa que mergulhar em um mar sombrio e difuso, repleto de tubarões brancos, vorazes e famintos. Esse “lindo” tão propalado sempre foi uma construção eurocêntrica, com ênfase na matriz hedonista de dimensão helenística, construtora da beleza artificial do corpo branco, no qual não devemos nos inspirar e pela qual, pelos mais subjetivos motivos, não devemos nos interessar por ela. A representação real do lindo construído pela branquitude se espraia de maneira hegemônica nos espaços midiáticos e nos espaços de poder, onde nós os negros não encontramos representação. A realidade apresenta um cenário farsesco sobre o lindo, onde de alguma maneira estamos inseridos, de onde precisamos sair e cerrar esta porta definitivamente. A tentativa de apagamento da excitante cosmovisão africana e de sua formidável teogonia com suas culturas exuberantes, foi junto com a escravidão, um dos maiores crimes de lesa-humanidade cometidos pelos colonizadores em África. O universo em seu grandioso poder e magnificência, não distingue as pessoas pela pigmentação da pele e tampouco se importa com elas. Para a criação universal todos os seres humanos são o que devem ser, fazendo parte da infinita teia energética universal, ambiente onde os seres humanos e seu planeta Terra, são proporcionalmente em relação ao tamanho do universo observável, menores que um simples grão de areia. Baseado em uma perspectiva lógica e compreendendo até um viés metafísico, todos os seres humanos são lindos, não por comparações ou diferenciações fenotípicas, mas sobre o que Baruch Spinoza (1632 – 1677) quis dizer acerca da possibilidade panteística da imanência de um poder divino, e não por uma antropomorfização de Deus, que condena a divindade a passar todo o seu tempo cuidando dos problemas comezinhos das pessoas comuns em dias comuns. Todos os seres humanos são lindos porque a vida é linda em todas as suas configurações quânticas e relativísticas. Sua indescritível beleza posta-se imperiosamente acima de todos nós, estando absoluta e indisponível ao limitado e minúsculo conhecimento humano. A vida bariônica como a nossa, como a dos seres humanos de agora no planeta Terra, surge como um evento raríssimo no universo, onde ainda não encontramos nada semelhante entre tantos milhares de mundos, silenciosos, gélidos e mortos. Precisamos refletir e quem sabe até abandonar essas construções burguesas de “Pequeno Príncipe Negro”, “Cinderela Negra” e coisas semelhantes do afrolúdico. Tudo faz parte de uma construção da alma branca, para as mentes brancas e para um mundo branco, provavelmente sem contornos raciais eugenistas na concepção. Os autores dessas fábulas e contos infantis não pensaram nem cogitaram encantar crianças negras quando criaram esses personagens do imaginário infantil. Pensaram em seus mundos caucasianos, em suas fábulas e suas origens atávicas. Ao tentarmos demonstrar alguma alteridade comparativa da realeza negra com a realeza branca, talvez estejamos correndo o risco de utilizar os mesmos mecanismos excludentes do eurocentrismo, convertidos pela e para a pele negra, para a negritude. Os sistemas imperiais e aristocráticos são originalmente excludentes e despóticos em suas essências. Ambiência onde seres humanos normais se dizem ungidos por divindades e baseados em suposições metafísicas, desenham um modelo de exploração do povo visando manter uma casta de mandriões inúteis e preguiçosos, refestelados no poder às custas do sofrimento das populações pobres e vulneráveis. Ao exaltarmos os reinos africanos da antiguidade e até da modernidade, como estética comparativa, estamos, como nos alerta a transvaloração de Nietzsche, referendando um sistema social de rapina, que avilta a soberania popular como sempre faz os sistemas capitalistas da branquitude. Fazemos então, senão reproduzir as antigas sombras platônicas, projetadas pelas chamas bruxuleantes nas paredes da caverna de nossas existências negras, colonizadas pelo proselitismo do cristianismo e outras vertentes espirituais. A verdadeira beleza de cada ser humano está dentro dele próprio, não podendo ser vista a olho nu. Um fantástico interior onde em entropia endógena milhões de universos interagem em gozo e fúria, simultaneamente, fazendo a vida acontecer de maneira espantosa e indescritível. Apesar da dialética travada entre biogênese e abiogênese, a vida explode em seu esplendor primordial onde o amálgama de átomos, elétrons, prótons, nêutrons, pósitrons, quarks, leptons, bósons, férmions, neutrinos e mésons interagem com proteínas, mitocôndrias, lipídios, sais, fósforo, nitrogênio, hidrogênio, enxofre, glicídios, células, impulsos elétricos, fibras musculares e DNA mitocondrial entre tantas outras milhares de interações que extasiam a sinfonia quântica, através da contradança da criação, do existir. Ah! Quanta glória! receber o sopro divino em um universo que nos faz viver gigantes e ao mesmo tempo partículas, nos apresentando o idílico milagre do desabrochar da vida. Jung (1875–1961) disse que nossa psiquê é estruturada de acordo com a estrutura universal e o que ocorre no microcosmo também acontece nos infinitesimais e mais subjetivos alcances da mesma psiquê. Carregamos inúmeros universos quânticos e relativísticos, todos imensamente vazios e ao mesmo tempo repletos e intensos em força e poder. São sistemas potentados, carregados pelas energias primordiais que vieram da fusão nuclear no interior das estrelas desnudas, que se atiraram despojadas universo afora, em uma marcha inexorável que nunca terá fim. Isso sim é lindo demais. Todos nós somos lindos demais, filhos e filhas dessa grande criação misteriosa forjada nas fornalhas das grandes estrelas que explodiram em tempos imemoriais. A casca de carbono que nos reveste, nosso corpo, um dia terá seu fim. Mas a energia que reside em nós, em sua fantástica configuração de interações caóticas e ao mesmo tempo harmoniosas, permanecerá viva pelo sempre do universo. Esta sim é a verdadeira beleza. Somos filhas e filhos imortais das grandes estrelas e por assim sermos devemos esplandir e iluminar o mundo com o brilho que herdamos do universo.

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