São abordagens instigantes que desafiam nossas reflexões de acordo com Epicuro, o "Filosofo do Jardim", que afirmava a necessidade da compreensão da Filosofia para curar o ser humano das dores da alma, assim como a Medicina traz a cura para quase todos os males do corpo físico. Epicuro também aborda em sua extensa obra a dialética entre desejos e sofrimentos, criando uma espécie de doutrina que foi citada inclusive por Karl Marx como forma de edificação humana.
Na entrada do Oráculo de Delfos, localizado na Grécia Antiga, prontifica uma citação conhecida que diz: “Conhece-te ti mesmo”. A expressão lastreou o pensamento socrático na estruturação e consolidação da filosofia ocidental, seguida por Platão e depois principalmente por Aristóteles.
Conhecer a si mesmo é um desafio instigante que está contido em nossa personalidade, onde o eixo axial está profundamente ligado aos nossos desejos e sofrimentos.
O ser humano negro contém em seu ethos constitutivo um mosaico extremo e radicalizado de desejos e sofrimentos. Seus desejos são justos, como justos são todos os desejos contidos no espectro de regulações das internalidades humanas. Porém, seus sofrimentos são terríveis e produzem sussurros assustadores em sua existência. A obra de Franz Fanon, psiquiatra martiniano e líder da luta anti colonial africana, apresenta um panorama perturbador acerca dos recônditos do âmago da alma negra. O povo negro foi vítima inconteste de incontáveis perversidades e abusos mentais cometidas pelo colonizador branco europeu durante séculos, que geraram seres oprimidos e esvaziados de suas personas.
O desejo do negro é diferente do desejo do branco. O desejo do negro é um sonho, uma quimera, enquanto que os desejos dos brancos são metas factíveis, que podem ser alcançadas se houver um planejamento de vida eficiente dentro da lógica estrutural do capitalismo.
Para o negro sonhar e desejar, significa acalentar uma panaceia, ou seja, viver tentando alcançar uma possibilidade muito distante de sua realidade devido ao seu componente étnico. O mais cruel é que além de ser impossível para a grande maioria negra, ela geralmente não sabe que é impossível, pois foi convencida do contrário e de maneira bastante eficiente pelas trucagens da branquitude racista e preconceituosa.
O racismo estrutural age com o negro da mesma maneira que um gato faz ao brincar com um camundongo pego de surpresa em suas incursões furtivas nas noites cotidianas de uma casa qualquer. O bichano encurrala e prende o rato, joga-o de um lado para o outro, prendendo e soltando, em um jogo sádico e cruel. Sua inteligência felina age criando a falsa imagem de possibilidade de liberdade para o roedor. Ledo engano, na verdade está divertindo-se curiosamente, testando suas habilidades atávicas, jogando com o camudongo ao seu bel prazer, quando então enfastia-se do jogo e tira a vida do já desinteressante ratinho, com requintes de crueldade.
O ser negro vive e morre preso a desejos que infelizmente lhes causarão dores e sofrimentos por toda a sua existência. São desejos comuns do campo material do mundo branco como frequentar bons restaurantes, adquirir um imóvel confortável, possuir um bom carro, sair de férias com a família, conhecer outros países, amar e ser amado sem o interdito da cor, ver os filhos estudarem em boas escolas, ter boas roupas e um saldo confortável na conta bancária, enfim, desejos praticamente impossíveis de serem realizados pelo interdito da origem, que ao não serem realizados geram dores e sofrimentos.
O capitalismo e sua estrutura econômica eurocêntrica, baseada no consumo excessivo e na sede de acumulação e apropriação, leva os seres humanos a se desesperarem de forma incontrolável, estimulando a população no desejo de aquisição de ícones pessoais que representam prestígio e poder na pirâmides sociais das sociedades capitalistas. O negro nunca foi considerado agente protagônico e tampouco partícipe desse processo evolutivo econômico. Sempre foi visto como um penduricalho social indesejável, uma aberração antropológica incapaz de construir modelos de desenvolvimentos produtivos de amplo espectro.
Ao ser alijado do sistema produtivo enquanto agente intelectual não-emulador, foi relegado à condição de mero trabalhador braçal escravizado, para então ter o desejo de sonhar apenas com a sua liberdade. Seu único desejo passou a ser a conquista da liberdade onde não pensava em família, filhos, educação e futuro, só desejava a liberdade. O sonho de liberdade, passou a ser seu horizonte de vida, horizonte para o qual quanto mais caminhava em sua direção, mas esse horizonte se afastava, causando desespero e ódio aos que lhe impuseram essa condição indigna. Muito pouco para um branco mas era tudo para um negro sequestrado em seu país e escravizado em outro continente, respirar os ares da liberdade.
O destino reservou ao povo africano a má sorte do contato com o branco europeu. Desde o fatídico encontro, passaram a viver desgraçadamente em um vale de lágrimas, onde o simples fato de estar vivo era para o negro um sinal de bem aventurança. O negro era profunda interrogação de como ser feliz, existindo em uma dimensão tão reduzida e míope de desejos.
Imerso no caldeirão efervescente do colonialismo, passou então a ricochetear entre as nobres verdades do budismo, a cosmovisão africana, as construções da Frenologia e o materialismo histórico de Karl Marx. A reflexão dessa existência torna-se difusa quando analisamos comparativamente o estreito escopo de desejos de um ser humano negro escravizado, com uma pessoa branca e a formidável amplitude do cardápio de desejos postos à sua disposição. Em tese o negro deveria ser mais feliz, pois não era cativo de tantos desejos, mas pelo contrário, mesmo despido de quase todos os desejos que uma pessoa branca possa possuir, tornava-se triste e sem esperanças por dias melhores. Seus sofrimentos eram gigantescos, mesmo tendo somente um desejo primordial que era sua liberdade.
Durante 350 anos negras e negros foram escravizados no Brasil. Foram desumanizados, aviltados, violentados de todas as maneiras possíveis. Eram apátridas considerados sem alma em seu próprio país. Eram vistos como seres pestilentos, como espectros ambulantes que não podiam usar sapatos para que sua inferioridade fosse demonstrada. Viveram suas vidas sendo tratados como animais e às vezes recebiam tratamento inferior ao que os animais recebiam.
Qual é a filosofia? Qual é a Psicanálise? Será que existe Freud e Lacan para negros e negras? Quais as bases e fundamentações teóricas que embasaram esses doutrinadores eurocêntricos? As dores do cativeiro eterno cabem na teoria psicanalítica branca? E os desejos de quem não tem direito a ter direitos? Os sofrimentos de que não possui horizontes serão compreensíveis?
São dois mundos que vivem e compreendem duas realidades diferentes. O suave mundo branco se sobrepondo ao aspérrimo mundo negro. Sorrisos brancos doces pontificando felicidades enquanto cruzam com olhares negros opacos e amargos, que durante toda uma vida nunca foram bafejados pelo sopro da ambrosia.
O povo negro segue sua caminhada em seu triste fado de ter que lutar contra a ignorância dos sistemas excludentes e preconceituosos gerados pela alma branca. Enquanto os desejos e sofrimentos dos negros estiverem conectados às matrizes psicanalíticas e às construções sociais eurocêntricas, os negros estarão entregues à propria sorte como sempre estiveram. A alma branca não consgue sentir as dores da alma negra pois nunca esteve e nunca estará neste lugar difuso e solitário, desesperador e conturbado que é o espírito humano do negro de ancestralidade escravizada.
Os negros não têm outra alternativa a não ser seguir em frente na estrada da vida que está repleta de placas de sinalização proibindo todos os seus movimentos e opções. A estrada foi planejada para o povo branco, que nela desfila feliz com seus carrões espirituais, enquanto a massa negra segue também por ela, sofrendo a dureza da travessia, relegada ao acostamento com suas toscas bicicletas existenciais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário