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Eu Negro

quarta-feira, 7 de junho de 2023

A Bolha Luminosa das Crianças Negras

Toda criança negra, como a maioria das crianças, recebe o novelo mágico da vida e passa a tecê-lo amorosamente, transformando seus fios luminosos em brilhantes e esperançosas teias existenciais. Essas crianças não sabem que por um motivo qualquer vieram habitar um mundo perverso e segregador. Não conseguem vê-lo, pois estão envolvidas em seus devaneios fantásticos, tecendo de maneira lúdica e inocente a maravilhosa teia da vida.
Esses fios luminosos são lindos entrelaçamentos espirituais e quânticos, frutos de suas inocências e do ambiente de uma bolha superprotetora criada por suas famílias.
Na medida em que crescem, essas crianças negras vão deixando aos poucos a bolha luminosa que vai perdendo sua luminosidade. Perdem-na lentamente, como o escorrer do tempo na ampulheta, lento, contínuo, inexorável e infinito. A luminosidade da criança negra é como um graal que lhe é transmitido através da herança ancestral. São culturas e modos de vida poderosos que possuem cosmovisão própria e bastante particular. O correto é que deveriam estar sendo envolvidas por esta cosmovisão dentro da bolha luminosa, mas não é o que acontece.
A bolha luminosa flutua em um tecido que funciona como um grande atrator, onde toda sua energia é sugada inexoravelmente, quando nem a luz que a compõe consegue escapar da singularidade.
Ao perder sua luz para o grande atrator, a bolha causa um profundo pesar naquelas crianças negras, que sem a luminosidade ancestral, são impedidas de verem a si próprias, como são seus ancestrais e suas culturas. Todo esse cenário é envolvido por esse mundo difuso e assustador que o grande atrator proporciona.
O mundo que a criança negra consegue ver à sua volta é lastreado pelos dogmas etnocêntricos do eurocentrismo, que impregna e confunde sua cosmovisão, fazendo com que seu universo de desejos e representações lúdicas fique restrito ao imanente mosaico da branquitude.
Enquanto se desenvolvem em seus habituais cotidianos, vai ocorrendo um adensamento do imaginário albínico que compõe o ambiente cognitivo dessas crianças. O mundo de fantasia que vivenciam, passa a ser permeado por referenciais positivados pelo processo da branquitude como anjos brancos, Deus branco, santos brancos, príncipes e princesas nórdicas, reis rainhas eurocêntricos, heróis e heroínas despigmentados, afetos, bondades, ética, compromisso com a verdade e cidadania legitimada, tudo referenciado pela matriz anglo-ibérica.
As crianças negras são introduzidas lentamente no espaço externo periférico da bolha já então não-luminosa e começam a perceber que o mundo não é tão irradiante quanto lhes fizeram parecer. Através de um processo planejado e cruel a sociedade etnocêntrica entranha-se no espírito da criança negra, sussurrando em seus ouvidos que o quanto é lindo é ser branco, lindo é o branco. Os comerciais de TV, os filmes e outras representações e manifestações culturais sempre produzem a catarse anímica do prazer referenciada no caucasianismo. Não existe caixa-branca e sim caixa-preta, a ovelha desgarrada é a ovelha negra, passado triste é passado negro e assim como outras referências deletérias em relação ao grupo étnico ao qual a criança negra faz parte.
Mais que ser submetida aos processos das propostas de branqueamento da pele, pintar e alisar os cabelos, utilizar roupas e acessórios diferentes dos de sua cultura, repudiar e amaldiçoar as práticas e manifestações religiosas, a sofisticação da impregnação do eurocentrismo vai até ao “ser mais profundo” das crianças, ao âmago dessas crianças, retirando-lhes a ancestralidade, a cosmovisão africana, seus referenciais pluriétnicos e multiculturais e sua essência unbuntu.
Ao abandonar o devir unbuntu e o conjunto de valores ancestrais que as orientariam na afrodiáspora, a criança ou jovem negro, segrega ao limbo valores culturais e existenciais africanos como a força comunitária e a vocação coletiva. Deixam de lado o poder e a necessidade do solidarismo ancestral em prol da competição, trocam o espírito da compaixão pelo desejo de vingança, abandonam o fortalecimento do grupo pela solidão egoísta da individualidade, abandonam a chama primordial do “todos serem um” enquanto que ser um significa ser todos, a chama visceral unbubtu onde finalmente trocam o “nosso” pelo “meu” e o “conseguimos juntos” pelo “venci sozinho”, que é o supra sumo do poder capitalista, a política do eu sozinho. Ao propor esta política o capitalismo repete o velho axioma de dividir para controlar, para governar.
Submetidas a esses bombardeios albinos diários, as crianças negras em suas fragilidades cotidianas passam a sentir desamor por si próprias. São tomadas por sentimentos de inferioridade e de negação das belezas de seus estereótipo físicos e de suas interjeições naturais. O sistema é perverso e além de deter o poder da comunicação na sociedade, diz como deve ser o modelo comportamental da juventude através dos meios de comunicação de massa como novelas, minisséries e programas de variedades. Utiliza também os canais de Internet para espelhar o modo de vida pelo qual os jovens devem orientar seus comportamentos. Esses referenciais estarão sempre focados no eurocentrismo e na branquitude, pois fazem parte do conjunto estratégico de dominação do capitalismo. Assim, sem ter referenciais que os posicionem na sociedade em que estão inseridos, as crianças e a juventude negra se tornam ectoplasmas geracionais, onde estão onde não deveriam estar pois são o que não deveriam ser.
O processo de parir esse novo “cidadão cordial” pode ser descrito como a retirada silenciosa da alma, do espírito livre, da iluminação do protagonismo. Um processo que descaracteriza crianças e jovens negros de suas cosmovisões, de suas culturas e de suas ancestralidades. Portanto, podemos considerar que a estratégia de transformar desde sempre gerações de negras e negros genuínos em “falsos meios brancos”, deve ser considerado como um crime de lesa humanidade. Crime sim porque corta violentamente o cordão umbilical epistemológico, que fazia a ligação irrigada com seus mundos, seu atavismo e seu antepassados.
Ao engendrar o frívolo processo de “falso reposicionamento étnico”, com a aquiescência ingênua de grande parte da juventude negra, a branquitude fortalece o pacto capitalista de dominação e opressão, que orienta as relações sociais e econômicas do nefasto poder político, regente das relações sociais e econômicas do país desde o período colonial. O intento nada mais é que a preservação do sistema escravista imperial que mantém acesa a chama da égide do antigo mercantilismo, aperfeiçoado pela sofisticação do capitalismo contemporâneo. Há muito afastados da bolha luminosa perdida resta à juventude negra tentar encontrar sua ressignificação no mundo branco que a envolve, que dela desconfia e que sempre terá um dedo em riste lhe apontando e acusando de alguma conduta inoportuna ou irregular. Impondo-lhe margens e balizas do mundo branco, normas da branquitude, leis feitas para segregar e atitudes de acordo com os modos opressores do sistema capitalista eurocêntrico.
Resta aos jovens negros a saberia de seus gritos. Nas têmporas grisalhas correm os rios de sabedoria onde devem navegar. O conhecimento acumulado na adversidade e na compreensão de viver em um mundo hostil geraram sabedoria e filosofia cotidiana de como sobreviver compartilhando o planeta com seres tão destrutivos. A mensagem será sempre a cultura da paz. O racismo e o preconceito são retrovalores de povos sem cultura, sem espiritualidade e sem amor. A solução para nossa juventude negra é se empoderar no amor, na força da cultura, na ciência da afrodiáspora, no pensamento decolonial africano, em todas as formas de resistência da não-violência.
No Brasil morre um jovem negro a cada 23 minutos. São mortes violentas que não deveriam acontecer. Estamos perdendo milhões de cientistas, pesquisadores, atletas, filósofos para a violência do cotidiano. Essa violência é gerada pelo capitalismo, que estimula cada vez mais a competição, que pretende lucrar cada vez mais com menos investimentos, que coloca máquinas no lugar do ser humano como opção laborativa.
A luta contra o racismo está diretamente ligada à luta contra o capitalismo. Os dois sistemas são siameses e um irriga o outro de maneira contínua. O racismo necessita do poder financeiro do capitalismo para construir o arcabouço jurídico que mantenha a população negra acuada e sem acesso ao poder enquanto que o capitalismo necessita do racismo estrutural para garantir a estrutura do sistema e o fluxo financeira que alimenta seus lucros 1ue irrigam a capilarização institucional que garante sua própria sobrevivência.
As bolhas luminosas continuam nascendo, brilhando, iluminando e fenecendo cotidianamente. Nossas crianças negras continuam sofrendo ao sair das bolhas luminosas e mais ainda, com a decepção do apagamento de suas luzes. As luzes são a igualdade, a felicidade comum, os espaços de todos e a pontificação da democracia na diversidade.
Para que nossas crianças e jovens possam crescer de maneira saudável e consigam ousar existir sem as armaduras internas que das quais são dotadas ao abandonar de vez o refugo de suas bolhas antes luminosas, será necessário um investimento incansável na transmissão do letramento racial, na decolonialidade, na ancestralidade, na cultura e filosofia umbuntu e por fim na desconstrução de uma África deletéria que nos é internalizada que gera baixa auto-estima e a remoção dos óbices que promovem a fuga de referenciais atávicos.
O primeiro grande passo foi dado há 20 anos atrás com a promulgação da Lei 10.639/03 que determina o ensino da história do continente africano, da cultura afro-brasileira e dos grandes vultos negros de nossa história. Porém não é suficiente, apesar de ser importante. Há que se fazer um vigoroso investimento na formação de docentes no que tange ao cumprimento do marco jurídico da Lei 10.639/03 para além de sua aplicação pura e simples. Caminhado par e passo com a capacitação de docentes, urge o fortalecimento dos Núcleos de Estudos Afro-brasileira e Indígenas – NEABI, no ámboro dos estabelecimentos de ensino.
Outro ponto de inflexão no pensamento da metodologia de educação racializada no ambiente escolar é construir o debate sobre a produção do livro didático no país, que ocorre através do programa governamenral denominado Programa Nacional do Livro e Material Didático, que anualmente distribui 170 milhões de livros didáticos para cerca de 50 milhões de alunos de todas as escolas públicas do país.
A produção dos materiais e livros didáticos que servem de suporte aos alunos das escolas brasileiras foi entregue pelo Ministério da Educação a um conjunto de editoras privadas que são responsáveis pela contratação dos autores e da produção de todo o material. Para que a transmissão do conhecimento requerido pela Lei 10 639/03 possa ser efetivamente assegurado, seria necessário uma ampla consulta nacional nas redes da educação básica do país. Talvez a partir de então as bolhas luminosas possam voltar a iluminar a consciência de nossas crianças negras, nossos jovens negros, que merecem respeito a ter uma educação digna e verdadeira da qual possam se orgulhar.

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