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quarta-feira, 28 de junho de 2023

Ideologia e Negritude na Luta Antirracista

O livro “ Ideologia e Negritude na Luta Antirracista” apresenta como pano de fundo dois aspectos fundamentais e necessários para construir a luta antirracista no país.  Discorrendo com propriedade sobre a caminhada histórica do povo negro desde a chegada do primeiro navio negreiro no século XVI até os dias atuais, o livro apresenta  a necessidade de não dissociarmos a luta  antirracista da luta anticapitalista, até mesmo pela mera impossibilidade real de fazê-lo.

A história humana é pródiga em nos mostrar que através do mercantilismo, e depois com a expansão  capitalista pelas grandes navegações, foi gestado um processo avassalador de conquistas de novos territórios, que  consolidou o estabelecimento de poderosos projetos coloniais nas novas paragens encontradas.

A chegada em territórios antes desconhecidos como os do Novo Mundo, da Ásia e do Continente Africano, provocou um grande impulso nas redes de comercialização europeias, que ansiavam por commodities  como açúcar, café, madeiras, minerais, pedras preciosas e todo o tipo de especiarias, que abasteciam as manufaturas e entrepostos comerciais do velho continente.

A expansão do sistema mercantilista gerou uma economia pujante, que transformou os principais países da Europa em grandes potências internacionais.

 O período de grande enriquecimento europeu impôs um fardo muito pesado em seus territórios coloniais, causando a deterioração e até extinção  do modo de vida de inúmeras sociedades milenares, como as de vários países africanos e de populações autóctones nas Américas e Caribe principalmente.

A invasão e colonização do Continente Americano e Caribe pelos europeus, ocasionou um dos maiores genocídios de populações originárias da história da humanidade.

Para que pudessem obter sucesso comercial e financeiro em seus empreendimentos coloniais, as nações européias utilizaram  o instituto da escravização de seres humanos, inaugurando o pérfido recurso do tráfico transatlântico de africanos escravizados para o Novo Mundo.

Estima-se que entre os séculos XVI e XIX, foram trazidos entre 12 e 20 milhões de africanos escravizados  para o Novo Mundo. Foram levados principalmente para as Américas, com ênfase para o Brasil, Estados Unidos, colônias da América Espanhola  e Caribe. Desses milhões de africanos escravizados, estima-se que entre 1 e 2 milhões perderam a vida durante a travessia transatlântica, quando tiveram as águas escuras e gélidas do Oceano Atlântico como última morada.

Durante mais de 300 anos, países como Brasil, Portugal, Espanha e Estados Unidos, retiraram do Continente Africano como escravos, os melhores corpos e mentes, causando um enorme déficit de população economicamente ativa e apta intelectualmente para a manutenção das instituições, das cosmovisões e das estruturas sociais das nações africanas impactadas pelo colonialismo escravista.

 Outro golpe profundo que esgarçou ainda mais o combalido tecido social africano, foi a partilha surreal do continente pelas potências europeias durante a Conferência de Berlim. A divisão de um continente composto por dezenas de nações independentes e milenares, realizada de maneira abusiva e aleatória, desrespeitou princípios básicos como  fronteiras, identidades, religiões, e lideranças locais, ampliando e acirrando ainda mais o fosso político que existia entre diversos povos africanos.

A falta de capacidade de compreender a fantástica metafísica do sagrado africano e a intrínseca cosmovisão de um mundo diferenciado, multicultural e pluriétnico, levou os europeus submetidos ao monocórdio plúmbeo da Inquisição, exortar o povo africano à penitência e à culpa por viver a constante alegria da convivência íntima com o politeísmo e uma liberdade existencial imanente e de certa maneira lúdica em seu paganismo.

Enquanto isso nas colônias americanas e caribenhas do além mar, a empresa colonial europeia atuava ativamente na utilização de mão de obra escravizada na tarefas de produção de commodities voltada para suprir o ávido e carente mercado consumidor europeu.

O período colonial, tanto em África como nas Américas e Caribe, imprimiu marcas centenárias que nunca foram sanadas e que persistem em existir no cotidiano da sociedade atual.

As rebeliões quilombolas e urbanas, o processo abolicionista e as pressões da Inglaterra para o fim da escravidão, tornaram o processo emancipatório irreversível, ressaltando que o Brasil foi o último país das Américas e Caribe a por fim em seu processo escravista.

Após a abolição da escravidão, o Brasil empreendeu um projeto governamental de embranquecimento de sua população. O processo foi impulsionado através do incentivo à imigração de europeus, que receberam do governo brasileiro um conjunto de subsídios como cessão de terras agricultáveis, sementes, fertilizantes, máquinas, equipamentos e empréstimos subsidiados pelo Banco do Brasil e outras entidades estatais de fomento.

A prova mais evidente que confirma a intenção do Brasil de promover o apagamento do povo negro de sua história foi o envio de dois representantes ao Congresso Universal das Raças realizado em Londres no mês de julho de 1911, onde o médico brasileiro João Batista de Lacerda que compunha a delegação, previu que após três gerações, ou seja, dentro de um período de 100 anos, não nasceriam mais pessoas negras no Brasil. Lacerda enfatizou que devido ao intenso processo de mestiçagem e a predominância da etnia de origem europeia, teria fim o nascimento de negros no Brasil. Esse foi o projeto de embranquecimento de nossa população que foi levado a termo pelo governo, que avaliava o ano de 2011 como o marco temporal para o nascimento do último negro brasileiro.

O fato inconteste da participação brasileira e a posição eugenista dos nossos representantes nesse congresso, mostra que a população negra nunca foi amada no Brasil. Na verdade os negros e negras sempre foram utilizados como objetos, como seres inferiores e sem alma, recebendo tratamento inferior ao dispendido aos animais. Nunca nos amaram e nunca nos desejaram enquanto seres humanos. Desde o século XVI quando nossos ancestrais chegaram aqui acorrentados, só conhecemos a exploração, a violência física, as sevícias, o ódio e a indiferença governamental.

Deveriam ter tido um mínimo de decência após a decretação do fim da escravidão e ao menos minorar o sofrimento que causaram ao povo negro durante mais de três séculos.

Comprovando o asco que nutriam à população negra do país que lhes enriqueceu, a elite branca virou as costas para o contingente negro depauperado e investiu na imigração de europeus brancos com todas as benesses possíveis. Enquanto isso, ao mesmo tempo, o povo negro que estava aqui trabalhando escravizado há 350 anos, foi relegado à miséria absoluta, sem políticas públicas de inclusão como geração de trabalho e renda, ensino profissionalizante, programas habitacionais e garantia de direitos básicos fundamentais.

Por conta do abandono estatal, a população negra recém liberta se viu relegada ao abandono, ficando sem qualquer tipo de apoio e vivendo por sua própria conta, sem futuro, sem trabalho, sem cidadania e sem esperanças.

À população negra brasileira foi concedido o sabor amargo da vida precária, vivendo descartada nas distantes periferias e favelas das cidades. O trabalho urbano era estranho à maioria de negros e negras oriundos das lidas rurais de onde vieram em busca de solução para a própria sobrevivência.

Restou então ao povo negro a submissão e resignação à segunda escravidão, travestida de serviços domésticos, embutida no subemprego dos estabelecimentos comerciais e industriais ou então descartado no fatídico e crônico desemprego na jovem e imberbe república.

O fim da escravidão não interrompeu o ciclo da luta racial no país. Enquanto que antes a luta era quase que exclusivamente por liberdade, com o advento da Lei Áurea o movimento passou a adquirir novas configurações e contornos, quando então a população negra passa a reivindicar por direitos como integração social e econômica, melhores condições de trabalho, liberdade religiosa e cultural e igualdade na diversidade.

Por mais que tenha havido um avanço significativo na integração da população negra na sociedade brasileira, o país continua sendo um dominado pelo mito da democracia racial enquanto é governado pelo racismo estrutural, que privilegia a etnia branca no que concerne a estabilidade financeira, protagonismo social e poder político. Por mais incrível que possa parecer, o projeto colonial português ainda está vigente em nosso país, apesar da república e mesmo com a contemporaneidade com seus avanços científicos e sociais.

Em pleno século XXI, negros e negras continuam relegados aos territórios precarizados das cidades. Persistem sendo oprimidos nas periferias e favelas por grupos paramilitares, pelo narcotráfico e através dos aparelhos de repressão de Estado. O povo negro representa a grande maioria da população carcerária do país que é a terceira maior do mundo, ficando atrás apenas dos EUA e China. A juventude negra é submetida a um verdadeiro genocídio, onde a cada absurdos 23 minutos morre um jovem negro no país vítima da violência.

No mercado de trabalho negros e negras ocupam a base da pirâmide laboral brasileira, sendo que as mulheres negras recebem 1/3 do salário que recebem os homens brancos para exercerem a mesma atividade. As universidades públicas continuam sendo um grande feudo da elite brasileira e reproduzem diuturnamente o ensino colonial, conservador e não inclusivo nos cursos de Medicina, Direito e Engenharia, por exemplo.

Fica evidente que apesar dos avanços reconhecidos pela comunidade negra, o Brasil segue a doutrina neoliberal que orienta a gestão política e social dos países capitalistas do hemisfério norte. O povo negro historicamente sempre foi a principal vítima dos crimes humanitários cometidos pelo sistema capitalista, desde o século XVI até os dias atuais.

A cumplicidade entre a Igreja Católica e os impérios Português e Espanhol, gerou uma bula papal denominada “Dum diversas”, emitida pelo Papa Nicolau V, que autorizava a escravização dos povos africanos. A justificativa para o cometimento do crime de lesa humanidade que é a escravidão, foi devido a imputação ao negro a dolorosa condição de ser despossuído  de alma, de ser um objeto falante.

As famílias que controlam a economia capitalista brasileira são em sua grande maioria as mesmas que estão aqui desde as capitanias hereditárias. Essas famílias foram beneficiadas e enriqueceram através da escravidão e do tráfico negreiro, sendo que hoje controlam as terras do país, as indústrias, os bancos, as corporaçoes de mídia, os parlamentos, o Judiciário e outras instituições de Estado, inclusive o Alto Comando das Forças Armadas.

Ao povo negro foi destinado o carimbo da cidadania de terceira classe, vivendo em habitações precárias, espremido no transporte público, recebendo remunerações indignas e insuficientes, sendo oprimido pela polícia, discriminado pela branquitude e atirado constantemente ao degredo do desemprego e da invisibilidade.

Todo esse panorama deletério sempre foi e continua sendo ocasionado pelo projeto neoliberal oriundo das economias centrais do mundo capitalista. Portanto, fazer a luta antirracista desacoplada da luta anticapitalista, sem compreender  a luta de classes e a dialética marxista pode ser um trabalho de Sísifo na organização social e mobilização da luta racial.

É imperioso internalizar que o racismo é uma das inúmeras metástases de um tumor maligno denominado capitalismo. Este tumor continua espalhando suas extensões na sociedade em diferentes formas como o patriarcado, o machismo, a homofobia, o capacitismo, a gordofobia e tantos outros malefícios sociais que atentam contra a cidadania e contra os direitos humanos.

Para o povo negro torna-se paradoxal lutar contra o racismo sem lutar contra o capitalismo e seus mecanismo de opressão.

O livro “Ideologia e Negritude na Luta Antirracista”, mostra a necessidade da simbiose política entre ideologia e negritude como componente essencial na construção da luta antirracista em nosso país erigido sob a égide do racismo estrutural e institucional. A publicação traz inúmeras inquietações e desafios, enquanto se propõe ao conjunto da militância antirracista como um subsídio adicional e reflexivo, para que possamos construir através do entrelaçamento diaspórico um Brasil verdadeiramente diverso, igualitário e sem racismo, para as gerações atuais e para negras e negros do porvir.

 

 

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