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Eu Negro

quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Uma Rapsódia Africana

Sou um ser negro formado por imensos vazios de ancestralidade. Senão tantos vazios mas repletos de hiatos de atavismos. Minha sombra é um ectoplasma que se esquiva do real, na medida em que os sóis do meu universo não iluminam meus recantos, por estarem onde não deveriam estar.
Ser um homem negro é fingir não ver o abismo quando se vive dentro dele rodeado por todos os seres horrendos que o habitam. Sou um triste hiato africano consumido pela cruel diáspora global. Sou aquele que caminha pelos desvios que me são permitidos caminhar.
Posso mas não posso amar livremente. Sou um homem negro cujos passos são vigiados pelos olhos da branquitude, da sociedade perversa que somente permite amores ocasionais, interditos em gotas que usurfruo sofregamente em meu etéreo graal de esperanças.
Onde estará minha ancestralidade? Decerto nunca conhecerei as músicas e as danças da aldeia dos meus ancestrais, a comida, as estórias de assombrações; os cantos de glória e vitória dos meus antepassados, sou um pária atávico, um viajante sem-passado, a escravidão o tirou de mim.
Sou um homem negro em uma diáspora global hostil que não me ama e nunca me amará, pois represento na civilização parte do estoque étnico descartável, da sub-civilização contemporânea, da qual sou um mero personagem secundário e nunca  protagonista principal.
Existo em um labirinto antropológico onde a razão me faz evitar o minotauro eurocêntrico. Um labirinto de onde nunca sairei e que não se importa nem um pouco se sou feliz ou não em meu triste fado de não encontrar uma saída.
Sou um buraco negro existencial que consome todas as aflições do mundo em meu horizonte de eventos. Até a tênue luz da lua que teima em surgir nas noites estreladas é consumida pela voracidade da minha gravidade avassaladora.
Cruzo a vida como um velho veleiro navega em um mar de sargaços, lentamente, displicentemente, bamboleando na gávea, ansiando encontrar terra firme, um mundo livre diferente do mundo alvoroçado dos brancos. Sem a escravização do dinheiro, onde os lamentos de almas negras não sejam apenas meros sussurros desagradáveis, monótonos e dispensáveis.
Há um céu que me foi negado pela própria cristandade desde sempre. Não há céu para um negro pois o reino dos céus do cristianismo é branco. Me mostraram um Deus criador branco de barbas brancas, Seu filho que morreu para me salvar é louro de olhos azuis mesmo tendo nascido no Oriente Médio. Os anjos são brancos em um céu absolutamente branco. Para mim sobrou o mundo negro, a noite mais escura, o mal, a escuridão, a insídia e o purgatório na melhor das opções.
Nasci puro, com um sol radiante em minha alma, que aos poucos foi sendo esmaecido, apagado e trocado por um mundo plúmbeo, triste e sem luz, onde caíram mortas as estrelas vivas da minha felicidade.
Existo em uma diáspora africana que me permite não sonhar e me obriga a ser feliz para que possa ser visto como um ser humano servil, cordato e civilizado.
Mas não posso me prender nas lamúrias da egotrip. Tampouco me integrar ao motocontínuo da morte, caminhando em círculos afroferomõnicos, como as formigas, para enfim perder a vida pela exaustão. Talvez seja isso que o sistema quer que eu faça. Que fique girando em torno das questões cotidianas que o racismo estrutural nos apresenta e deixe de me organizar para lutar contra as estruturas de poder historicamente controladas pela branquitude. São sistemas que nós negros precisamos compreender cono a elaboração e execução do orçamento público, o controle dos aparelhos de repressão, o sistema educacional público, o funcionamento do parlamento nas três esferas de poder, a organização do Judiciário e o complexo arcabouço que rege o funcionamento dos partidos políticos. Enfim, são estruturas que permanecem imponentes enquanto nós giramos de forma messiãnica à sua volta, como os muçulmanos fazem na pedra negra de Meca. Os brancos nos permitem tudo, menos que ocupemos seus lugares privilegiados. O poder nunca é dado, tem que ser tomado. A via eleitoral se tornou uma quimera para os negros. Todo o ordenamento jurídico nacional é dirigido para privilegiar a branquitude. Continuamos a catar os miúdos dos porcos, os restolhos antropofágicos que nos são atirados  para fazermos nossa feijoada existencial. Continua tudo como sempre foi e como sempre foi resta-nos a rebelião e a revolução. 
A rebelião que grita em meu peito, me queima e me consome ao não sentir em meus irmãos e irmãs a chama lendária do espírito de Palmares.
Assim caminho na vida, solitário em meus anseios, sozinho em meus sonhos, tentando alcançar um horizonte reluzente que se afasta cada vez mais, quanto mais vou de encontro a ele.
Sou um homem negro que ouve os sons de uma rapsódia africana, extraída de uma sinfonia histórica imemorial, cujos acordes foram forjados pelos lamentos e pela tragédia colonial que os brancos nos impuseram
Passo pela vida catando os cacos de sonhos que encontro pelo caminho: uma companheira amiga, um lugar de paz, filhos felizes e um futuro que não seja marcado a ferro e fogo, calcinado pelo desterro, tatuado pelas marcas da opressão da branquitude na pele.
Não nasci negro, nasci com a pele preta, sem saber quem eu era realmente . Tornei-me refém de uma afrotautologia que me atirava inerte contra os paredões do destino, totalmente cego, sem saber por onde estava indo.
Enfim meus companheiros e companheiras de luta me resgataram de um mundo sem luz e retiraram a venda que cobria meus olhos. Venda que me impedia de enxergar e lutar contra as injustiças, o racismo e o preconceito.
Sem a cegueira antropológica que me impediu de enxergar a realidade gritante do racismo estrutural, pude enfim me erguer, virar as costas para a "síndrome do impostor" e me tornar um homem negro verdadeiro, livre das amarras do eurocentrismo e munido do escudo e da lanca para enfrentar o dragão do capitalismo.
Foram tantas lutas e refregas que jamais esquecerei do calor dos combates, do cheiro de suor dos companheiros e companheiras nas mais diversas trincheiras espalhadas mundo afora. Essas bravas pessoas negras me fizeram negro, pacientemente me tornaram negro, negro de verdade, alma de Zumbi, forjado no inconformismo, Xangô da rebelião, Ogum na revolução.
Muitos se foram e nós também iremos um dia. Assim como os heróis de Palmares, da centenária Tróia Negra também se foram. São Abdias, Lélias, Beatrizes, Mahins, Felipas, Benguelas, Marielles, Malês, Carolinas, Firminas, Antonietas, Dandaras, Aqualtunes, Solanos, Limas Barretos, Acotirenes,  Gangas Zumbas, João Cândido, Dragão do Mar, Manoel Congo e tantos personagens que lutaram incansavelmente pela liberdade, pela igualdade. Mas outros virão e orgulhosamente lhes passaremos os estandartes e as bandeiras de luta. São os negros mais importantes para nós, tanto quanto os que partiram são os que estão chegando, os negros do devir, afroguerreiros de um futuro que não tardará a acontecer. Corpos negros, esbeltos, fortes, sorrisos francos, com seus cabelos lindos, corpos cheios de energia, cantando canções de glória. Sim, são esses que continuarão a reverberar nossos gritos de liberdade com igualdade que nunca poderão ser silenciados.

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