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Eu Negro

quarta-feira, 29 de maio de 2024

A Beleza Verdadeira

"O primeiro gole do copo das Ciências Naturais o transformará em um ateu. Mas no fundo do copo Deus estará lhe esperando". (Werner Helsenberg, pai da Física Quântica) 

O capitalismo e sua filha dileta a branquitude, criaram para o povo negro uma proposta de cosmovisão similar como a que foi apresentada no livro 07 da República de Platão, denominado “Alegoria da Caverna”. Através de uma grande trapaça intelectual, os mentores da branquitude arquitetaram uma grande armadilha para o povo negro. Elaboraram a construção de um mundo falso, imaginário, onde seres humanos despidos de seus direitos e com suas humanidades retiradas, passassem a coexistir pacificamente, sem o instituto da rebelião, em um ambiente perverso, segregador, excludente e violento. Um ambiente onde martírios, sofrimentos, exploração, dominação e a exploração de seres humanos servissem como pano de fundo para enriquecimento e poder de uma Europa racista, ambiciosa e colonialista. Uma Europa fundamentada na razão míope e dependente da exploração colonialista. Esta mesma razão, baseada em retóricas sofistas como as de Górgias de Leontini e Tísias de Siracusa, erigiu os pilares sustentadores das pseudo ciências como a teoria da Frenologia desenvolvida por Franz Joseph Gall (1758–1828) em 1800 e estendida para a teoria forense como a Antropologia Criminal, criada pelo italiano Cesare Lombroso (1835-1909) que teceu a teoria do “reo nato”, baseado na crença que características físicas eram responsáveis pela opção ao crime por parte de certos grupos humanos. Obviamente que essas pseudo ciências serviram como suporte para a caracterização do negro como uma pessoa propensa à criminalidade e ao estado de barbárie. Essas teorias consolidaram o processo de invasão e conquista de novos territórios que seguiam seu curso desde o século XV. Construíram a falsa ideia do fardo que o povo branco europeu deveria carregar ao levar civilização aos povos negros, asiáticos e ameríndios, para eles povos bárbaros e carentes de evangelização e civilização. A cosmovisão criada para substituir a dos próprios negros, a fantástica cosmovisão africana, passou a projetar imagens de um mundo falso, onde propalaram que a verdade está nas trevas do cativeiro e não na luz da liberdade. Os poderosos donos do capital e gestores da economia global, querem que aceitemos a subalternidade dentro de um cenário de hierarquização racial e a compreensão da naturalização da miséria como um “ethos constitutivo da alma negra”. Destacando que a população negra deve viver de maneira pacífica e ordeira, mesmo que em completo abandono por parte do estado, sofrendo em comunidades ambientalmente degradadas, dominadas pelo terror do narcotráfico e eivadas por todas as formas de violências e arbitrariedades. A xenoafetividade interracial cultuada pela branquitude, propõe a aceitação da dialética da emancipação através da alienação (Ferreira 2021) como proposta de uma visão afro-futurística enviesada, onde em ciclotimia paira o paradigma freiriano e diversionista do deleite entre senzala e casa-grande. Infelizmente nossos destinos ainda permanecem nas mãos das elites herdeiras dos mesmos brancos poderosos das capitanias hereditáriaOpções s brasileiras que fizeram fortuna através da escravização e do tráfico negreiro dos tempos coloniais. Apesar da contemporaneidade, eles ainda nos iludem com uma matrix anódina, distópica e geradora de óbices antropológicos que nos mantêm atados aos horrores do passado, mesmo estando atentos e vivos no presente. Impuseram-no antolhos como fizeram com os habitantes da caverna de Platão, que nos foram colocados no passado, quando desde então e desse modo, ficamos impedidos enquanto grupo étnico descartado socialmente, de ver e atingir a luz da verdade e do conhecimento, que impera fora do ambiente bruxuleante da caverna e do qual estamos desesperadamente precisados. O desafio que nos instiga é a possibilidade de alcançar a verdadeira utopia libertadora, que se pode antever no materialismo histórico de Marx, centrado na dialética que coloca o ser humano como seu próprio protagonista, produzindo ciência, construindo pensamentos e visões de mundo, flertando entre o xamanismo de Krenac (1953), o existencialismo cristão de Soren Kierkegaard (1813–1855) o ateísmo humanista de Ludwig Feuerbach (1804–1872) e o niilismo de Nietzsche (1844–1900), levando Deus às catacumbas, ao decretar a morte do divino gerado pelos humanos, pelos cristãos em suas tocas falibilidades, que através da metafísica impõe culpa e pecado, determinando céu e inferno como uma grande ameaça para o pobre e sofrido espírito humano. Uma construção engendrada pelos próprios humanos, tentando explicar uma transcendência inexplicável. Assim colocaram a humanidade no carrossel epistemológico de um carcomido e velho proselitismo religioso. O estado de contrição advindo desta elaboração infundada retira o ser humano do lugar de concretude e materialidade desejado, do qual é sempre é afastado, para que possa cumprir seu triste fado de ser cativo de uma imanência transcendente que lhe foi imposta como padrão existencial natural que deve ser representado na sociedade. Lugar triste em demasia que nos retira da verdade, do que é palpável, do que estamos deveras precisados. Chega em boa hora e em alvíssaras o tempo que nos clama a deixarmos a caverna, onde a branquitude eurocêntrica nos colocou. Chegou o tempo de emprenhar um “ser negro” novo, com novas hermenêuticas, sem as amarras traiçoeiras do racismo estrutural e da retro negritude. Chegou o tempo de refletirmos sobre as rotineiras narrativas trombeteantes que afirmam que ‘negro é lindo’, ‘tudo negro é lindo’. Trilhas estranhas que talvez possam ser a metavisão da cosmovisão, que pode se tornar uma representação insidiosa de uma antro polissemia, componente de um estranho mosaico interiorizado e entranhado de um contexto étnico branco e burlesco, que propõe situar o negro em uma dimensão existencial de clivagem epicurista. Abraçar a proposta que é apresentada, significa a mesma coisa que mergulhar em um mar sombrio e difuso, repleto de tubarões brancos, vorazes e famintos. Esse “lindo” tão propalado sempre foi uma construção eurocêntrica, com ênfase na matriz hedonista de dimensão helenística, construtora da beleza artificial do corpo branco, no qual não devemos nos inspirar e pela qual, pelos mais subjetivos motivos, não devemos nos interessar por ela. A representação real do lindo construído pela branquitude se espraia de maneira hegemônica nos espaços midiáticos e nos espaços de poder, onde nós os negros não encontramos representação. A realidade apresenta um cenário farsesco sobre o lindo, onde de alguma maneira estamos inseridos, de onde precisamos sair e cerrar esta porta definitivamente. A tentativa de apagamento da excitante cosmovisão africana e de sua formidável teogonia com suas culturas exuberantes, foi junto com a escravidão, um dos maiores crimes de lesa-humanidade cometidos pelos colonizadores em África. O universo em seu grandioso poder e magnificência, não distingue as pessoas pela pigmentação da pele e tampouco se importa com elas. Para a criação universal todos os seres humanos são o que devem ser, fazendo parte da infinita teia energética universal, ambiente onde os seres humanos e seu planeta Terra, são proporcionalmente em relação ao tamanho do universo observável, menores que um simples grão de areia. Baseado em uma perspectiva lógica e compreendendo até um viés metafísico, todos os seres humanos são lindos, não por comparações ou diferenciações fenotípicas, mas sobre o que Baruch Spinoza (1632 – 1677) quis dizer acerca da possibilidade panteística da imanência de um poder divino, e não por uma antropomorfização de Deus, que condena a divindade a passar todo o seu tempo cuidando dos problemas comezinhos das pessoas comuns em dias comuns. Todos os seres humanos são lindos porque a vida é linda em todas as suas configurações quânticas e relativísticas. Sua indescritível beleza posta-se imperiosamente acima de todos nós, estando absoluta e indisponível ao limitado e minúsculo conhecimento humano. A vida bariônica como a nossa, como a dos seres humanos de agora no planeta Terra, surge como um evento raríssimo no universo, onde ainda não encontramos nada semelhante entre tantos milhares de mundos, silenciosos, gélidos e mortos. Precisamos refletir e quem sabe até abandonar essas construções burguesas de “Pequeno Príncipe Negro”, “Cinderela Negra” e coisas semelhantes do afrolúdico. Tudo faz parte de uma construção da alma branca, para as mentes brancas e para um mundo branco, provavelmente sem contornos raciais eugenistas na concepção. Os autores dessas fábulas e contos infantis não pensaram nem cogitaram encantar crianças negras quando criaram esses personagens do imaginário infantil. Pensaram em seus mundos caucasianos, em suas fábulas e suas origens atávicas. Ao tentarmos demonstrar alguma alteridade comparativa da realeza negra com a realeza branca, talvez estejamos correndo o risco de utilizar os mesmos mecanismos excludentes do eurocentrismo, convertidos pela e para a pele negra, para a negritude. Os sistemas imperiais e aristocráticos são originalmente excludentes e despóticos em suas essências. Ambiência onde seres humanos normais se dizem ungidos por divindades e baseados em suposições metafísicas, desenham um modelo de exploração do povo visando manter uma casta de mandriões inúteis e preguiçosos, refestelados no poder às custas do sofrimento das populações pobres e vulneráveis. Ao exaltarmos os reinos africanos da antiguidade e até da modernidade, como estética comparativa, estamos, como nos alerta a transvaloração de Nietzsche, referendando um sistema social de rapina, que avilta a soberania popular como sempre faz os sistemas capitalistas da branquitude. Fazemos então, senão reproduzir as antigas sombras platônicas, projetadas pelas chamas bruxuleantes nas paredes da caverna de nossas existências negras, colonizadas pelo proselitismo do cristianismo e outras vertentes espirituais. A verdadeira beleza de cada ser humano está dentro dele próprio, não podendo ser vista a olho nu. Um fantástico interior onde em entropia endógena milhões de universos interagem em gozo e fúria, simultaneamente, fazendo a vida acontecer de maneira espantosa e indescritível. Apesar da dialética travada entre biogênese e abiogênese, a vida explode em seu esplendor primordial onde o amálgama de átomos, elétrons, prótons, nêutrons, pósitrons, quarks, leptons, bósons, férmions, neutrinos e mésons interagem com proteínas, mitocôndrias, lipídios, sais, fósforo, nitrogênio, hidrogênio, enxofre, glicídios, células, impulsos elétricos, fibras musculares e DNA mitocondrial entre tantas outras milhares de interações que extasiam a sinfonia quântica, através da contradança da criação, do existir. Ah! Quanta glória! receber o sopro divino em um universo que nos faz viver gigantes e ao mesmo tempo partículas, nos apresentando o idílico milagre do desabrochar da vida. Jung (1875–1961) disse que nossa psiquê é estruturada de acordo com a estrutura universal e o que ocorre no microcosmo também acontece nos infinitesimais e mais subjetivos alcances da mesma psiquê. Carregamos inúmeros universos quânticos e relativísticos, todos imensamente vazios e ao mesmo tempo repletos e intensos em força e poder. São sistemas potentados, carregados pelas energias primordiais que vieram da fusão nuclear no interior das estrelas desnudas, que se atiraram despojadas universo afora, em uma marcha inexorável que nunca terá fim. Isso sim é lindo demais. Todos nós somos lindos demais, filhos e filhas dessa grande criação misteriosa forjada nas fornalhas das grandes estrelas que explodiram em tempos imemoriais. A casca de carbono que nos reveste, nosso corpo, um dia terá seu fim. Mas a energia que reside em nós, em sua fantástica configuração de interações caóticas e ao mesmo tempo harmoniosas, permanecerá viva pelo sempre do universo. Esta sim é a verdadeira beleza. Somos filhas e filhos imortais das grandes estrelas e por assim sermos devemos esplandir e iluminar o mundo com o brilho que herdamos do universo.

Deu Branco no Samba

A escola de samba e o próprio samba sempre estiveram entre os principais espaços de socialização da comunidade negra no Brasil. Desde o início do século XX que o povo negro se empenha em construir espaços comunitários de socialização. Espaços onde pudesse compartilhar com família e comunidade, atividades sociais de entretenimento e lazer. A oferta da indústria do entretenimento na sociedade brasileira sempre foi voltada para a classe média, onde os negros, com raríssimas exceções, podem frequentar e usufruir de suas mais diversas linguagens culturais. O apartheid econômico que atingiu o imenso contingente de população negra após o final da escravidão, levou negras e negros a se organizarem em torno dos principais processos culturais onde mantinham algum tipo de domínio e poder, que são o Candomblé e o samba. A escola de samba é o templo profano do povo negro. Nela as famílias se reúnem e se desenvolvem voltadas para o aprendizado e exercício do comunitarismo, da economia solidária, da gestão e manutenção de suas diversas características artísticas e culturais. Uma das grandes entregas espirituais do samba, entre as tantas coisas deliciosas que recebemos da vida, é a possibilidade de curtir um bom momento lúdico, cantando e relaxando em uma boa roda de samba, ou então nos ensaios de quadra das escolas de samba, que alegram os finais de semana de grande parte da sociedade em todas as cidades do país. As sensações de compartilhamento e pertencimento só não são maiores que o acolhimento que a comunidade oferece, em sintonia com sua generosa cosmovisão africana. Nada melhor que após uma semana repleta de atividades laborais extenuantes e problemas comuns do cotidiano, soltar o corpo e se entregar ao deleite do ritmo profano, cantando e alegrando-se em animados arrasta-pés regados a uma boa cachaça de alambique, aquela que “matou o guarda”, acompanhada de uma boa cervejinha gelada ao lado de guloseimas como torresminho, moela, ovo de codorna ou linguiça calabresa enfeitando a mesa essencial. Quem nunca deu aquela sambadinha gostosa, ao ouvir um samba, malandreado, dolente e gostoso? Bem devagar, devagarinho, como canta o Martinho da Vila. O samba sempre foi a cadência da batida do coração da cultura brasileira. É o principal alimento cultural daquela população vulnerável, esquecida pelo poder público, que sofre as adversidades impostas pelo perverso sistema de acumulação capitalista e pelo racismo estrutural. O samba foi um dos maiores legados que a população negra entregou para nossa sociedade. A força do samba exala os odores perfumados das mais autênticas raízes africanas. Suas origens são ligadas ao sagrado do continente africano, aos tambores, ao Candomblé e aos folguedos da cultura negra com suas cores e amores. João Gilberto cantava que o samba veio da Bahia e estava correto, pois esse menino dengoso, o samba, veio aconchegado no colo ancestral das Mães de Santo do Recôncavo Baiano, de Santo Amaro da Purificação, de Cachoeira e de Salvador principalmente. Após o advento da Lei Áurea em 1888, houve um movimento muito importante denominado "Êxodo Baiano", onde parte da população negra livre dos grilhões do cativeiro, deixaram a Bahia para trás e partiram rumo ao Rio de Janeiro, buscando uma nova vida longe dos sofrimentos que haviam experimentado no passado. O povo que veio para o Rio de Janeiro trouxe na bagagem, além de seus bens pessoais, a riqueza da cultura afrobaiana, uma das mais importantes manifestações culturais que contribuiu para a formação do Brasil republicano. Nessa bagagem também veio o samba, essa joia cultural fantástica que sobreviveu aos horrores da escravidão e às perseguições cometidas pela branquitude, pois trazia alegria e felicidade, e os corpos negros escravizados não podiam exprimir alegria e felicidade, se é que isso fosse possível na situação em que viviam. Filho dileto do jongo, do samba de roda do Recôncavo Baiano, do culto aos orixás e das tradições culturais e religiosas da África Subsaariana, o samba veio balançando nos vapores marítimos que cruzavam os mares rumo ao Rio de Janeiro. Nasceu como representante de uma manifestação cultural que servia como momento de lazer e ao mesmo tempo atuava como bálsamo que amenizava o terrível sofrimento pelo qual passava o povo negro escravizado, tanto no eito como na senzala, nos tempos do Brasil Colônia e Brasil Império. O parto do samba carioca ocorreu com certeza nos terreiros das casas de santo do Candomblé da Pequena África, no Jongo dos morros da Congonha e da Serrinha, em Madureira e como dizem alguns historiadores, também na casas da Umbanda Omolokô. Havia uma grande concentração desses terreiros na região conhecida como Pequena África no Centro da cidade do Rio de Janeiro. A certidão de nascimento do samba contém algumas lacunas, mas com certeza no formato que conhecemos hoje, surgiu na Pequena África entre o fim do século XIX e o início do século XX. Veio ao mundo abençoado pelos sons dos atabaques e dos tambores tocados com dedicação e amor por ogâs e alabês nos terreiros das religiões de matriz africana. Nasceu no instante compreendido entre o cansaço e a preguiça. Depois de um trabalho puxado de axé no terreiro, era necessário dar descanso ao corpo, que há pouco estava entregue ao poder espiritual e as dimensões metafísicas do Orum. A palavra samba pode ser oriunda do dialeto quimbundo, onde o termo “semba”, significa umbigada. É um tipo de umbigada profana e não sagrada como são as umbigadas do Jongo, de acordo com os pesquisadores. Foram as tias baianas vindas da Bahia que abençoaram o nascimento do samba, forrando seu berço com carinho, respeito e tradição. O samba em seu berço foi ninado com canções do samba de roda, entremeadas com batuques, lundus, polcas, maxixes. Essas tias baianas, além de quituteiras e festeiras, eram em sua grande maioria Ialaorixás renomadas e poderosas, que exerciam grande influência sobre a comunidade negra do Rio de Janeiro. O início do século XX foi um momento de intensa felicidade para a população negra, que vivia sob os efeitos eufóricos do fim da escravidão. Os negros da época comemoravam e agradeciam à Princesa Isabel pela assinatura da Lei Áurea que lhes libertou definitivamente dos 350 anos do cativeiro do branco opressor. Apesar de tantas agruras, a alegria havia voltado aos corações da população negra tão sofrida e vilipendiada pelo cruel regime de escravidão recém extinto após 350 anos de vilipêndios. Eram livres mas nunca deixaram de ser vigiados pelo sistema de repressão e controlados covardemente pelo sistema jurídico, que sempre promulgou leis em defesa da etnia branca e sistematicamente contra a população negra. Apesar da vigilância constante da polícia, os negros e negras se reuniam em lugares específicos da comunidade negra para comemorar a liberdade. E como não podia deixar de ser utilizavam o samba de roda, o jongo, o maxixe, a polca e o lundu como fundo musical para suas comemorações. A certidão de nascimento do samba foi lavrada nos terreiros das tias baianas, com destaque para as tias Ciata, Amélia, Carmem, Bebiana e Perciliana. Os sambistas consideram Tia Ciata como a grande parteira e mãe amamentadora do samba carioca. Nascida em 1854, em Santo Amaro da Purificação, terra de Caetano Veloso, Assis Valente e Maria Bethânia, chegou ao Rio de Janeiro em 1876 aos 22 anos de idade, onde casou e constituiu família, tendo sido mãe de 14 filhos. Ciata além de grande doceira e festeira, era uma Mãe de Santo respeitada pelo povo negro da Pequena África no Centro do Rio de Janeiro. Ficou mais famosa ainda após ter curado com suas ervas e unguentos uma ferida renitente na perna do à época presidente do Brasil, Wenceslau Brás. Sua proximidade com o presidente da república garantiu que a polícia não interrompesse e encerrasse sob catatau as festas embaladas pelo samba. Além da própria riqueza musical reinante, naquela época não havia transportes durante a madrugada. Os frequentadores dos terreiros sagrados aproveitavam que deveriam aguardar o dia amanhecer para retornar aos seus lares e afazeres, promoviam animadas rodas de batuque, já que a designação ‘samba’ ainda não havia sido cunhada. Geralmente o arrasta-pé virava a noite e então a partir de então pode ter surgido o termo “sambar até o sol raiar”. Pela casa de Tia Ciata passaram grandes nomes da música popular e do samba como Ataulfo Alves, Zé Espinguela, Heitor dos Prazeres, Hilário Jovino, Paulo da Portela, Cartola, Carlos Cachaça, Natal da Portela, Zé com Fome, Silas de Oliveira, Pixinguinha, Donga, Sinhô, Ismael Silva, Bide e Marçal, esses últimos formavam a turma do bairro do Estácio. Essa turma do Estácio foi a que mudou o ritmo do samba para mais cadenciado, como o que se toca até os dias de hoje nas baterias das escolas de samba. Eles também foram os responsáveis em cunharem o nome ‘escola de samba’, pois ensaiavam defronte a uma Escola Normal voltada para a formação de professoras no bairro do Estácio. Como na escola ensinavam as moças a serem professoras, eles defronte ensinavam samba e o resultado todos já conhecem: escola de samba. Antes o que se dançava era um ritmo amaxixado, como podemos constatar no primeiro samba gravado no Brasil por Donga, o famoso “Pelo Telefone”. Muitos sambistas torcem o nariz para esse samba, dizendo que o fonograma é um maxixe. Outros sambistas alegam que “Pelo Telefone” foi uma composição coletiva com participação de vários frequentadores da casa da Tia Ciata. Um dos maiores defensores dessa tese foi o baiano Hilário Jovino que alegava ser um dos compositores. Hilário Jovino era pai do malandro Saturnino da Praça 11 e primo de Heitor dos Prazeres. Precursor dos ranchos e do carnaval do Rio de Janeiro, Jovino fundou inúmeros ranchos, que seriam os blocos e escolas de samba de hoje. Sendo que um dos mais famosos que fundou foi o Ameno Resedá, que tinha entre seus admiradores mais destacados o escritor Coelho Neto. O Ameno Resedá costuma ser lembrado até hoje pelos compositores nos sambas cantados pelas escolas nos desfiles das escolas de samba. Os sambistas pioneiros não eram vistos com bons olhos pela sociedade. João da Baiana era filho de Tia Perciliana e sobrinho de Tia Ciata. Negro livre nascido em 1887, beneficiado pela Lei do Ventre Livre. Foi ajudante de ordens do ex presidente Hermes da Fonseca e autor do famoso samba “Batuque na Cozinha”, regravado por Martinho da Vila. João da Baiana era assim chamado pois naquela época havia muitos homens batizados como João e para diferi-lo dos outros, passou a ser chamado de João da Baiana, a baiana no caso era sua mãe Perciliana. Amigo de Pixinguinha e Heitor dos Prazeres, foi quem introduziu o pandeiro no samba. Pandeiro famoso que possuía a assinatura de um influente Senador da república, evitando assim que o instrumento fosse confiscado pela polícia. Os sambistas eram perseguidos e geralmente vinculados pela polícia e pela imprensa conservadora a marginais e malandros. Os capoeiristas formavam outro grupo perseguido da época, para quem inclusive, no havia sido criada um lei no Código Penal de 1890 que punia quem praticava a capoeira, a famigerada ‘Lei da Capoeiragem’, em cujo corpo, no artigo 402 rezava o seguinte: "Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação de capoeiragem: andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir lesão corporal, provocando tumulto ou desordem, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal. Pena: prisão celular por dois a seis meses". Parágrafo Único. É considerada circunstância agravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta. Aos chefes ou cabeças, se imporá a pena em dobro. Após a Lei Áurea em 1888, o governo brasileiro iniciou um gigantesco processo de embranquecimento de sua população, estimulando a imigração de europeus, primeiramente com alemães e italianos e depois do Japão, quando em 1908 atracou no Porto de Santos o navio Kasato Maru com a primeira leva de 781 imigrantes japoneses que vieram contratados para trabalhar nas fazendas do interior paulista. Enquanto passava pelo processo de embranquecimento ou eugenia como muitos alegam, estava em curso um intenso processo de gentrificação na capital do Rio de Janeiro. O Rio de Janeiro era a capital do Brasil no início do século XX, e o país recém saído da escravidão e ainda de vocação senhorial, passa a sofrer mudanças que visavam sua inserção entre as grandes capitais do mundo moderno, reivindicando também sua imberbe vocação urbana e industrial. O Centro do Rio era composto por muitos cortiços, alguns com até 2 mil pessoas como o "Cortiço Cabeça de Porco", daí o nome de "cabeça de porco" para qualquer tipo de ajuntamento de habitações empobrecidas e improvisadas do mesmo formato. As epidemias sanitárias se sucediam e a classe burguesa clamava por uma higienização e modernização do centro da cidade. Para o início da modernização do Centro da cidade do Rio de Janeiro o da época Presidente Rodrigues Alves, investiu de plenos poderes o Prefeito Pereira Passos, que governou a cidade entre 1902 e 1906. Pereira Passos foi inspirado pela bela modernização da cidade de Paris, dando início ao período conhecido como Belle Époque. Iniciou-se então um processo de gentrificação da capital, com foco no centro da cidade, onde cortiços foram derrubados para dar lugar a grandes edifícios, modernas avenidas e parques. Essas intervenções de Pereira Passos foram consideradas autoritárias, quando grande parte da população pobre foi expulsa desses cortiços sem indenização, tendo que se deslocar para as encostas dos morros da cidade, originando um incremento no número das poucas favelas que existiam naquele período. A modernização transformou a imagem da cidade com a inauguração da moderna e ampla Avenida Central, com suas lojas e cafés de luxo. Passos inaugurou uma impressionante iluminação pública, a reforma do Porto do Rio de Janeiro, o primeiro sistema de saneamento básico eficiente e a vacinação forçada da população sob o comando do sanitarista Oswaldo Cruz, que levou à deflagração da revolta negra denominada “Revolta da Vacina”, em 1904, que deixou um saldo de mais de 945 pessoas presas, 110 pessoas feridas e 30 mortos, segundo o Ministério da Saúde. A partir da “Bélle Epoque” o Rio de Janeiro entrou definitivamente para o clube das grandes e modernas cidades do planeta. A população negra também sofreu o impacto da gentrificação, primeiro tendo que abandonar o local de moradia contra sua própria vontade e segundo, dentro do contexto cultural, onde as manifestações populares como samba e capoeira foram perseguidas e proibidas, devido ao forte recorte racial de seus praticantes. Havia também o fato do desejo das elites de europeizar o cenário das artes e da cultura na cidade, banindo a crescente cultura negra do cenário da urbano. Para tanto passaram a prender sambistas que portavam instrumentos musicais e verificavam se seus dedos possuíam calos adquiridos com a arte de tocar percussão. Todo esse contexto de gentrificação originou a criação de uma forte burguesia carioca, que repudiava qualquer manifestação de origem africana. Com o passar dos anos, o samba foi se organizando e cada vez mais, passando a fazer parte da vida cultural da cidade. No início dos anos 1920 o carnaval de rua organizado era alegrado pelos ranchos carnavalescos da burguesia. Os desfiles aconteciam na moderna Avenida Central e eram um feudo exclusivo da elite e da classe média. O primeiro rancho a desfilar foi o “Reis de Ouro” de Hilário Jovino, que criou as figuras do Mestre Sala e Porta Bandeira e também o conceito de enredo, depois absorvidos pelas escolas de samba. Os pobres não podiam desfilar nos ranchos devido ao alto custo dispendido na confecção das fantasias e desfilavam em blocos e cordões compostos por maioria negra de operários e desempregados que viviam na região da Pequena África. Esses blocos mantinham a tradição de usar atabaques e tambores que marcavam o ritmo das batucadas africanas mescladas com elementos do Candomblé. As primeiras licenças para desfiles de blocos emitidas pela polícia datam de 1889 para os seguintes blocos: Grupo Carnavalesco São Cristóvão, Teimosos do Catete, Corações de Ouro e Piratas do Amor, entre outros. Havia ainda os blocos de sujo, que assim eram denominados porque eram composto por trabalhadores que saíam do trabalho diretamente para o carnaval, sem tomar banho. Esses trabalhadores foliões compravam máscaras de Clóvis e saíam na frente dos cordões, abrindo o desfile dos blocos. Marchavam sempre em grupo à frente dos blocos, com máscaras de velhos, criando então o que talvez tenha sido o embrião das atuais Comissões de Frente das atuais escolas de samba. Nos anos 1920 a contribuição da turma do Estácio foi fundamental para compreendermos o samba como é tocado hoje. Os sambistas da turma do Estácio eram famosos e também participavam dos saraus da casa da Tia Ciata, com destaque para Ismael Silva, Bide, Marçal e Brancura. Bide foi o criador do surdo de marcação, quando utilizou pela primeira vez uma lata de banha de 20 quilos vazia, colocou papel de saco de cimento molhado amarrou nas extremidades com barbante e arame, aquecendo o instrumento na fogueira. A marcação do surdo criado pela turma do Estácio retirou o ritmo amaxixado do samba e manteve sua característica cadenciada que é utilizada até os dias atuais. Bide também alterou a estrutura do sambas das escolas que eram cantados de maneira improvisada, passando a ser compostos antecipadamente. Em 1929, Zé Espinguela, o Pai de Santo da Mangueira e o sambista Paulo da Portela realizaram o primeiro encontro de escolas de samba, defronte à casa de Zé Espinguela no bairro do Engenho de Dentro. Juntos definiram critérios como Mestre sala e Porta Bandeira, Samba Enredo, Ala das Baianas em homenagem a Tia Ciata e Bateria, no que seria a gênese do que assistimos hoje nos sambódromos de todo o país. Nos anos 1930 o desfile das escolas de samba eram desorganizados. Não havia uma metodologia definida e a única obrigação das escolas era passar defronte a casa da Tia Ciata na Praça 11 para reverenciá-la. Não havia um local pré-definido e nem premiação. Nesse período passa a ter início a organização “profissional” das escolas de samba. Alguns sambistas eram muito respeitados pelo mundo do samba e pela sociedade e chegavam a ser tratados como embaixadores do samba, autênticos líderes de ébano, entre os quais se destacava Paulo da Portela. Através de Paulo da Portela e outros sambistas que se dedicaram na organização das escolas de samba e seu desenvolvimento, o Presidente Getúlio Vargas, empenhado em demonstrar apreço pelo nacionalismo e pela cultura nacional, promoveu finalmente a descriminalização do samba durante o Estado Novo. A partir desse momento as escolas de samba que eram restritas a bairros distantes e sem grandes projeções, passaram a proliferar com força total, reunindo principalmente nos subúrbios agremiações como o Império Serrano, dissidência do Prazer da Serrinha no Morro do São José Operário em Madureira, Baianinhas de Oswaldo Cruz que depois se tornou Vai Como Pode e finalmente Portela também de Madureira/Oswaldo Cruz, Salgueiro na Tijuca que foi o resultado da fusão de três escolas dos morros da Grande Tijuca, Imperatriz Leopoldinense na Zona da Leopoldina em Ramos, tendo como base o Complexo do Alemão e o bairro de Ramos, Mocidade Independente de Padre Miguel da Zona Oeste, Unidos Vila Isabel do Martinho da Vila, Deixa Falar com sua enorme tradição que depois se tornou Estácio no Centro do Rio de Janeiro, Vizinha Faladeira que reivindica ser a primeira escola de samba e a escola que introduziu o luxo nos desfiles do sambódromo da Marquês de Sapucaí, a Beija Flor de Nilópolis através de seu carnavalesco imortal Joâosinho Trinta, na Baixada Fluminense. A nova geração é composta pela União da Ilha do Governador, Unidos do Viradouro, Porto da Pedra, ambas do lado de lá da Baía de Guanabara, Grande Rio, Unidos da Tijuca, São Clemente, União da Ilha, Caprichosos de Pilares, Acadêmicos de Santa Cruz, Unidos de Lucas, entre muitas outras. As escolas de samba seguem uma antiga tradição de se organizarem por famílias. Tirando a Mangueira como exemplo, podemos ver o poder da escola distribuído entre as famílias. Entre os principais clãs da negritude daquele território estão as famílias da Dona Neuma/Saturnino/Chininha e Guesinha; Geraldo da Pedra; Zé Criolinho; Zé Ramos; Cartola e Zica; Dória; Tia Fé/Gilda/Roberto Firmino e Guanaira; Nelson Sargento; Tinguinha/Elmo; Carlos Cachaça; Tantinho; Hélio Turco; Alvinho e Padeirinho. Todas famílias importantes na genealogia mangueirense que sempre mantiveram o poder entre si, com um ou outro pequeno hiato. A Mangueira surgiu da união de diversos blocos e ranchos da comunidade. No morro já existia o rancho da Ialaorixá Tia Fé denominado Pérola do Egito, que junto com outras lideranças religiosas como o Pai de Santo Zé Espinguela, Maria Rainha e Chiquinho Crioulo de Minan faziam celebrações sagradas e organizavam ranchos para as famílias da comunidade se divertir. Os bons sambistas ficavam de fora porque bebiam muito, brigavam e falavam palavrões, por esse motivo eram proibidos de participar dos ranchos e blocos. Por conta disso criaram um bloco liderados por Cartola denominado ‘Arengueiros’, onde os homens se vestiam de mulher e iam para o centro da cidade brigar com os outros blocos. Após muitos anos de surras e prisões os arengueiros decidiram entrar nos eixos e Cartola propôs a fusão de todas as organizações carnavalescas de Mangueira em uma só entidade, a Estação Primeira de Mangueira. Estação Primeira é devido ao fato de a estação de Mangueira ser a primeira estação de trem depois que o trem saía da Central do Brasil e encontrava o samba. As cores verde e rosa foram em homenagem ao rancho de seu pai o ‘Arrepiados das Laranjeiras’, que tinha as cores verde e rosa. Segundo Carlos Cachaça, testemunha ocular de todos esses eventos, quem levou o samba para Mangueira foi o Mano Elói da Serrinha, de Madureira. Elói Antero Dias, assim como Paulo da Portela, se tornou um personagem de referência no samba carioca. Pai de Santo, sambista e líder do sindicato dos estivadores no cais do porto, Mano Elói assim como Paulo da Portela era simpatizante do Partido Comunista Brasileiro. Carlos Cachaça afirmou que Mano Elói foi quem cantou samba pela primeira vez em Mangueira na casa de Tia Fé. O PCB sempre encontrou no samba uma estratégia de se comunicar com o operariado, contrariando a afirmação que o samba era motivo de alienação popular. Tanto que em 1946 promoveu um desfile com 22 de escolas de samba no Campo de São Cristóvão em homenagem a Luís Carlos Prestes, líder comunista, Deputado Federal e comandante da famosa coluna que levou o seu nome, a inimaginável Coluna Prestes. Uma das características que as escolas de samba possuem e que poucas pessoas sabem são as famílias das baterias. As escolas possuem batidas diferentes e essa batidas são de acordo com os orixás de cada escola. O avanço da profissionalização do samba continuou de maneira irrefreável, depois que o Jornalista Mario Filho, irmão do teatrólogo e Nelson Rodrigues, que criou a campanha para a construção do estádio do Maracanã organizou através de seu jornal Mundo Esportivo o primeiro desfile de escolas de samba no ano de 1932. Evento que passou a ser organizado a partir de então pelo jornal O Globo. No ano de 1935 houve a legalização das escolas de samba pelo Prefeito Pedro Ernesto, oficializando os desfiles que até os anos 50 eram vencidos em revezamento entre Portela e Mangueira. Com a profissionalização os temas passaram a ser controlados e os critérios de julgamentos passaram a ser mais criteriosos. Uma das exigências é que as escolas deveriam apresentar enredos sobre a História do Brasil, quando os sambas de enredo passaram a ser longuíssimos, desprezando qualquer poder de síntese, com enormes trechos desconectados da realidade histórica. Dizem que a expressão “samba do crioulo doido” surgiu dessas imprecisões históricas contidas nos sambas. Enquanto as escolas de samba se estruturavam a passos largos rumo à profissionalização, os antigos ranchos e blocos de sujo também avançavam na sociedade. Os blocos faziam um desfile à parte para a população e entidades como o Cordão da Bola Preta, Bafo da Onça e o Cacique de Ramos dominavam o cenário dos blocos no carnaval no Rio de Janeiro, com destaque para o Chave de Ouro do Engenho de Dentro que saía somente na Quarta Feira de Cinzas, causando invariavelmente a prisão de seus componentes. Em Recife existem blocos tradicionais de grande expressão como o Galo da Madrugada e em Salvador os Filhos de Gandhi, Olodum e Ilê Aiyê, além da Timbalada. Nos últimos 30 anos centenas de novas agremiações surgiram para animar o carnaval de rua e blocos como o Simpatia é Quase Amor, Suvaco de Cristo, Bloco do Barbas, Spanta Neném, Bloco da Preta, Carmelitas, Bloco da Preta, Bloco da Anita, Fogo e Paixão entre outros. Esses blocos arrastam milhões de foliões pelas ruas do Rio de Janeiro. Um bloco que se tornou de grande tradição foi o Bloco das Piranhas que desfilava nas ruas de Madureira durante o carnaval, onde todos os seus componentes desfilavam vestidos de mulher. Atualmente os blocos de carnaval configuram um novo fenômeno nas grandes capitais brasileiras mas não representados mais pela população negra, pelo contrário, são administrados pelos representantes da classe média da zona sul, que inclusive criaram uma liga para representar seus interesses, a Sebastiana. O desfile das escolas de samba que antes tinha seu foco no Rio de Janeiro passou a acontecer em diversas unidades da federação. O governador do Rio de Janeiro Leonel Brizola solicitou ao seu fiel escudeiro e Vice-Governador o Antropólogo Darcy Ribeiro que encaminhasse a construção de um espaço fixo para o desfile das escolas de samba. A genialidade de Darcy Ribeiro uniu-se a de Oscar Niemeyer para criarem a Avenida dos Desfiles, depois Passarela de Desfiles e finalmente Passarela Professor Darcy Ribeiro. Mas como o próprio Darcy Ribeiro chamava, ficou popularizado com o nome sambódromo. Hoje existem sambódromos em todo o país que garantem o maior espetáculo da Terra. Nos tempos atuais as escolas de samba tradicionais se tornaram grandes organizações culturais e econômicas, ode despendem milhões de reais para realizar o desfile no sambódromo com possibilidades de vitória. Seus principais profissionais são contratados a peso de ouro e entre eles podemos citar os carnavalescos, as rainhas de bateria, os diretores de bateria, Mestre-Sala e Porta bandeira, cantores e cantoras. No barracão de alegorias que é uma fábrica que trabalha febrilmente durante o ano inteiro há uma equipe especializada e bem remunerada como os ferreiros que cuidam dos chassis dos carros alegóricos, a equipe da fibra de vidro e resina que molda os personagens, a pintura de arte e os aderecistas. Muitas equipes trabalham fora dos barracões como o pessoal da chapelaria, sapataria e costura, que costumam ser nas própria s comunidades ou em seus arredores. Essas equipes de fora do barracão costuram as fantasias das alas, que geralmente são coordenadas pelas famílias mais importantes da escola. A era digital propiciou que a s escolas elaborassem seus sites na Internet e se comunicassem com o mundo. As grandes escolas possuem dezenas de Embaixadas e Consulados no Brasil e em todo o planeta, de onde vem componentes para desfilar no carnaval carioca. A Mangueira possui sua filial em Portugal que é verde e rosa e se chama Trepa no Coqueiro, no Japão existe Yokohama Saúde Mangueira em Londres existe há 30 anos a Unidos de Londres. O que antes, nos anos 40, eram quadras de chão de saibro batido agora são verdadeiros palácios do samba, onde a população negra fica cada vez mais distante devido ao preço elevado dos ingressos e das bebidas e tira-gostos durante os ensaios. O padrão étnico das quadras das grandes escolas mudou radicalmente com a classe em média em peso, ocupando os espaços que antes era dos representantes da comunidade. As fantasias são caríssimas e a única opção para o negro pobre desfilar é conseguir uma fantasia na Ala da Comunidade que é financiada pela escola, ou então na “Ala da Força”, que empurra os carros alegóricos do barracão de alegorias até a avenida dos desfiles, durante os desfiles e retorno ao barracão. Obviamente que a bateria recebe as fantasias, assim como o casal de Mestre sala e Porta Bandeira e as Rainhas de Bateria. O evento que antes era perseguido e discriminado agora é um espetáculo milionário que movimenta milhões de reais todos os anos em todos os estados da federação. Os negros não estão mais no centro das decisões, com algumas raras exceções. O samba se tornou uma indústria milionária assim como o cinema. E nesses casos os negros ocupam os degraus mais baixos da cadeia produtiva do carnaval. Deu branco no samba.

segunda-feira, 27 de maio de 2024

A Negritude Brasileira

No Brasil ser negro significa ter que dedicar grande parte de sua vida a lutar contra a desigualdade, o preconceito e todas as formas de exclusão que o racismo estrutural impõe sobre negros e negras desse país. Se abaixar a cabeça passa a ser explorado e se torna escravo contemporâneo. Se resolve se organizar e lutar contra o sistema racista é taxado de radical, racista ao contrário, comunista, esquerdista e outras designações afins. Por isso o negro deve estar a postos cotidianamente, lutando pela democracia, buscando a igualdade, sendo solidário com seus iguais, se aquilombando, se rebelando contra as injustiças, estudando sempre, exigindo ser tratado como um cidadão pleno de seus direitos, enfim, compreendendo que a sociedade eurocêntrica, branca e racista, que erigiu o racismo estrutural, nunca lhe oferecerá nada a não ser humilhação, opressão, exclusão e miséria. Desde quando o primeiro navio negreiro aportou por aqui com sua "carga" (des) humana, no século XVI que o povo negro sofre nas mãos do branco colonizador e opressor. A população negra, tanto a escrava e mesmo depois de ser tornada livre, nunca recebeu por parte do estado brasileiro qualquer tipo de reparação histórica pelo hediondo crime de lesa-humanidade cometido contra o povo negro que sofreu durante 350 anos os horrores do cativeiro. A realidade social brasileira sofreu uma grande guinada com a promulgação da famélica Lei Áurea, que decretou tardiamente a extinção da escravidão no Brasil em 1888. Foi um período de grandes sobressaltos, que inaugurou novos experimentos sociais. Período que em tese passou a considerar através de diversos eufemismos a liberdade do povo negro até então submetido ao cativeiro no país. O negro respirava feliz os novíssimos ares de uma liberdade ansiada. Alvíssaras cobriam o país que observava preguiçoso o fim do pesadelo da escravidão. Um país ainda assustado com a nova e inconteste realidade, que a partir de então passaria aprender a viver como uma nação livre da instituição do cativeiro. Mesmo consolidada pelo marco jurídico, a tão sonhada liberdade passou a ser um “estorvo” para a burguesia branca nacional da época, que nutria verdadeira ojeriza pelos "crioulos da terra" e queria vê-los longe do novo país que surgia com a república. A partir de então foi cometido o segundo grande crime contra a população afrodescendente, que foi o projeto governamental de embranquecimento da população brasileira. O projeto foi iniciado através do incentivo à imigração maciça de cidadãos europeus empobrecidos, que receberam do governo brasileiro todas as condições necessárias para refazerem suas vidas, realizarem seus sonhos e prosperarem no novo país “democrático”. Enquanto os brancos europeus e depois os asiáticos chegavam aqui aos borbotões, recebendo todas as garantias possíveis de promoção e desenvolvimento, a população negra recém-liberta, era jogada na sarjeta, como um entulho étnico inconveniente e desnecessário. Foi um movimento premeditado, criminoso e covarde, pois, de um dia para o outro, centenas de milhares de negros e negras se viram em estado legal de liberdade mas ainda infelizmente cativos, por força da ausência de oportunidades de subsistência. O enorme contingente de negros e negras em estado de liberdade foi expulso do território rural onde vivia pelos antigos senhores, quando se pôs em marcha pelas estradas do país buscando uma nova vida. Em flagelos saíram sem rumo, sem eira nem beira, largados e entregues aos sortilégios de uma Lei Áurea covarde e geradora de miséria. Lei inconclusa que se absteve das láureas da glória para se ofuscar ao proporcionar um destino cruel para o povo negro, sem oferecer qualquer tipo de promessas de reparações. A triste odisseia do povo negro em terras brasileiras começou com o primeiro grande crime, que foi o sequestro e a escravização em massa de 5 milhões de negras e negros, trazidos cativos do continente africano. O segundo momento do mesmo crime foi a tenebrosa travessia transatlântica, que ceifou milhões de vidas africanas e alterou inclusive a rota migratória milenar dos tubarões, que passaram a seguir os navios negreiros sabendo que se alimentariam de carne fresca dos corpos que eram atirados ainda vivos dos navios, por motivo de doença, rebelião ou então logo após o falecimento. O terceiro momento foi o estabelecimento do cativeiro no Novo Mundo, onde os escravizados cumpriam o triste destino de trabalhar de maneira forçada, gratuita e extenuante até à morte, sem nunca poderem tocar novamente o Continente Africano de onde vieram acorrentados. O segundo crime foi o abandono por parte do governo brasileiro de toda a população negra que havia sido escravizada e aguardava ansiosa por reparações no pós abolição. Ao não assumir as responsabilidades pelas reparações pelos crimes de lesa-humanidade cometidos contra o povo negro, o governo brasileiro destruiu todas as possibilidades de ascensão e promoção social desse contingente étnico, caracterizando que não foi um acaso ou uma falha geracional que propiciou a miséria que grassa hoje em dia na população negra, e sim um projeto oficial do estado brasileiro, para eliminar lentamente qualquer tipo de soerguimento do povo negro em terras brasileiras. O projeto governamental de branqueamento de nossa população foi apresentado inclusive no Congresso Mundial das Raças, realizado na cidade de Londres em 1911. A delegação brasileira chefiada pelo antropólogo racista João Batista Lacerda, do Museu Nacional, previu ao terminar a apresentação do projeto: "Sur les métis au Brésil" (Sobre os mestiços do Brasil) que com o vigoroso processo de miscigenação que estava em curso no país, através da chegada de imigrantes europeus, dentro de um prazo de 100 anos, ou seja, em 2011 o Brasil teria 80% de sua população composta por brancos, 17% de indígenas, 3% de mestiços e 0% de negros. Baseado em seus estudos, Lacerda garantiu que em 2011 nasceria o último negro brasileiro. Entre a abolição da escravatura e curso do projeto de erradicação do negro brasileiro, houve um abandono proposital da população negra, que foi tornada invisível e deixada de lado pelo estado brasileiro, sem capacitação profissional, analfabeta, subnutrida, sem habitação adequada e não sendo beneficiada por qualquer tipo de política pública de inclusão social e perspectiva cidadã. Sem saber como fazer, mas ao mesmo tempo na emergência de ter que sobreviver, o povo negro passou a ocupar os territórios mais precarizados e periféricos das cidades. Sem o trabalho no campo que era sua especialidade, agora ocupado por mãos imigrantes, o povo negro migrou para as cidades, em busca de qualquer tipo de trabalho que lhes garantisse a sobrevivência, já que mesmo na condição de humanos livres, tiveram a cidadania negada, além de terem sido submetidos propositalmente à invisibilidade social. A população negra nunca pode viver em paz nesse país, que sempre foi notadamente racista. O Brasil enquanto projeto de nação tem suas digitais e seu DNA fundamentados no instituto da escravidão. O resultado dos crimes cometidos contra o povo negro geraram profundas feridas sociais que ainda hoje permanecem vivas e abertas, nos assustando com suas hemorragias voluptuosas e incessantes. Os indicadores sociais da população negra são absurdos e gritantes no que concerne às assimetrias relacionadas ao contingente de população branca do país. Por mais incrível que possa parecer, a generosidade da cosmovisão africana é tão ampla e solidária que consegue internalizar em seus filhos a necessidade da tolerância, do compartilhamento e da convivência pacífica com a mesma etnia que a massacrou durante mais de três séculos Assim sendo, os brancos vão ao samba para se divertir, ao candomblé para se espiritualizar, às rodas de capoeira para treinar, nas manifestações de Jongo em comunidades periféricas, onde são bem recebidos e de lá saem felizes. Porém na direção contrária não querem dividir com os negros os assentos do Teatro Municipal nos eventos de óperas ou música erudita. Assim a banda vai passando e tocando o mesmo trecho da velha rapsódia, onde os negros permanecem sendo secundarizados por um sistema racista, segregador e excludente. Sistema eficiente que promove para os brancos delícias, benesses e privilégios engendrados pela branquitude e respaldados pelo racismo estrutural. Negras e negros no Brasil vivem em constante estado de tensão racial provocado pelo poder imanente dos racismos estrutural e institucional, que nos remetem a sucessivas derrocadas psicossomáticas ocasionadas pelo sofrimento emocional. Enveredando por trilhas fanonianas é bastante previsível que enquanto seres humanos sensíveis, negras e negros sofram a pior das dores que é a presunção de serem considerados renegados dentro de seu próprio país, oprimidos inclusive por leis e discriminações advindas do próprio estado brasileiro, que os tornam vítimas sofridas de uma apatridia violentadora cometida no próprio solo em que nasceram. O Brasil insiste em ser uma nação democrática, mas na verdade vive uma fantasia, uma ilusão constitutiva que violenta sua população negra descaradamente. Impõe aos negros e negras um sistema cruel de desumanidades, que os agride desde a concepção no útero da mãe através da violência obstétrica até ao sepultamento na cova rasa destinada aos miseráveis quando morrem (muitas vezes sepultados como indigentes) no final da vida. Por isso sofrem sucessivos abalos emocionais ocasionados pelas violentas ameaças estruturais, originadas de um sistema amorfo, moldado para segregar e oprimir um contingente étnico considerado inferior, apenas por possuir um percentual maior de melanina em seus corpos. A branquitude nos ensinou a nos odiarmos, sim odiarmos uns aos outros em nossos cotidianos. Nos convenceram que éramos feios, horrorosos. Nos levaram a acreditar que seríamos mais bonitos se alisássemos nossos cabelos crespos. Nos fizeram sentir que éramos aberrações estéticas, incapazes de nos igualarmos a eles que detinham o modelo de padrão de beleza oriundo do helenismo. Sentíamos inveja dos brancos com suas peles brancas, seus cabelos lisos e loiros, seus olhos verdes e azuis, pois nos ensinaram também que esse era o modelo de beleza universal. Sempre fomos humilhados e taxados como descendentes de escravos, incapazes e preguiçosos, filhos de trabalhadores braçais e de profissões ligadas à subalternidade. Sonhávamos e invejávamos a branquitude, o modo de viver branco com boas casas e automóveis reluzentes. Nos maldizíamos pelo simples fato em não ser como eles. Para as crianças e para a juventude negra, o belo sempre foi o branco, o líder é o branco e crescemos com essa certeza ao constatarmos que a escola escolhe a rainha da primavera entre as meninas brancas. A branquitude não para de cometer crimes históricos contra a população negra e esse é um dos mais perversos que existe que consiste na pulverização de nossa autoestima por conta da cor de nossa pele, do nosso cabelo, dos nossos traços fenotípicos e de nossa origem ancestral. A branquitude e o racismo estrutural nos empurraram junto com nossa autoestima para o fundo do abismo da auto rejeição e da não aceitação enquanto pessoa, e por lá nos manteve durante três séculos. A não aceitação em ser negro faz os negros abastados economicamente, buscar mulheres brancas para casar. São diversos sentimentos embutidos nessa opção que muitos consideram errática e discutível. Pode ser por amor, por atração física ou os dois juntos. Mas também pode ser por auto promoção, para ser reconhecido amado e aceito pelo mundo branco. Falam em atração dos opostos e realmente esta opção existe. Mas não é tão comum uma mulher branca e rica se casar com negro pobre. Obviamente que existem exceções, mas são em gradações tão infinitesimais que são desprezadas pelas pesquisas. Geralmente os casamentos ou uniões inter-raciais acontecem entre negros bem sucedidos economicamente e mulheres brancas pobres (geralmente loiras). A questão colocada é oriunda da interrogação que não pode calar e grita abertamente sobre o porquê de negros que ganham muito dinheiro não fazem a opção pelas mulheres negras? Talvez porque mesmo que saídos do ventre de uma delas, não queira se ver através delas e nem desejam passar a vida ao lado delas, pois na verdade, devido ao seu espírito deformado pela branquitude, se depara com um espelho onde não gosta de se ver. O racismo se entranhou de tal forma em sua personalidade, que ele rejeita sua própria imagem no espelho, indo se olhar em um espelho que reflete um mundo que o despreza, que o vê como inferior, mas mesmo assim ele insiste em sua jornada equivocada, ancorada em vergonhosas clivagens sociais amparadas em frágeis sofismas. A força da empresa colonial foi pródiga em demonizar as culturas de seus territórios colonizados, caracterizando-as como manifestações barbaras e até demoníacas. As religiões de matriz africana nunca invadiram países ou promoveram morticínios em nome de seus deuses. Esta sempre foi uma prática cometida pelo cristianismo, promovendo matanças e genocídios históricos como as cruzadas em Jerusalém, a Ordem de Cristo com seu projeto de apoio às grandes navegações e colonização nos territórios do Novo Mundo, além da cruel Inquisição da Igreja Católica, que durante a Idade Média executou milhares de inocentes, principalmente judeus e mulheres, sempre em nome de Cristo. A força e o poder do cristianismo são tão grandes que por mais incrível que possa parecer, o Candomblé e a Umbanda passaram a ser as religiões acusadas de possuírem pacto com o diabo, de serem cultos demoníacos e até sexualizados. A branquitude com seu poder de controle midiático faz a população acreditar nisso através dos meios de comunicação e em seus púlpitos. Então o jovem cuja família professa uma religião de matriz africana é obrigado a esconder sua opção confessional por conta do patrulhamento do cristianismo nas escolas e nos espaços sociais de lazer. Apesar do catolicismo ter sido abolido como religião oficial do Brasil na Constituição de 1891, instituindo o estado laico, ainda podemos ver, mesmo 130 anos depois, a cruz de Cristo pregada nas paredes de tribunais e outras repartições de estado. Nas escolas públicas é comum a celebração do Pai Nosso com os alunos formados antes de se dirigirem para suas salas de aula. O proselitismo cristão contribuiu de maneira impositiva para a derrocada da autoestima da juventude negra. Ao se professar um credo onde os santos em sua imensa maioria são brancos, onde o Filho de Deus é branco e o próprio Deus é branco, onde reina imponente nos céus cercado por anjos brancos. Fica evidente que a cor negra não está lidada à santidade e sim ao vício e ao pecado. Os setores mais conservadores do cristianismo alegam que a pele preta é o sinal que Deus colocou em Caim, após ele matar seu irmão Abel, para que com esta marca todos os seus descendentes pudessem ser reconhecidos em qualquer lugar da Terra. Fica difícil ser verdadeiramente feliz quando se é considerado a parte fracassada da sociedade, que adoecida, opera através da inversão de valores, abandonando a cooperação e visando a competição, onde a supremacia dos brancos sobre a população negra torna a com petição extremamente desigual. O resultado é dor e sofrimento, pois o negro, desde quando acorda até ir se deitar para dormir é um ser em fuga do seu próprio destino, que não lhe oportunizou a felicidade do orgulho dos valores de sua ancestralidade. Por isso vive titubeando em um panorama existencial difuso, criado pelo oportunismo covarde e excludente que é a branquitude, emulada pelo capitalismo concentrador. No Brasil o desemprego, a sub cidadania, a ausência de educação de qualidade e a oferta de um sistema de saúde precarizado são o carro-chefe da sub cidadania, aliando-se também o meio-ambiente deteriorado, o encarceramento em massa, além da necropolítica e proximidade com a morte, são as sombras que permeiam o horizonte assustador, que invariavelmente paira durante toda uma vida do povo negro. Por mais que a cama seja confortável, não há condições para dormir em paz, pois o chamado ancestral não permite e nos retira do sono para nos lembrar que há uma guerra a lutar. Não seremos um titanic antropológico que insiste em navegar na direção do grande iceberg que é o capitalismo voraz das economias centrais. Capitalismo que se apropriou de nossos corpos e mentes e poderá nos destruir causando nosso naufrágio nos mares traiçoeiros do mundo branco. Para nós negros poder acordar e viver um novo dia já é uma grande vitória. Nosso sangue escorre impunemente pelas ruas e vielas das periferias das cidades sem alma e sem coração. A visão de corpos negros descompostos, esquartejados, crivado de balas faz parte do cotidiano escabroso da necropolítica que alegra e encanta a burguesia branca. Elite feia, cafona, sem cultura e cruel que nos detesta e nos quer ver bem longe de seus espaços. Para a elite branca brasileira quanto mais negros perderem a vida será melhor, pois assim o estado está reduzindo o percentual de população negra do país. Bradam em uníssono que bandido bom é bandido morto, mas não refletem sobre o porquê da existência do bandido. Qual o fenômeno social que gera o bandido. Qual o meio ambiente em que o bandido nasceu e foi criado. Quais foram as possibilidades de promoção social e redução de vulnerabilidades que ele recebeu. O que o estado brasileiro ofereceu para aquele ser humano desvalido ser um cidadão produtivo e dotado de todas as prerrogativas e ferramentas sociais e cognitivas que lhe permitisse superar os óbices do impostos pelas regras disformes do mundo branco? Não pensam em solucionar o problema social, quando é muito mais cômodo mandar eliminar e se livrar da matéria enterrando os corpos. Apesar do panorama social trágico gerado pela necropolítica e pelo controle dos corpos oprimidos à exaustão, a burguesia abusando do cinismo social consegue ganhar muito dinheiro com todo esse caos social. Tanto pode ser pela corrupção, como pelo abastecimento enlouquecido dos equipamentos necessários para os aparelhos de repressão de estado. Então ao negro restou o samba como espaço de socialização. O samba esse grande patrimônio nacional, que gera bilhões de reais para o país nos 365 dias do ano. Uma manifestação cultural que possui uma cadeia produtiva gigantesca que gera muito dinheiro. Costumamos assistir somente a ponta do processo da cadeia produtiva que são os grandes eventos como os desfiles e ensaios das escolas de samba e blocos de rua, que arrastam milhões de foliões pelas ruas e avenidas do país. Por trás dessa culminância há um esforço gigantesco para que tudo aconteça, onde atividades como estúdios de gravação de músicas, fabricação de instrumentos de percussão, chapelarias e fábrica de calçados, produção de adereços e fantasias, construção de carros alegóricos com ferreiros e especialistas em fibra de vidro, resinas, isopor, indústria de efeitos especiais, transportes, hotelaria, milhões de vendedores ambulantes, indústria de bebidas, equipes de rádio e televisão, comentaristas e imprensa especializada, comercialização de direitos musicais e de imagens, contadores e advogados, seguranças, viagens mundo afora, enfim, uma cadeia produtiva monumental que gera trabalho e renda o ano inteiro no Brasil e também no exterior. Mas quem comanda esse grande império do samba e do carnaval? Os brancos obviamente. Mas como pode ser, se os negros foram os que começaram com toda essa maravilha cultural? Sim, começaram e sofreram todo tipo de perseguição durante décadas. Sofreram na carne e inclusive com prisões e torturas, por insistirem em praticar o samba. Desde a casa da Tia Ciata até o governo Getúlio Vargas os negros passaram por intensos períodos de perseguições quando foram colocados em conflito com a lei somente pelo fato do samba ser uma manifestação da cultura negra e rejeitado pela cultura branca cosmopolita da época. Quando o samba deixou de ser perseguido, a branquitude finalmente encontrou uma brecha, um grande nicho para fazer fama e fortuna com a exploração da atividade cultural. Hoje podemos assistir os brancos comandando o samba e o carnaval enquanto que os negros se tornaram componentes secundários e até escanteados em alguns casos. Por mais incrível que possa parecer as próprias baterias das escolas de samba que sempre resguardaram a herança atávica e ancestral dos tambores africanos e dos orixás, passaram a ser precedidas por mulheres denominadas rainhas de bateria, louras siliconadas e marombadas, que pagam uma fortuna para ocupar o posto, antes um lugar que historicamente sempre pertenceu às mulheres negras das comunidades periféricas onde as escolas de samba realizavam seus ensaios. Seguindo em frente na mesma direção podemos ver a perseguição ao funk e ao hip hop, por parte da sociedade branca racista. Essas manifestações culturais são a forma da juventude negra se comunicar musicalmente com a sociedade. É a voz das periferias, das comunidades, de negros e negras que não possuem condições políticas de manifestar seus descontentamentos com o racismo e o abandono por parte do estado. O movimento de apropriação do funk e do hip hop pela branquitude já começou. Em um futuro bem próximo assistiremos o mesmo movimento de apropriação cultural. A capoeira sofreu o mesmo destino do samba, depois que passou a ser considerada um esporte com inclusão inclusive nos currículos escolares de algumas unidades escolares. Hoje a capoeira está consolidada em todo o planeta com seus mestres loiros de olhos azuis vicejando a arte marcial negra nos principais palcos do mundo. Porém, em um passado não muito distante, entre os anos de 1889 a 1937 o governo manteve na vigência no Código Penal a Lei da Capoeiragem, que previa a prisão dos praticantes da capoeiragem, além do castigo físico de 300 açoites. Nossa história é recheada de protagonismos e usurpações. A branquitude nos observa e fica pensando no melhor momento de se aproveitar do resultado de nossos talentos e ganhar dinheiro com a atividade. É como chupar a cana extraindo a doçura do seu caldo e depois jogar o bagaço fora, no caso o bagaço somos nós. A história das grandes cidades demonstra que há uma guerra civil em curso, que ceifa em torno de 60 mil vidas pretas todos os anos, terminando com os sonhos de uma juventude que em sua curta existência só conheceu a indiferença, a violência e o desamor em uma vida corrompida e miserável. A corrupção estatal depende e se sustenta através dessa guerra para fazer girar a roda da fortuna. O negro famélico que segura o fuzil na comunidade é um pobre fantoche de um enorme teatro de horrores. Ele é a base da pirâmide do mundo do crime, sendo considerado um joguete, uma peça do estoque étnico descartável que é a juventude negra. Os donos da dinheirama gerada pelo narcotráfico vivem de maneira nababesca em confortáveis mansões, cercados de luxos e advogados, contando o dinheiro que chega aos borbotões em suas mãos, ocupam postos parlamentares no Poder Legislativo e muitos até chegam ao Poder Executivo eleitos prefeitos e governadores. O pretinho do fuzil na comunidade não pode estudar, pois a ditadura cruel do seu cotidiano lhe diz que precisa aprender somente a linguagem da violência que é sua companheira inseparável. Foi educado e sabe que para sobreviver precisa fazer dinheiro para o seu “patrão”. Por isso as penitenciárias estão repletas de negros e negras, o sistema mantém o projeto de precarização étnica e lucra bastante com isso. Para a elite é o jogo do ganha/ganha, enquanto que para o povo negro só tem a opção do perde/perde. Estamos na luta contra todo esse horror institucional e não sairemos das trincheiras, não arredaremos pé, nelas não se dorme e o combustível que nos mantém alerta e combativos é o cheiro do suor de irmãs e irmãos que lutam ombreados e aquecidos com a chama da liberdade. É uma guerra longa, oriunda dos tempos imemoriais, de onde viemos vencendo batalha por batalha, conquistando e fincando a bandeira da justiça em territórios antes interditados aos negros e negras. Assim foi com as cotas nas universidades, nos espaços privilegiados de governo, nos parlamentos e na sociedade de uma maneira geral. Somos filhos da grande África, o berço da humanidade e da civilização, onde a caminhada humana sobre o planeta Terra teve início. Infelizmente só podemos contar com nós mesmos, pois não há atualmente qualquer tipo de devir civilizatório onde o povo negro possa estar incluído ou quiçá considerado protagonista, que não tenha sido eurocentrismo nos tirou tudo isso com o colonialismo e a escravidão, mas estamos lutando para recuperar nossa história, nossa cosmovisão e nossa espiritualidade. Estamos erguendo cada vez mais nossos monumentos, tijolo por tijolo, felizes e esperançosos com o lindo amanhecer que nos aguarda logo ali adiante em um belo alvorecer da história, conquistado com muita luta. Não somos vistos como referência histórica afirmativa enquanto construtores de um projeto de futuro de nação. O

domingo, 19 de maio de 2024

Psicanálise, desejos e sofrimentos do povo negro

Dukkha é uma palavra originada do sânscrito que dentro da complexidade epistêmica do budismo significa a "Nobre Primeira Verdade", mas também desalento,  tristeza e sofrimento. Há uma interessante dialética entre desejo e sofrimento, onde de uma maneira bem simples a eliminação do sofrimento é diretamente proporcional à eliminação do desejo. Dentro das Quatro Verdades do budismo podemos observar que o sofrimento está diretamente ligado aos desejos do corpo físico tanto como nas ilusões das paixões mundanas.

São abordagens instigantes que desafiam nossas reflexões de acordo com  Epicuro, o "Filosofo do Jardim", que afirmava a necessidade da compreensão da Filosofia para curar o ser humano das dores da alma, assim como a Medicina traz a cura para quase todos os males do corpo físico. Epicuro também aborda em sua extensa obra a dialética entre desejos e sofrimentos, criando uma espécie de doutrina que foi citada inclusive por Karl Marx como forma de edificação humana.

Na entrada do Oráculo de Delfos, localizado na Grécia Antiga, prontifica uma citação conhecida que diz: “Conhece-te  ti mesmo”. A expressão lastreou o pensamento socrático na estruturação e consolidação da filosofia ocidental, seguida por Platão e depois principalmente por Aristóteles.

Conhecer a si mesmo é um desafio instigante que está contido em nossa personalidade, onde o eixo axial está profundamente ligado aos nossos desejos e sofrimentos. 

O ser humano negro contém em seu ethos constitutivo um mosaico extremo e radicalizado de desejos e sofrimentos. Seus desejos são justos, como justos são todos os desejos contidos no espectro de regulações das internalidades humanas. Porém, seus sofrimentos são terríveis e produzem sussurros assustadores em sua existência. A obra  de Franz Fanon, psiquiatra martiniano e líder da luta anti colonial africana, apresenta um panorama perturbador acerca dos recônditos do âmago da alma negra. O povo negro foi vítima inconteste de incontáveis perversidades e abusos mentais cometidas pelo colonizador branco europeu durante séculos, que geraram seres oprimidos e esvaziados de suas personas.

O desejo do negro é diferente do desejo do branco. O desejo do negro é um sonho, uma quimera, enquanto que os desejos dos brancos são metas factíveis, que podem ser alcançadas se houver um planejamento de vida eficiente dentro da lógica estrutural do capitalismo. 

Para o negro sonhar e desejar, significa acalentar uma panaceia, ou seja, viver tentando alcançar uma possibilidade muito distante de sua realidade devido ao seu componente étnico. O mais cruel é que além de ser impossível para a grande maioria negra,  ela geralmente não sabe que é impossível, pois foi  convencida do contrário e de maneira bastante eficiente pelas trucagens da branquitude racista e preconceituosa. 

O racismo estrutural age com o negro da mesma maneira que um gato faz ao brincar com um camundongo pego de surpresa em suas incursões furtivas nas noites cotidianas de uma casa qualquer. O bichano encurrala e prende o rato, joga-o de um lado para o outro, prendendo e soltando, em um jogo sádico e cruel. Sua inteligência felina age criando a falsa imagem de possibilidade de liberdade para o roedor. Ledo engano, na verdade está divertindo-se curiosamente, testando suas habilidades atávicas, jogando com o camudongo ao seu bel prazer, quando então enfastia-se do jogo e tira a vida do já desinteressante ratinho, com requintes de crueldade.

O ser negro vive e morre preso a desejos que infelizmente lhes causarão dores e sofrimentos por toda a sua existência. São desejos comuns do campo material do mundo branco como frequentar bons restaurantes, adquirir um imóvel confortável, possuir um bom carro, sair de férias com a família, conhecer outros países,  amar e ser amado sem o interdito da cor, ver os filhos estudarem em boas escolas, ter boas roupas e um saldo confortável na conta bancária, enfim, desejos praticamente impossíveis de serem realizados pelo interdito da origem, que ao não serem realizados geram dores e sofrimentos.

O capitalismo e sua estrutura econômica eurocêntrica, baseada no consumo excessivo e na sede de acumulação e apropriação, leva os seres humanos a se desesperarem de forma incontrolável, estimulando a população no desejo de aquisição de ícones pessoais que representam prestígio e poder na pirâmides sociais das sociedades capitalistas. O negro nunca foi considerado agente protagônico e tampouco partícipe desse processo evolutivo econômico. Sempre foi visto como um penduricalho social indesejável, uma aberração antropológica incapaz de construir modelos de desenvolvimentos produtivos de amplo espectro.

Ao ser alijado do sistema produtivo enquanto agente intelectual não-emulador, foi relegado à condição de mero trabalhador braçal escravizado, para então ter o desejo de sonhar apenas com a sua liberdade. Seu único desejo passou a ser a conquista da liberdade onde não pensava em família, filhos, educação e futuro, só desejava a liberdade. O sonho de liberdade, passou a ser seu horizonte de vida, horizonte  para o qual quanto mais caminhava em sua direção, mas esse horizonte se afastava, causando desespero e ódio aos que lhe impuseram essa condição indigna. Muito pouco para um branco mas era tudo para um negro sequestrado em seu país e escravizado em outro continente, respirar os ares da liberdade.

O destino reservou ao povo africano a má sorte do contato com o branco europeu. Desde o fatídico encontro, passaram a viver desgraçadamente em um vale de lágrimas, onde o simples fato de estar vivo era para o negro um sinal de bem aventurança. O negro era profunda interrogação de como ser feliz, existindo em uma dimensão tão reduzida e míope de desejos. 

Imerso no caldeirão efervescente do colonialismo, passou então a ricochetear entre as nobres verdades do budismo, a cosmovisão africana, as construções da Frenologia e o materialismo histórico de Karl Marx. A reflexão dessa existência torna-se difusa quando analisamos comparativamente o estreito escopo de desejos de um ser humano negro escravizado, com uma pessoa branca e a formidável amplitude do cardápio de desejos postos à sua disposição. Em tese o negro deveria ser mais feliz, pois não era cativo de tantos desejos, mas pelo contrário, mesmo despido de quase todos os desejos que uma pessoa branca possa  possuir, tornava-se triste e sem esperanças por dias melhores. Seus sofrimentos eram gigantescos, mesmo tendo somente um desejo primordial que era sua liberdade.

Durante 350 anos negras e negros foram escravizados no Brasil. Foram desumanizados, aviltados, violentados de todas as maneiras possíveis. Eram apátridas considerados sem alma em seu próprio país. Eram vistos como seres pestilentos, como espectros ambulantes que não podiam usar sapatos para que sua inferioridade fosse demonstrada. Viveram suas vidas sendo tratados como animais e às vezes recebiam tratamento inferior ao que os animais recebiam.

Qual é a filosofia? Qual é a Psicanálise? Será que existe Freud e Lacan para negros e negras? Quais as bases e fundamentações teóricas que embasaram esses doutrinadores eurocêntricos? As dores do cativeiro eterno cabem na teoria psicanalítica branca? E os desejos de quem não tem direito a ter direitos? Os sofrimentos de que não possui horizontes serão compreensíveis?

São dois mundos que vivem e compreendem duas realidades diferentes. O suave mundo branco se sobrepondo ao aspérrimo mundo negro. Sorrisos brancos doces pontificando felicidades enquanto cruzam com  olhares negros opacos e amargos, que durante toda uma vida nunca foram bafejados pelo sopro da ambrosia.

O povo negro segue sua caminhada em seu triste fado de ter que lutar contra a ignorância dos sistemas excludentes e preconceituosos gerados pela alma branca. Enquanto os desejos e sofrimentos dos negros estiverem conectados às matrizes psicanalíticas e às construções sociais eurocêntricas, os negros estarão entregues à propria sorte como sempre estiveram. A alma branca não consgue sentir as dores da alma negra pois nunca esteve e nunca estará neste lugar difuso e solitário, desesperador e conturbado que é o espírito humano do negro de ancestralidade escravizada.

Os negros não têm outra alternativa a não ser seguir em frente na estrada da vida que está repleta de placas de sinalização proibindo todos os seus movimentos e opções. A estrada foi planejada para o povo branco, que nela desfila feliz com seus carrões espirituais, enquanto a massa negra segue também por ela, sofrendo a dureza da travessia, relegada ao acostamento com suas toscas  bicicletas existenciais.

sexta-feira, 17 de maio de 2024

O Eu Negro em Estilhaços

Eu negro quando me olho no espelho costumo não gostar do que vejo. Meu eu negro se reflete em incontáveis estilhaços, em uma grande entropia de cristais sediciosos, que representam o desmonte de minha estranha e inconstante psiquê.

Me eu negro quando se reflete no espelho, traz consigo uma carga imensa de sofrimentos ancestrais. Em cada estilhaço se refletem dores primordiais da alma negra, vilipendiada, violentada, flagelada e crucificada, após uma ultrajante e pérfida via crucis antropológica.

Quando meu eu negro defronta-se diante do espelho estilhaçado, tenta se reconhecer em meio a tantos eus disformes e assimétricos. São ‘não eus’ que se recusam a compor minha verdadeira alteridade física e emocional, como o instrumento desafinado em meio a uma maviosa orquestra sinfônica. Não consigo estabelecer um acordo com meu eu no espelho estilhaçado, porque além da recusa diante da impossibilidade normativa, há uma realidade distópica atuando em moto contínuo que não abre espaço para concertações humanas.

A triste saga do meu eu negro carrega consigo as cicatrizes de batalhas atávicas memoráveis. Traz o luto antropológico e a perversão do cativeiro que cruzou o mar salgado mil vezes com as ondas frias batendo em minha alma. Tantos porões desumanos no ventre dos navios negreiros, prenhes de dores e hostilidades. Tanto mar...tanto mal. Tanto sofrimento que durante séculos de indignidades humanas, formatou um sísifo existencial, que exaure minha mente nas infinitas e contínuas escaladas dos rochedos do existir.

Meu eu negro permanece no espelho em estilhaços, vive uma teogonia voltada para o lado humano, que passou a compreender o destino que sempre cumpriu, sempre preso a uma hermenêutica kantiana construída pelo proselitismo caucasiano, que insiste em apagar e destruir minha cosmovisão ancestral, multicultural e pluriétnica. 

Meu eu negro insiste em se descobrir humano, em um mundo alienígena de reflexos inumanos e hostis. A visão se torna turva diante de uma falsa deidade controladora de sociopatas eugênicos. O cansaço de conviver com esta metafísica canhestra me faz caminhar lento e claudicante, curvado pelo peso da vida por vielas tortuosas de um mundo sem vida e decadente. 

É assustador ver e não se reconhecer inteiramente como parte de um mundo que se expressa através da fenomenologia de Heidegger onde o "ser e tempo" mata e revive a metafísica, construindo e reconstruindo a maneira de ver o mundo negro sob o olhar negro.

Para qual mundo negro se deve seguir emancipado ou somente seguir com a manada, até o destino final? Apagar o passado soturno e varrer para debaixo do tapete os restolhos cínicos que os déspotas nos atiram. São migalhas humilhantes que apontam e ressignificam a miserabilidade que gradua as malditas diferenças fenotipicas do colorismo.Viver eternamente no porão da vida enquanto os capitalistas poderosos refestelam-se em suntuosos palácios às custas do nosso sofrimento. Viver em desgraça é a sina que os brancos racistas determinaram para o nosso povo negro.

Interrogações seculares que permanecem, me cobram através dos reflexos do espelho. Os estilhaços me atiçam em chamas, cobrando um modo de ação carbonário e revolucionário. Gritam em meus ouvidos, sangram meu corpo, esmagam os recônditos de minha alma. As interrogações são bárbaras e desumanas. Partem dos estilhaços do espelho como raios certeiros, tendo como alvos principais o coração e a alma negra. Penso em deixar tudo para depois sabendo me engananar, assim como as mães fazem ao dizer para o filho insistente ao pedir uma guloseima: “na volta a gente compra”. Sim, na volta talvez eu lute, na volta talvez eu sorria, na volta talvez me encontre.

O encontro metafísico do ser humano consigo mesmo, certamente ocorre através do desejo e da conquista da liberdade. A liberdade porém não é um constitutivo natural da alma humana, mas é também componente da realidade, da concretude do momento e do existir, em caminhar livre pelo mundo.

A liberdade é um estado que reside na dimensão do sentir, do desejo, da glória da conquista, da sublimação e do protagonismo dentro de um tempo histórico. Portanto a liberdade reside na existência de seres humanos históricos, protagonistas da história, e os negros brasileiros nunca foram convidados para dançarem nos bailes da vida para desfrutarem de uma revigorantecontradança.

Viver apartado da verdadeira liberdade, a liberdade dos vencedores, dos conquistadores, daqueles que escreveram e escrevem a história é uma carga sobre humana que preciso carregar. Minha voz não ecoa no mundo branco e continua sendo ouvida com descrença e desesperança no mundo negro. Certos brancos me ouvem com alguma curiosidade, como se estivessem participando de um experimento antropológico exótico. Esperam ansiosos que eu fale de samba, futebol e carnaval, enquanto ensaio Cheik Abra Diop, driblo  com Abdias do Nascimento e faço lindos gols através de Lélia Gonzalez e Patrice Lumumba.

As dimensões permitidas que nos legaram, enquanto seres humanos ávidos e protagonistas por visibilidade, ficaram restritas ao samba e ao futebol, aos tambores e à bola. Somos os espectros civilizatórios de um continente bárbaro, segundo eles. Somos a escumalha que empreteceu a população brasileira para horror dos eugenista tupiniquins. Somos aqueles e aquelas que são confinados nas senzalas contemporâneas que são os quartinhos de empregada, onde purgamos nossa subalternidade entre quatro paredes sufocantes sem janelas.

A branquitude adora quando bradamos que o negro é lindo, que façamos gestos que significam o poder negro. Nos apoiam em todas essas coisas e depois vão ao concerto erudito nos teatros municipais da vida e nos entregam os utensílios necessários para que lavemos suas latrinas imundas.

Obviamente que estamos avançando. Eu mesmo aqui ousando escrever, me desafiando no mundo das letras, pequeno e pobre escritor negro, tentando viver a liberdade que observo nas entrelinhas do papel, pelas tímidas frestas  que impulsionam meus desejos no desafio das páginas em branco. 

Mas quanto mais escrevo mais me desespero. Quanto mais escrevo mais me descubro e redescubro minha localização errante na vida, que grita em meu âmago que devo ser forte, que devo ser livre, pois somente assim poderei ajudar os meus irmãos e irmãs que vivem no mundo da ilusão ou na ilusão do mundo. Esses irmãos e irmãs são as pessoas mais importantes para mim, pois sem eles nas trincheiras ao meu lado, minha luta em prol da liberdade verdadeira não tem o menor sentido.

Os negros escravizados no Brasil eram proibidos de usar sapatos. Podiam até usar roupas vistosas como era comum no caso dos escravos de ganho e nos serviçais da casa grande. Porém sempre descalços, para sentir a aspereza dos caminhos, para viver sabendo ser inferiores, para compreenderem que eram os derrotados da Terra. Viver uma vida inteira descalços era a maior demonstração de humilhação e ausência de liberdade possível. Paulo da Portela em meados do século 20 tornou famosa uma metáfora que dizia que o negro deveria se esmerar ao se vestir e estar sempre 'com o pescoço e os pés ocupados', utilizando sempre que possível gravatas e sapatos. Via nesses acessórios um sinal de emancipação civilizatória no mundo eurocêntrico, de respeitabilidade e liberdade para a população negra.

O espelho hoje apresenta alguns estilhaços virtuosos. A cada dia que passa mais jovens negros adentram ao ensino superior, modelando lentamente uma sociedade do futuro mais heterogênea e democrática. São conquistas que além do valor e do esforço individual do ser negro, requisitaram duríssimas batalhas ao movimento negro em confrontos memoráveis contra o racismo estrutural brasileiro. Nossas conquistam são lentas, pois apesar da urgência de nossas emergências, somos submetidos a um judiciário branco, machista e racista. Nosso judiciário é a tal praia onde os negros nadam...nadam e morrem na praia. O Congresso Nacional possui o mesmo perfil eurocêntrico e excludente do judiciário. O racismo estrutural segue transformando a vida da população negra em um verdadeiro inferno, ao legislar continuamente contra leis já aprovadas,  em súmulas que estabelecem direitos através de algumas poucas ações afirmativas, em decretos que propõem mecanismos de correções de diversas assimetrias raciais históricas.

O resumo da existência negra no Brasil está contido na ausência de liberdade. Na verdade é uma retroexistência lastreada pela xenoafetividade endêmica que remonta aos tempos de cativeiro do período colonial. Nossa imagem no espelho nos pede socorro, pois nossa velocidade de avanço social é menor que o avanço do racismo em recrudescimento. Precisamos pensar ativamente na verdadeira liberdade, na honestidade epistemológica do nosso existir sem as cercas ladeadas da branquitude. Precisamos caminhar na direção do futuro sem temer o pôr de sol esmaecido que o racismo estrutural sempre nos apresentou como um horizonte lindo, fulgurante e libertador.

sábado, 11 de maio de 2024

A criação do mundo, do Orum do Samba e da magia do gurufim na tradição iorubá.

No início tudo era um grande mistério. Havia um universo frio, gigantesco, insondável e comandado por Olodumaré que certo dia convocou Obatalá e lhe entregou o saco da criação, determinando com firmeza a tarefa de construção do Aiyê, um mundo rochoso e cheio de oceanos, que a partir de então abrigaria os seres mortais, animais, humanos, flora e toda a vida que pudesse nele ser habitada.

Obatalá ficou feliz com a missão e no afã de agradar Olodumaré, partiu para sua nobre missão, sem porém fazer as oferendas devidas e necessárias a Exú, o sagrado comunicador entre os dois mundos, o Orum e o mundo dos mortais. Exú ofendido e desrespeitado em seus ofícios, se vingou do emissário divino, produzindo um encantamento que fez Obatalá sentir uma sede incontrolável. Obatalá então, muito sedento, furou o tronco de um dendezeiro com seu paxorô, o cajado de estanho que o acompanha, extraindo da árvore bastante vinho de palma, que bebeu avidamente. Por conta desse excesso, provocado pelo feituço, se embriagou desbragadamente, adormecendo de imediato e de forma profunda.

Oduduwa pegou o saco da criação confiado a Obatalá e denunciou a Olodumaré a grande irresponsabilidade de seu emissário. O próprio Oduduwa foi incumbido então por Olodumaré, ele próprio, de criar o Aiyê, no ainda inexistente mundo que abrigaria os humanos. O processo de criação teve início e onde havia água ele despejou terra marrom que tirava do saco da criação. Oduduwa retirou do saco da criação uma concha cheia de areia, para logo após soltar uma galinha de pés de cinco dedos e uma pomba, que imediatamente começaram a ciscar a areia para fora da concha, criando o que são hoje os continentes, com seus mais variados tipos de relevos. Enquanto isso Obatalá despertava de seu sono profundo provocado pela vingança de Exú, se desculpando envergonhado com Olodumaré. Como prêmio de consolação, após ser perdoado, foi incumbido por Olodumaré de criar a espécie humana, modelando os seres humanos a partir do barro, fazendo com isso a ocupação do Aiyê com seus primeiros habitantes. Olodumaré determinou que cada ser humano criado deveria ser único, garantindo assim que jamais haveria um ser humano igual ao outro. Além das formas físicas ele também transferiria aos humanos que criasse os diversos aspectos de seu próprio caráter. Assim o mundo foi criado e dessa maneira os animais e a espécie humana espalharam-se pelo mundo a partir das terras dos reinos de Ifé e de Oyá.

O velho griot conta que um dia um povo de pele branca chegou vindo do outro lado do mar, com seus barcos gigantes e portando um livro chamado Bíblia Sagrada, o livro que diziam ser a salvação da humanidade, que contava a história sobre uma terra onde havia um grande e único deus branco, criador do céu e da terra, que entregou seu filho para ser crucificado em um madeiro em forma de cruz, com o propósito de salvar a humanidade de seus pecados  Eles, os brancos, tinham o livro enquanto os negros possuíam a terra. Os negros então fecharam seus olhos para rezar no livro conforme lhe ensinaram e louvar o deus branco. Quando abriram os olhos depois de tanto rezar, os brancos tinham se tornado os donos das terras e os negros ficaram com o livro.

Foram séculos de sofrimentos em que o povo negro passou por terríveis martírios nas mãos dos brancos. Guerras, perda das terras, apagamento da cosmovisão do sagrado africano e a famigerada escravidão mercantil. Esse foi o pérfido legado deixado pelo homem branco nas terras do povo negro, o Continente Africano.

Trazido para o Brasil como escravizado, o povo negro perdeu tudo que lhe era mais sagrado: sua liberdade, suas culturas, suas crenças e até suas línguas foram proibidas pelo branco escravista. Mas no silêncio da senzala, nas festas dos quilombos e na rotina extenuante do eito de trabalho, passava silenciosamente todos os fundamentos sagrados transmitidos pelos orixás desde o início dos tempos.

Os navios trouxeram de África junto com os escravizados os tambores africanos, responsáveis pela boa comunicação dos trabalhos do Candomblé entre os dois mundos. Os tambores pariram o samba, ritmo profano que produz a magia do encantamento entre corpo, alma e o universo metafísico, transformando lágrimas de dor em diamantes iluminados e cintilantes, tristezas em alegrias, desamores em amores e felicidades. Esse samba que junto com o futebol, formam uma riquíssima dupla no mosaico da cultura nacional, segue em frente empunhando o estandarte de resistência da cultura brasileira diante dos ataques alienígenas anódinos e sem vida.

O samba esse menino travesso, malandreado, veio no embalo do mar do sem fim, no sacolejo dos vapores de Cachoeira, do Recôncavo Baiano, de Santo Amaro da Purificação, na dança da umbigada angolana chamada semba.  Esse samba do negro retinto, do pé rachado, dos sem eira nem beira, quem diria, ganhou o mundo adentrando até nos salões da elite empertigada.

João Gilberto, um dos pais da Bossa Nova, cantava que o samba havia nascido na Bahia. Pode ser, pois a Bahia talvez seja a maior parideira da riqueza cultural brasileira. De Salvador ao Recôncavo Baiano, de Ilhéus a Cachoeira, a Bahia de todos os deuses sempre nos brindou com verdadeiras maravilhas culturais, como o Samba de Roda, a Tropicália, o Maracatu, o Cinema Novo, a Timbalada, os Blocos Afros, os famosos ilês de axé, além de grandes personalidades de nossa história e do país.

O Candomblé baiano foi a maior fonte de inspiração e contribuição para a formação da nossa brasilidade. Os tambores Rum, Pi e Lê ditam e comandam o ritmo primordial da sagrada prática iorubana/angolana/brasileira. Seus elementos significantes foram os pilares antropológicos que sustentaram a força da matriz africana em seu entranhamento inapelável e definitivo na gênese da matriz indo-afro-ibérica, que constitutiva até então do delicado tule da identidade brasileira, durante os primórdios do período colonial.

A prática da religião africana nos territórios colonizados era realizada de maneira bastante discreta, visando burlar o esforço da empresa colonial e da Companhia de Jesus, voltada para a conversão ao cristianismo dos africanos sequestrados em África e escravizados no Brasil. Nos encontros clandestinos nas matas, ou nos sussurros de cumplicidade no silêncio da senzala, o exercício da religião era passado através dos tempos, como um oráculo primordial, tornando-se guardião imemorial do legado sagrado dos territórios negros do Daomé, de Oyá, Sudão e do Benin, entre iorubás, fons e bantus.

No meio desse turbilhão cultural fantástico, por sua força atávica, driblando a adversidade histórica, nosso samba foi dando seus primeiros passos, bem de mansinho, mamando nas tetas generosas das iaôs, nos colos acolhedores das Ialaorixás, nas carícias de ogãs e alabês, na feijoada do quintal de preto, nos gurufins nós territórios negros, nas comidas de santo e fundamentalmente no rufar dos tambores dos terreiros.

Os vapores saíam da Bahia de Todos os Santos, do Recôncavo e do Cais de Salvador para o Rio de Janeiro, trazendo em seu ventre a prenhez da mãe África, o jongo, o samba, a culinária, a capoeira, as ervas santas, o poder da adivinhação das contas do Ifá, as danças profanas e o canto mágico, que transformaram para sempre a cultura brasileira.

O babalaô africano conhecido como Bamboxé foi o primeiro a abrir uma casa de santo no Rio de Janeiro. Com o advento da abolição da escravatura ele retornou para a África compondo o contingente dos ‘Agudás’, que quer dizer em dialeto nagô, aqueles que retornaram. Depois da partida de Bamboxé a casa de santo ficou por conta do Babá João Alabá, localizada na região da Pequena África, cujas filhas de santo mudaram para sempre o panorama da vida cultural carioca e do país. Entre suas filhas de santo mais famosas podemos citar Tia Amélia, mãe de Donga, sambista que gravou o primeiro samba no país, chamado de ‘Pelo Telefone’. Tia Bebiana, organizadora dos desfiles de blocos e ranchos no Largo de São Domingo, Tia Perciliana, mãe de João da Baiana e Tia Ciata a primeira dama do samba, a parideira do samba carioca.

Tia Ciata é a grande referência do samba no Rio de Janeiro. Os sambistas a consideram a grande matriarca do samba carioca. Sua casa na Pequena África, no centro da cidade, era o local de encontro dos autênticos e pioneiros sambistas do Rio de Janeiro, o berço do samba carioca. Sua casa era frequentada por artistas e músicos de boa cepa como Ataulfo Alves, Heitor dos Prazeres, Paulo da Portela, Cartola, Carlos Cachaça, João da Gente, Alvaiade, Aniceto, Euclides, Ventura, Natal da Portela, Zé com Fome, Silas de Oliveira, Pixinguinha, Ismael, Bid, Marçal e a turma do Estácio. A turma do Estácio foi quem mudou o ritmo do samba para a forma que é tocado até hoje nas baterias das escolas de samba. Antes o samba que se dançava era um ritmo amaxixado, como podemos constatar no primeiro samba gravado por Donga, o famoso “Pelo Telefone”. Muitos sambistas torcem o nariz para esse samba, dizendo que o mesmo é um maxixe. Tia Ciata além de grande festeira, era uma Mãe de Santo respeitada pelo povo do santo no Centro do Rio de Janeiro. Sua fama correu chão, após ter curado com suas ervas e unguentos uma ferida renitente na perna do presidente do Brasil à época, Wenceslau Brás. Por esse motivo, por ordem do presidente, a polícia ficou proibida de invadir e terminar com a reunião de sambistas que aconteciano terreiro de Tia Ciata.

Nesse ambiente mágico onde o metafísico e o cultural se acasalavam sob as bençãos dos Orixás, o samba carioca deu seus primeiros passos. Acontecia logo após o encerramento das celebrações e sessões dos ofícios sagrados, quando havia então uma pausa necessária para a organização do terreiro para a prática dos festejos. 

Os frequentadores faziam um intervalo de descanso para logo depois fazerem a conversão dos atabaques, antes comprometidos com o sagrado que entregues ao profano, eram surrados inclementes durante toda a noite por dedicados ogãs e alabês, cumprindo seus relevantes papéis de manter a massa em alegria, quando de suas couradas rugiam maxixes, sambas e polcas até o dia raiar. 

Além do prazer de usufruir da própria riqueza musical e da alegria reinante, naquela época não havia transportes durante a madrugada que levassem o pessoal de volta para casa. Os frequentadores dos terreiros então aproveitavam que deveriam aguardar o dia amanhecer para fazer a festa, cantar, dançar e se fartar da “água que passarinho não bebe” ou “aquela que matou o guarda”. A casa de Tia Ciata assistiu as transformações da música e do samba.  A turma do Estácio, por exemplo, ensaiava seus sambas defronte a uma escola de formação de normalistas no Largo do Estácio, nas franjas da Pequena África. Daí saiu a alcunha de “escola de samba”, que é utilizada até os dias atuais.

Noites memoráveis foram vividas na casa da Tia Ciata. João da Baiana, seu sobrinho, era o principal animador do arrasta pé. Tantos outros grandes sambistas passaram por aquele terreiro. Podemos lembrar de Zé Espinguela, o Pai Olufá do candomblé da Mangueira. Esse mesmo Zé Espinguela que junto com Paulo da Portela realizaram o primeiro encontro de escolas de samba no Rio de Janeiro, no ano de1929 no bairro do Engenho de Dentro, evento histórico que foi o embrião dos atuais desfiles de escolas de samba que acontecem em todo o país.

Todos esses sambistas pioneiros partiram para o Orum, nos enchendo de saudades que marejam nossos olhos. Estão todos reunidos no Orum, ambiente sagrado e celestial, onde as dores do mundo dos mortais não existem mais.

Sambista de verdade gosta mesmo é de um ajuntamento, de burburinho, de gente rindo escancarado, gent falando alto, de samba bom, felicidade de sambar com seus corpos suados e muita batucada. Certamente que um dia chamaram o Obatalá, orixá velha–guarda, conhecido como Oxalufam, que traz consigo seu paxorô, sempre vestido de branco, para uma resenha respeitosa no intuito de poderem criar um espaço restrito aos sambistas. Obatalá como todos sabem é o orixá que foi encarregado por Olodumaré para realizar o milagre da criação, aquele do saco da criação, que através de Ododuwa deu origem ao mundo. Costuma ser muito generoso sendo um orixá bom de entendimento. .

Com a resenha garantida, convocaram Paulo da Portela para desenrolar a ideia com  poderoso orixá. Tia Ciata foi junto, pois era muito considerada no Orum por conta de suas oferendas luxuosas que sempre agradaram muito aos orixás que faziam questão de baixar em seu terreiro. Obatalá ficava muito feliz com a canjica, acaçá e mugunzá, seus petiscos preferidos, regados a um bom vinho branco e doces que Tia Ciata lhe oferecia, além de velas brancas, frutas, coco verde, mel e flores.

Um pedido dela contava muito no Orum e Obatalá entendeu que o pedido era muito justo. Em sua sabedoria compreendeu a importância da solicitação, alertando porém que gostaria de consultar outros orixás antes da decisão.

Foi uma correria só, pois raramente os orixás entravam em concílio e além disso todos deveriam estar contentes com os sambistas para votarem a favor do espaço que aqueles pretos barulhentos estavam reivindicando a criar. 

Eram muitas as obrigações a serem realizadas. Para Oxum velas brancas, azuis ou amarelas. Flores e frutos de todos os tipos, essências de rosas, champanhe e licor de cereja. Para Oxóssi velas brancas, verdes ou rosas, mas também adora que lhe ofereçam cerveja, vinho doce e licor de caju, bem como flores do campo e frutas. Xangô não pode ser contrariado e todos se empenharam em produzir um padê especial com velas brancas, vermelhas ou marrons. Flores de todas as espécies, cerveja escura, vinho doce e licor de ambrosia. Obaluaiê o senhor da evolução é agradado com ofertas de velas brancas, vinho rosé, água pura, coco fatiado com mel e pipocas, rosas, margaridas e crisântemos.  O guerreiro Ogum gosta de velas brancas, azuis ou vermelhas, cerveja, vinho licoroso e cravos. Iemanjá A dona das águas fica feliz com velas brancas, azuis ou rosas, champanhe, calda de ameixa ou pêssego, manjar, arroz-doce, melão e rosas brancas. Iansã senhora das emoções intensas, recebe com prazer velas brancas, amarelas e vermelhas. Também gosta de champanhe branca, licor de menta, aniz ou cerejas, rosas e palmas amarelas. Nanã regente da maturidade e da razão humana muito se satisfaz com velas brancas, roxas e rosas, champanhe, calda de ameixa ou figo, uva, melão, melancia, figo ou ameixa. Omulu orixá que rege nossa passagem para o mundo espiritual deve ser agradado com velas brancas, vermelhas ou pretas, água pura, coco, vinho doce, mel, pipoca e sal grosso.

A turma de sambistas se dividiu para correr atrás e desenrolar todas as oferendas necessária para agradar aos orixás. A coordenação da missão ficou por conta de Tia Perciliana que sempre foi respeitada pelas entidades do Orum. Do jeito que era organizado, Paulo da Portela apresentou um projeto para o grupo e cada um saiu em sua missão de conseguir tudo que fosse necessário para agradar aos orixás que iam participar do raríssimo concílio.

No dia combinados estavam todos lá gloriosos. Toodos os deuses assentados e esplendorosos em seus imensos tronos, imponentes e compenetrados. Alguns impacientes pois tinham muitas demandas para resolver no estelífero e na Terra. Recebiam pedidos de seus filhos mais diletos como promover a justiça, evitar acidentes e consertar casamentos. Outros cuidar de enfermos, evitar guerras, proteger viagens entre tantas outras obrigações. Xangô não estava muito satisfeito com a situação pois achava um absurdo o concílio se reunir para garantir um espaço exclusivo para os sambistas no Orum. A todo momento olhava de lado para Nanã Buruquê a senhora dos pântanos que em seu imensurável poder se mantinha impassível, aguardando o momento das falas.

Obatalá abriu o concílio colocando a necessidade da reunião para julgar o pedido, pois os solicitantes sempre foram muito dedicados aos trabalhos espirituais na Terra, e por conseguinte durante a vida terrena fizeram generosas e verdadeiras oferendas para todos os orixás. Obatalá lembrou a Xangô filho de Orumilá, aquele que altera o dia morte, dono do trovão, conhecedor dos caminhos do poder secular, governador da justiça e senhor do castelo de cem colunas de bronze, dos famosos amalás que Ciata lhe preparava com muito carinho, escolhendo os melhores quiabos pensando na satisfação de seu dono. Xangô grunhiu qualquer coisa mas realmente não estava muito satisfeito com toda a situação. Sua esposa Oxum sentou-se a seu lado e lhe acariciou os cabelos revoltos. Aos poucos a raiva foi dando lugar a um semblante mais tranquilo e o concílio seguiu seu curso.

Oxum de cara amarrada não gostava quando não falavam de Carmem do Xibuco, sua filha dileta do terreiro de João Alabá que assumiu a liderança religiosa da Pequena África com o retorno para a África do agudá Bamboxé. Tia Carmem era rezadeira como Tia Ciata e depois dos 21 anos de feita no santo foi introduzida nos mistérios das Yami Osorongá, dos pássaros da madrugada. Como Tia Carmem não estava no Orum do Samba, Oxum não apoiaria de jeito nenhum a iniciativa que deixava de fora aquela filha que cuidara tão bem de seus abians e iaôs, dos quelês e deloguns daqueles que trançavam os mais lindos mocans de palha da costa e fiavam fios de contas douradas ou de âmbar. Oxum ficava era feliz vendo seus filhos depois da obrigação de 7 anos ver seus egbomis ganharem as novas contas como Humjebe Lagdbá, Brajá, Âbar e Mojoló. Tanta coisa bonita, tanto xirê dourado, tanta entrega de deká, tanta puxada de muzenza, onde já se viu tirar a filha Carmem do Xibuco que veio de Amaralina, desse tal Orum do Samba que nem se sabe direito seus fundamentos, ainda mais que Carmem era rezadeira das boas e cantadeira junto Tia Bebiana e Tia Amélia nos arrasta-pés mais famosos da Pequena África.

Oxum quando diz não a terra treme, as águas se levantam e os deuses e deusas temem sua ira e a ira dos pássaros da noite, a fúria incomensurável do poder devastador das Três Senhoras. Oxum, a segunda esposa de Xangô, dona do Jogo de Búzios, da adivinhação das contas do Ifá, da sabedoria e do poder, não estava gostando nem um pouco dessa novidade de samba no Orum. Iemanjá senhora da fertilidade e protetora das crianças não entendia bem o que aquele povo queria fazer no Orum, já que tudo estava em seu lugar, sem alteração há milhares de anos. Oxum acompanhou Iemanjá na interrogação e Ogun pediu a palavra, primeiro pedindo assentimento a Omulu que estava sentado ao seu lado. Ogum fez um longo discurso em defesa dos sambistas, pois sempre protegia seus filhos perseguidos e prejudicados pelas leis injustas dos homens brancos na Terra. Lembrou que nos momentos mais difíceis da perseguição ao culto aos orixás esses sambistas nunca renegaram sua fé. Estiveram firmes nos trabalhos de terreiro, com suas oferendas e seus okiris, desenvolvendo novas iaôs com amor e dedicação. Lembrou da dinheirama que gastaram para montar os padês e tantas outras oferendas, as flores, as bebidas finas, o melhor de tudo sempre. Cuidaram de suas casas, de seus barracões com amor e carinho. Desenvolveram centenas de filhos e filhas de santo, prestaram caridade durante toda a vida e agora no Orum só querem um pequeno espaço na imensidão para se reunirem e brincar sem preocupação, em paz, como nunca aconteceu na vida terrena. Nanã a senhora das águas paradas, pediu a palavra e lentamente se dirigiu para o centro do círculo sagrado com seu ibiri. O fogo lhe iluminava as faces antigas e graves. Rompeu o silêncio dizendo em tom grave que nunca se deve abandonar os seus. Aqueles bravos sambistas sempre cumpriram com louvor e dedicação aos orixás na vida terrena e agora podem sim, ter seu espaço para ter um pouco de alegria, depois de uma vida tão sofrida. Em um silêncio absoluto Nanã Buruquê voltou para seu assento e olhou para Obatalá como que perguntando o que estava faltando para atender o pedido dos nossos filhos dileto. Obatalá então colocou o pedido em votação e todos aprovaram por unanimidade a criação do Orum do Samba.

Desfeito o concílio com o anúncio da aprovação, os orixás partiram em diferentes direções do universo estelífero, cavalgando raios de luzes e em fantásticas tempestades solares e em jatos poderosíssimos dos pulsares. Um cenário indescritível de poder e glória que iluminou as trevas gélidas do universo. Obaluaê transmitiu as decisões e salvaguardas do concílio, onde somente poderiam participar do Orum do samba os sambistas que na vida terrena tiverem tido compromisso com os orixás, além de bom comportamento e respeito ao sagrado. Determinou também que não fosse interrompida de forma alguma no mundo material a cultura do gurufim que ele particularmente muito apreciava. Obaluaê disse que sambista que se preza não tem velório, tem mesmo é gurufim. Velório é coisa de branco, de tristeza dos povos do gelo.

O gurufim é um ritual de celebração dos povos de origem africana, que celebram em corpo presente a passagem dos membros de suas comunidades para o Orum. O termo “Gurufim”, segundo Luis da Câmara Cascudo, é uma corruptela de ‘golfinho’, cetáceo que na cultura do Egito Antigo, conduz ou faz a passagem dos espíritos dos que morrem para uma outra vida, para o mundo dos mortos. Luis Antônio Simas diz que aqui no Brasil é comum na religiosidade dos bantos e iorubás a cerimônia do axexê, que é um rito, uma comemoração, uma festa para a morte. Simas explica que a crendice popular diz que a morte nunca leva somente uma pessoa, na verdade gosta de levar três. “Então o povo canta, bebe e brinca para enganar a morte”. É uma malandragem, para que a morte não perceba que tem um morto sendo velado naquele local. Então a morte ao observar a festa, não percebe o engodo, vai embora sem levar outras pessoas.

O bairro de Madureira no Rio de Janeiro fez o maior gurufim que se tem notícia. Foi o evento que marcou a passagem do sambista Paulo da Portela, fundador da escola de samba cujo nome incorporou. As exéquias aconteceram no ano de 1949 e infelizmente não puderam ser realizadas na sede da escola de samba, pois a viúva não permitiu que o corpo fosse velado na quadra da agremiação por conta de quizilas entre a escola e seu falecido marido, fundador da instituição, coisas do mundo do samba. A imprensa da época noticiou que 15 mil pessoas lotaram as ruas de Madureira para acompanhar a passagem do cortejo fúnebre.

No caso de Paulo da Portela o gurufim foi na rua mesmo. Enquanto o comércio cerrava as portas em respeito e homenagem ao ilustre líder sambista, o povo cantava e bebia enquanto caminhava acompanhando o cortejo. Muita gente ganhou um bom dinheiro no jogo do bicho ao apostar no número da sepultura de Paulo da Portela, que por mais incrível que possa parecer, deu a milhar na cabeça. Mais gurufim que isto impossível, a homenagem ao morto ser encerrada com o milhar da sepultura dando na cabeça no jogo do bicho.

O memorável sambista Padeirinho da Mangueira também se referiu ao gurufim em um de seus sambas, especificamente o “Linguagem do Morro”: “Briga de uns e outros/Dizem que é burburim/Velório no morro é gurufim”.

Dona Neuma, filha de Saturnino e mãe de Guesinha e Chininha, sempre foi a grande dama do samba de Mangueira. Neuma narrava que também fazia parte do gurufim algumas brincadeiras: “A gente tirava a porta da sala principal e deitava sobre os caixotes. Colocava o morto ali em cima da porta, rodeado de gente sentada em bancos. Quando a cachaça comia solta, nego dormia e os outros pintavam bigodes de gato na cara dele com uma rolha queimada”

Luiz Antônio Simas diz que essas brincadeiras costumavam ter o mar e os peixes como tema, pois os golfinhos carregam até hoje a tradição do Egito Antigo de transportar as pessoas para outros mundos. Em uma delas o capitão perguntava: “Gurufim veio?” e em coro todos respondiam: “não, não veio” e perguntava novamente: “Baleia veio? “Não, não veio” respondiam, e então quem veio? E o grupo apontando para alguém: “olha a sardinha aqui”, quando então cada um era apelidado pelo nome de um animal marinho.  A pessoa que era a sardinha então tinha que responder, e passar adiante. Quem não respondesse ao chamado, tinha que pagar uma prenda, como levar um tapa na mão, conhecido como “bolo”, explica Simas.

 “Velório no Morro” (Raul Marques e Tancredo Silva)

Lá no morro quando morre um sambista
É um dia de festa e ninguém protesta
As águas rolam a noite inteira
Pois sem brincadeira o velório não presta
Tem também um gurufim
Que no fim acaba sempre em sururu
Mas é gozado pra chuchu (…)

(...) Já encomendaram ao anjo Gabriel 
Um novo céu para dar abrigo a sua gente 
Que morre assim constantemente, de repente.

 

“Gurufim” (Cláudio Camunguelo)

Eu vou fingir que morri
Pra ver quem vai chorar por mim
E quem vai ficar gargalhando no meu gurufim
Quem vai beber minha cachaça
E tomar do meu café
E quem vai ficar paquerando a minha mulher

Quando o caixão chegar
Eu me levanto da mesa
E vou logo apagar
As quarto velas acesas
E vou dizer pra minha mãe
Não chora
Amigo a gente vê é nessa hora

A morte está presente no cotidiano dos poetas do samba. Nelson Cavaquinho cantava: “...Depois que eu me chamar saudade/Não preciso de vaidade/Quero preces e nada mais”, e “Quando eu passo/Perto das flores/Quase que elas dizem assim: Vai que amanhã enfeitaremos o seu fim”.

Concluindo as tratativas do Orum do samba, Obaluaê ficou muito satisfeito com a manutenção do gurufim no mundo dos mortais e se retirou com Nanã Buruquê para seus afazeres no Orum.

Foi decretado pelo concílio e por todos os orixás em seus assentos de baobá de 5 mil anos marchetados e incrustados de diamantes e outras pedras preciosas, que Paulo da Portela, Zé Espinguela, Dona Neuma e Clementina de Jesus seriam os responsáveis pela coordenação do espaço. Paulo da Portela que sempre foi muito organizado, rapidamente escreveu um estatuto que foi submetido à aprovação pelo coletivo. Chico Porrão da Mangueira redigiu o Regimento Interno e finalmente o funcionamento do espaço foi garantido.

No Orum do Samba a coisa acontece de maneira diferente. Os sambistas ficam de boas nas nuvens, tirando uns acordes aqui outros ali. Pedindo orientações a São Cartola e realizando exercícios vocais com Dona Ivone Lara. O regulamento não é lá muito rigoroso e sempre funciona a política das comadres e dos compadres. Noel Rosa sempre fuma escondido um cigarrinho da marca Celestial e Geraldo Pereira dá um jeito de tomar “umas e outras” com Beto Sem Braço. Vivem felizes em infinitas resenhas entre Mijinha, Preto Rico, Padeirinho, Zé Criolinho e Geraldo Babão. Dona Neuma da Mangueira organiza tudo e é quem manda de verdade no Céu dos Sambistas junto com Tia Ciata. Paga esporro geral pra todo mundo, enquadra qualquer vacilo quando é necessário e trabalha sempre na parceria com Dona Zica, mulher de Cartola, que também tem grande poder e dá uma moral na feijoada de sábado que o Natal da Portela adora. O medo do pecado da gula passa longe do Orum do Samba. Lá rola Tripa Lombeira, Barriga de Porco, Sarapatel, Rabada, Mocotó, Buchada de Bode e como ninguém é de ferro sempre surge um prato leve como Angu à Baiana com chouriço para abrir o apetite.

No Orum do Samba não há como ter tristeza. Isso é com os ‘Zé Ruela’ que ficaram lá embaixo reclamando da vida. Lá em cima não tem miséria, vida eterna é bom demais, ninguém anda “duro” pois não precisam de dinheiro, tudo corre suave, nos conformes, chapéu panamá, sapato bicolor, camisa de seda, mulheres no salto, cabelos nos trinques, não tem como não sair samba bom.

Os sambas elaborados são os mais lindos já compostos.  Depois que os sambas ficam prontos, eles pedem aos Exús para descerem até a Terra e colocarem os sambas nas cabeças dos compositores e compositoras. Mas é tudo samba danado de bom! Se for um Exú mais paciente ele entrega o samba durante o sono do compositor. Se for um daqueles sagazes, faz como naquele samba que diz que a inspiração é como uma luz que chega de repente, com a rapidez de uma estrela cadente e zumpt! Enfia o samba na cabeça do poeta, que tem que se arvorar em encontrar caneta e papel nos lugares mais esquisitos e inimagináveis da vida, para poder escrever o samba que chegou inesperado, para não esquecer. Assim procediam Almir Guineto, Luiz Carlos da Vila, Tantinho, Canuto, Casquinha, Alberto Lonato, Xangô da Mangueira, Ventura, Gradim, Zé com Fome, Zé Espinguela, Casquinha, David Correia, Candeia, Mario Lago, e Waldir 59, além do povo guerreiro da Serrinha, povo de Dona Eulália, Vó Joana e Tia Maria do Jongo, Roberto Ribeiro, Darcy do Jongo, Mestre Fuleiro, Mano Elói, Silas de Oliveira, Manacéia, Mano Décio e Molequinho.

Tá uma alegria danada na turma do Cacique de Ramos que está no Orum do Samba. Oxóssi deixou plantar uma tamarineira e nela se reúnem Beth Carvalho, Ubirany, Guilherme de Brito e o povo das redondezas da Zona da Leopoldina como Luisinho Drummond o eterno presidente da Imperatriz. O pessoal tá numa animação só. O samba na Terra está meio triste, acabaram de subir Wilson das Neves, Nelson Sargento, Hélio Turco da Mangueira, Monarco da Portela e Djalma Sabiá do Salgueiro. Mas no Orum do Samba foi uma festa só, pois prepararam uma festa interminável para recebê-los. Todos se perfilaram em trajes de gala, com as bandeiras e estandartes das agremiações. Até o Bide do Estácio se empenhou no trampo, afinando com cuidado o surdão de primeira que marcou o momento solene da chegada. Só o Jamelão que estava reclamando com o Toco da Mocidade sobre a falação do povo, mas ele além de genial é sempre ranzinza mesmo.Mas foi tudo muito bonito, esmerado, preparado com carinho pela Dodô da Portela que acabou de ralhar com o Delegado que estava conversando com João Nogueira sobre samba e futebol. Todos receberam os novos membros com toda a pompa que existe no Orum. A cerimônia foi linda com todos e todas engalanados em seus trajes, sob as bênçãos do Comandante em Chefe do Orum do Samba, Paulo da Portela.

Mas o Orum do Samba tem seus regulamentos. Se chegar e disser que é sambista tem que provar que é bom malandro para Ismael e Wilson Batista. Vai ter que batucar para o Mestre André da Mocidade e Alcir do Prato, cantar para o Cartola e Nelson Cavaquinho, sambar para Gargalhada e Delegado e beber com Carlos Cachaça. Se for aprovado receberá um crachá para viver eternamente feliz e poder frequentar a Kizomba, a festa da Vila Isabel do Orum comandada por Noel.

A riqueza da cosmovisão africana diante da morte é um grande exemplo da capacidade de construção e reconstrução de um universo onírico maravilhoso, onde a realidade se funde com a metafísica e as dores são transformadas em alegrias e saudades. Esse poder de alquimia transcendental é próprio de um povo que elege a alegria como instituto basilar da vida, que através do encantamento existencial, ameniza suas dores e aflições oriundas do cotidiano do povo preto, inclusive enganando a morte.