quarta-feira, 29 de maio de 2024
A Beleza Verdadeira
Deu Branco no Samba
segunda-feira, 27 de maio de 2024
A Negritude Brasileira
domingo, 19 de maio de 2024
Psicanálise, desejos e sofrimentos do povo negro
São abordagens instigantes que desafiam nossas reflexões de acordo com Epicuro, o "Filosofo do Jardim", que afirmava a necessidade da compreensão da Filosofia para curar o ser humano das dores da alma, assim como a Medicina traz a cura para quase todos os males do corpo físico. Epicuro também aborda em sua extensa obra a dialética entre desejos e sofrimentos, criando uma espécie de doutrina que foi citada inclusive por Karl Marx como forma de edificação humana.
Na entrada do Oráculo de Delfos, localizado na Grécia Antiga, prontifica uma citação conhecida que diz: “Conhece-te ti mesmo”. A expressão lastreou o pensamento socrático na estruturação e consolidação da filosofia ocidental, seguida por Platão e depois principalmente por Aristóteles.
Conhecer a si mesmo é um desafio instigante que está contido em nossa personalidade, onde o eixo axial está profundamente ligado aos nossos desejos e sofrimentos.
O ser humano negro contém em seu ethos constitutivo um mosaico extremo e radicalizado de desejos e sofrimentos. Seus desejos são justos, como justos são todos os desejos contidos no espectro de regulações das internalidades humanas. Porém, seus sofrimentos são terríveis e produzem sussurros assustadores em sua existência. A obra de Franz Fanon, psiquiatra martiniano e líder da luta anti colonial africana, apresenta um panorama perturbador acerca dos recônditos do âmago da alma negra. O povo negro foi vítima inconteste de incontáveis perversidades e abusos mentais cometidas pelo colonizador branco europeu durante séculos, que geraram seres oprimidos e esvaziados de suas personas.
O desejo do negro é diferente do desejo do branco. O desejo do negro é um sonho, uma quimera, enquanto que os desejos dos brancos são metas factíveis, que podem ser alcançadas se houver um planejamento de vida eficiente dentro da lógica estrutural do capitalismo.
Para o negro sonhar e desejar, significa acalentar uma panaceia, ou seja, viver tentando alcançar uma possibilidade muito distante de sua realidade devido ao seu componente étnico. O mais cruel é que além de ser impossível para a grande maioria negra, ela geralmente não sabe que é impossível, pois foi convencida do contrário e de maneira bastante eficiente pelas trucagens da branquitude racista e preconceituosa.
O racismo estrutural age com o negro da mesma maneira que um gato faz ao brincar com um camundongo pego de surpresa em suas incursões furtivas nas noites cotidianas de uma casa qualquer. O bichano encurrala e prende o rato, joga-o de um lado para o outro, prendendo e soltando, em um jogo sádico e cruel. Sua inteligência felina age criando a falsa imagem de possibilidade de liberdade para o roedor. Ledo engano, na verdade está divertindo-se curiosamente, testando suas habilidades atávicas, jogando com o camudongo ao seu bel prazer, quando então enfastia-se do jogo e tira a vida do já desinteressante ratinho, com requintes de crueldade.
O ser negro vive e morre preso a desejos que infelizmente lhes causarão dores e sofrimentos por toda a sua existência. São desejos comuns do campo material do mundo branco como frequentar bons restaurantes, adquirir um imóvel confortável, possuir um bom carro, sair de férias com a família, conhecer outros países, amar e ser amado sem o interdito da cor, ver os filhos estudarem em boas escolas, ter boas roupas e um saldo confortável na conta bancária, enfim, desejos praticamente impossíveis de serem realizados pelo interdito da origem, que ao não serem realizados geram dores e sofrimentos.
O capitalismo e sua estrutura econômica eurocêntrica, baseada no consumo excessivo e na sede de acumulação e apropriação, leva os seres humanos a se desesperarem de forma incontrolável, estimulando a população no desejo de aquisição de ícones pessoais que representam prestígio e poder na pirâmides sociais das sociedades capitalistas. O negro nunca foi considerado agente protagônico e tampouco partícipe desse processo evolutivo econômico. Sempre foi visto como um penduricalho social indesejável, uma aberração antropológica incapaz de construir modelos de desenvolvimentos produtivos de amplo espectro.
Ao ser alijado do sistema produtivo enquanto agente intelectual não-emulador, foi relegado à condição de mero trabalhador braçal escravizado, para então ter o desejo de sonhar apenas com a sua liberdade. Seu único desejo passou a ser a conquista da liberdade onde não pensava em família, filhos, educação e futuro, só desejava a liberdade. O sonho de liberdade, passou a ser seu horizonte de vida, horizonte para o qual quanto mais caminhava em sua direção, mas esse horizonte se afastava, causando desespero e ódio aos que lhe impuseram essa condição indigna. Muito pouco para um branco mas era tudo para um negro sequestrado em seu país e escravizado em outro continente, respirar os ares da liberdade.
O destino reservou ao povo africano a má sorte do contato com o branco europeu. Desde o fatídico encontro, passaram a viver desgraçadamente em um vale de lágrimas, onde o simples fato de estar vivo era para o negro um sinal de bem aventurança. O negro era profunda interrogação de como ser feliz, existindo em uma dimensão tão reduzida e míope de desejos.
Imerso no caldeirão efervescente do colonialismo, passou então a ricochetear entre as nobres verdades do budismo, a cosmovisão africana, as construções da Frenologia e o materialismo histórico de Karl Marx. A reflexão dessa existência torna-se difusa quando analisamos comparativamente o estreito escopo de desejos de um ser humano negro escravizado, com uma pessoa branca e a formidável amplitude do cardápio de desejos postos à sua disposição. Em tese o negro deveria ser mais feliz, pois não era cativo de tantos desejos, mas pelo contrário, mesmo despido de quase todos os desejos que uma pessoa branca possa possuir, tornava-se triste e sem esperanças por dias melhores. Seus sofrimentos eram gigantescos, mesmo tendo somente um desejo primordial que era sua liberdade.
Durante 350 anos negras e negros foram escravizados no Brasil. Foram desumanizados, aviltados, violentados de todas as maneiras possíveis. Eram apátridas considerados sem alma em seu próprio país. Eram vistos como seres pestilentos, como espectros ambulantes que não podiam usar sapatos para que sua inferioridade fosse demonstrada. Viveram suas vidas sendo tratados como animais e às vezes recebiam tratamento inferior ao que os animais recebiam.
Qual é a filosofia? Qual é a Psicanálise? Será que existe Freud e Lacan para negros e negras? Quais as bases e fundamentações teóricas que embasaram esses doutrinadores eurocêntricos? As dores do cativeiro eterno cabem na teoria psicanalítica branca? E os desejos de quem não tem direito a ter direitos? Os sofrimentos de que não possui horizontes serão compreensíveis?
São dois mundos que vivem e compreendem duas realidades diferentes. O suave mundo branco se sobrepondo ao aspérrimo mundo negro. Sorrisos brancos doces pontificando felicidades enquanto cruzam com olhares negros opacos e amargos, que durante toda uma vida nunca foram bafejados pelo sopro da ambrosia.
O povo negro segue sua caminhada em seu triste fado de ter que lutar contra a ignorância dos sistemas excludentes e preconceituosos gerados pela alma branca. Enquanto os desejos e sofrimentos dos negros estiverem conectados às matrizes psicanalíticas e às construções sociais eurocêntricas, os negros estarão entregues à propria sorte como sempre estiveram. A alma branca não consgue sentir as dores da alma negra pois nunca esteve e nunca estará neste lugar difuso e solitário, desesperador e conturbado que é o espírito humano do negro de ancestralidade escravizada.
Os negros não têm outra alternativa a não ser seguir em frente na estrada da vida que está repleta de placas de sinalização proibindo todos os seus movimentos e opções. A estrada foi planejada para o povo branco, que nela desfila feliz com seus carrões espirituais, enquanto a massa negra segue também por ela, sofrendo a dureza da travessia, relegada ao acostamento com suas toscas bicicletas existenciais.
sexta-feira, 17 de maio de 2024
O Eu Negro em Estilhaços
Me eu negro quando se reflete no espelho, traz consigo uma carga imensa de sofrimentos ancestrais. Em cada estilhaço se refletem dores primordiais da alma negra, vilipendiada, violentada, flagelada e crucificada, após uma ultrajante e pérfida via crucis antropológica.
Quando meu eu negro defronta-se diante do espelho estilhaçado, tenta se reconhecer em meio a tantos eus disformes e assimétricos. São ‘não eus’ que se recusam a compor minha verdadeira alteridade física e emocional, como o instrumento desafinado em meio a uma maviosa orquestra sinfônica. Não consigo estabelecer um acordo com meu eu no espelho estilhaçado, porque além da recusa diante da impossibilidade normativa, há uma realidade distópica atuando em moto contínuo que não abre espaço para concertações humanas.
A triste saga do meu eu negro carrega consigo as cicatrizes de batalhas atávicas memoráveis. Traz o luto antropológico e a perversão do cativeiro que cruzou o mar salgado mil vezes com as ondas frias batendo em minha alma. Tantos porões desumanos no ventre dos navios negreiros, prenhes de dores e hostilidades. Tanto mar...tanto mal. Tanto sofrimento que durante séculos de indignidades humanas, formatou um sísifo existencial, que exaure minha mente nas infinitas e contínuas escaladas dos rochedos do existir.
Meu eu negro permanece no espelho em estilhaços, vive uma teogonia voltada para o lado humano, que passou a compreender o destino que sempre cumpriu, sempre preso a uma hermenêutica kantiana construída pelo proselitismo caucasiano, que insiste em apagar e destruir minha cosmovisão ancestral, multicultural e pluriétnica.
Meu eu negro insiste em se descobrir humano, em um mundo alienígena de reflexos inumanos e hostis. A visão se torna turva diante de uma falsa deidade controladora de sociopatas eugênicos. O cansaço de conviver com esta metafísica canhestra me faz caminhar lento e claudicante, curvado pelo peso da vida por vielas tortuosas de um mundo sem vida e decadente.
É assustador ver e não se reconhecer inteiramente como parte de um mundo que se expressa através da fenomenologia de Heidegger onde o "ser e tempo" mata e revive a metafísica, construindo e reconstruindo a maneira de ver o mundo negro sob o olhar negro.
Para qual mundo negro se deve seguir emancipado ou somente seguir com a manada, até o destino final? Apagar o passado soturno e varrer para debaixo do tapete os restolhos cínicos que os déspotas nos atiram. São migalhas humilhantes que apontam e ressignificam a miserabilidade que gradua as malditas diferenças fenotipicas do colorismo.Viver eternamente no porão da vida enquanto os capitalistas poderosos refestelam-se em suntuosos palácios às custas do nosso sofrimento. Viver em desgraça é a sina que os brancos racistas determinaram para o nosso povo negro.
Interrogações seculares que permanecem, me cobram através dos reflexos do espelho. Os estilhaços me atiçam em chamas, cobrando um modo de ação carbonário e revolucionário. Gritam em meus ouvidos, sangram meu corpo, esmagam os recônditos de minha alma. As interrogações são bárbaras e desumanas. Partem dos estilhaços do espelho como raios certeiros, tendo como alvos principais o coração e a alma negra. Penso em deixar tudo para depois sabendo me engananar, assim como as mães fazem ao dizer para o filho insistente ao pedir uma guloseima: “na volta a gente compra”. Sim, na volta talvez eu lute, na volta talvez eu sorria, na volta talvez me encontre.
O encontro metafísico do ser humano consigo mesmo, certamente ocorre através do desejo e da conquista da liberdade. A liberdade porém não é um constitutivo natural da alma humana, mas é também componente da realidade, da concretude do momento e do existir, em caminhar livre pelo mundo.
A liberdade é um estado que reside na dimensão do sentir, do desejo, da glória da conquista, da sublimação e do protagonismo dentro de um tempo histórico. Portanto a liberdade reside na existência de seres humanos históricos, protagonistas da história, e os negros brasileiros nunca foram convidados para dançarem nos bailes da vida para desfrutarem de uma revigorantecontradança.
Viver apartado da verdadeira liberdade, a liberdade dos vencedores, dos conquistadores, daqueles que escreveram e escrevem a história é uma carga sobre humana que preciso carregar. Minha voz não ecoa no mundo branco e continua sendo ouvida com descrença e desesperança no mundo negro. Certos brancos me ouvem com alguma curiosidade, como se estivessem participando de um experimento antropológico exótico. Esperam ansiosos que eu fale de samba, futebol e carnaval, enquanto ensaio Cheik Abra Diop, driblo com Abdias do Nascimento e faço lindos gols através de Lélia Gonzalez e Patrice Lumumba.
As dimensões permitidas que nos legaram, enquanto seres humanos ávidos e protagonistas por visibilidade, ficaram restritas ao samba e ao futebol, aos tambores e à bola. Somos os espectros civilizatórios de um continente bárbaro, segundo eles. Somos a escumalha que empreteceu a população brasileira para horror dos eugenista tupiniquins. Somos aqueles e aquelas que são confinados nas senzalas contemporâneas que são os quartinhos de empregada, onde purgamos nossa subalternidade entre quatro paredes sufocantes sem janelas.
A branquitude adora quando bradamos que o negro é lindo, que façamos gestos que significam o poder negro. Nos apoiam em todas essas coisas e depois vão ao concerto erudito nos teatros municipais da vida e nos entregam os utensílios necessários para que lavemos suas latrinas imundas.
Obviamente que estamos avançando. Eu mesmo aqui ousando escrever, me desafiando no mundo das letras, pequeno e pobre escritor negro, tentando viver a liberdade que observo nas entrelinhas do papel, pelas tímidas frestas que impulsionam meus desejos no desafio das páginas em branco.
Mas quanto mais escrevo mais me desespero. Quanto mais escrevo mais me descubro e redescubro minha localização errante na vida, que grita em meu âmago que devo ser forte, que devo ser livre, pois somente assim poderei ajudar os meus irmãos e irmãs que vivem no mundo da ilusão ou na ilusão do mundo. Esses irmãos e irmãs são as pessoas mais importantes para mim, pois sem eles nas trincheiras ao meu lado, minha luta em prol da liberdade verdadeira não tem o menor sentido.
Os negros escravizados no Brasil eram proibidos de usar sapatos. Podiam até usar roupas vistosas como era comum no caso dos escravos de ganho e nos serviçais da casa grande. Porém sempre descalços, para sentir a aspereza dos caminhos, para viver sabendo ser inferiores, para compreenderem que eram os derrotados da Terra. Viver uma vida inteira descalços era a maior demonstração de humilhação e ausência de liberdade possível. Paulo da Portela em meados do século 20 tornou famosa uma metáfora que dizia que o negro deveria se esmerar ao se vestir e estar sempre 'com o pescoço e os pés ocupados', utilizando sempre que possível gravatas e sapatos. Via nesses acessórios um sinal de emancipação civilizatória no mundo eurocêntrico, de respeitabilidade e liberdade para a população negra.
O espelho hoje apresenta alguns estilhaços virtuosos. A cada dia que passa mais jovens negros adentram ao ensino superior, modelando lentamente uma sociedade do futuro mais heterogênea e democrática. São conquistas que além do valor e do esforço individual do ser negro, requisitaram duríssimas batalhas ao movimento negro em confrontos memoráveis contra o racismo estrutural brasileiro. Nossas conquistam são lentas, pois apesar da urgência de nossas emergências, somos submetidos a um judiciário branco, machista e racista. Nosso judiciário é a tal praia onde os negros nadam...nadam e morrem na praia. O Congresso Nacional possui o mesmo perfil eurocêntrico e excludente do judiciário. O racismo estrutural segue transformando a vida da população negra em um verdadeiro inferno, ao legislar continuamente contra leis já aprovadas, em súmulas que estabelecem direitos através de algumas poucas ações afirmativas, em decretos que propõem mecanismos de correções de diversas assimetrias raciais históricas.
O resumo da existência negra no Brasil está contido na ausência de liberdade. Na verdade é uma retroexistência lastreada pela xenoafetividade endêmica que remonta aos tempos de cativeiro do período colonial. Nossa imagem no espelho nos pede socorro, pois nossa velocidade de avanço social é menor que o avanço do racismo em recrudescimento. Precisamos pensar ativamente na verdadeira liberdade, na honestidade epistemológica do nosso existir sem as cercas ladeadas da branquitude. Precisamos caminhar na direção do futuro sem temer o pôr de sol esmaecido que o racismo estrutural sempre nos apresentou como um horizonte lindo, fulgurante e libertador.
sábado, 11 de maio de 2024
A criação do mundo, do Orum do Samba e da magia do gurufim na tradição iorubá.
Obatalá ficou feliz com a missão e no afã de agradar Olodumaré, partiu para sua nobre missão, sem porém fazer as oferendas devidas e necessárias a Exú, o sagrado comunicador entre os dois mundos, o Orum e o mundo dos mortais. Exú ofendido e desrespeitado em seus ofícios, se vingou do emissário divino, produzindo um encantamento que fez Obatalá sentir uma sede incontrolável. Obatalá então, muito sedento, furou o tronco de um dendezeiro com seu paxorô, o cajado de estanho que o acompanha, extraindo da árvore bastante vinho de palma, que bebeu avidamente. Por conta desse excesso, provocado pelo feituço, se embriagou desbragadamente, adormecendo de imediato e de forma profunda.
Oduduwa pegou o saco da criação confiado a Obatalá e denunciou a Olodumaré a grande irresponsabilidade de seu emissário. O próprio Oduduwa foi incumbido então por Olodumaré, ele próprio, de criar o Aiyê, no ainda inexistente mundo que abrigaria os humanos. O processo de criação teve início e onde havia água ele despejou terra marrom que tirava do saco da criação. Oduduwa retirou do saco da criação uma concha cheia de areia, para logo após soltar uma galinha de pés de cinco dedos e uma pomba, que imediatamente começaram a ciscar a areia para fora da concha, criando o que são hoje os continentes, com seus mais variados tipos de relevos. Enquanto isso Obatalá despertava de seu sono profundo provocado pela vingança de Exú, se desculpando envergonhado com Olodumaré. Como prêmio de consolação, após ser perdoado, foi incumbido por Olodumaré de criar a espécie humana, modelando os seres humanos a partir do barro, fazendo com isso a ocupação do Aiyê com seus primeiros habitantes. Olodumaré determinou que cada ser humano criado deveria ser único, garantindo assim que jamais haveria um ser humano igual ao outro. Além das formas físicas ele também transferiria aos humanos que criasse os diversos aspectos de seu próprio caráter. Assim o mundo foi criado e dessa maneira os animais e a espécie humana espalharam-se pelo mundo a partir das terras dos reinos de Ifé e de Oyá.
O velho griot conta que um dia um povo de pele branca chegou vindo do outro lado do mar, com seus barcos gigantes e portando um livro chamado Bíblia Sagrada, o livro que diziam ser a salvação da humanidade, que contava a história sobre uma terra onde havia um grande e único deus branco, criador do céu e da terra, que entregou seu filho para ser crucificado em um madeiro em forma de cruz, com o propósito de salvar a humanidade de seus pecados Eles, os brancos, tinham o livro enquanto os negros possuíam a terra. Os negros então fecharam seus olhos para rezar no livro conforme lhe ensinaram e louvar o deus branco. Quando abriram os olhos depois de tanto rezar, os brancos tinham se tornado os donos das terras e os negros ficaram com o livro.
Foram séculos de sofrimentos em que o povo negro passou por terríveis martírios nas mãos dos brancos. Guerras, perda das terras, apagamento da cosmovisão do sagrado africano e a famigerada escravidão mercantil. Esse foi o pérfido legado deixado pelo homem branco nas terras do povo negro, o Continente Africano.
Trazido para o Brasil como escravizado, o povo negro perdeu tudo que lhe era mais sagrado: sua liberdade, suas culturas, suas crenças e até suas línguas foram proibidas pelo branco escravista. Mas no silêncio da senzala, nas festas dos quilombos e na rotina extenuante do eito de trabalho, passava silenciosamente todos os fundamentos sagrados transmitidos pelos orixás desde o início dos tempos.
Os navios trouxeram de África junto com os escravizados os tambores africanos, responsáveis pela boa comunicação dos trabalhos do Candomblé entre os dois mundos. Os tambores pariram o samba, ritmo profano que produz a magia do encantamento entre corpo, alma e o universo metafísico, transformando lágrimas de dor em diamantes iluminados e cintilantes, tristezas em alegrias, desamores em amores e felicidades. Esse samba que junto com o futebol, formam uma riquíssima dupla no mosaico da cultura nacional, segue em frente empunhando o estandarte de resistência da cultura brasileira diante dos ataques alienígenas anódinos e sem vida.
O samba esse menino travesso, malandreado, veio no embalo do mar do sem fim, no sacolejo dos vapores de Cachoeira, do Recôncavo Baiano, de Santo Amaro da Purificação, na dança da umbigada angolana chamada semba. Esse samba do negro retinto, do pé rachado, dos sem eira nem beira, quem diria, ganhou o mundo adentrando até nos salões da elite empertigada.
João Gilberto, um dos pais da Bossa Nova, cantava que o samba havia nascido na Bahia. Pode ser, pois a Bahia talvez seja a maior parideira da riqueza cultural brasileira. De Salvador ao Recôncavo Baiano, de Ilhéus a Cachoeira, a Bahia de todos os deuses sempre nos brindou com verdadeiras maravilhas culturais, como o Samba de Roda, a Tropicália, o Maracatu, o Cinema Novo, a Timbalada, os Blocos Afros, os famosos ilês de axé, além de grandes personalidades de nossa história e do país.
O Candomblé baiano foi a maior fonte de inspiração e contribuição para a formação da nossa brasilidade. Os tambores Rum, Pi e Lê ditam e comandam o ritmo primordial da sagrada prática iorubana/angolana/brasileira. Seus elementos significantes foram os pilares antropológicos que sustentaram a força da matriz africana em seu entranhamento inapelável e definitivo na gênese da matriz indo-afro-ibérica, que constitutiva até então do delicado tule da identidade brasileira, durante os primórdios do período colonial.
A prática da religião africana nos territórios colonizados era realizada de maneira bastante discreta, visando burlar o esforço da empresa colonial e da Companhia de Jesus, voltada para a conversão ao cristianismo dos africanos sequestrados em África e escravizados no Brasil. Nos encontros clandestinos nas matas, ou nos sussurros de cumplicidade no silêncio da senzala, o exercício da religião era passado através dos tempos, como um oráculo primordial, tornando-se guardião imemorial do legado sagrado dos territórios negros do Daomé, de Oyá, Sudão e do Benin, entre iorubás, fons e bantus.
No meio desse turbilhão cultural fantástico, por sua força atávica, driblando a adversidade histórica, nosso samba foi dando seus primeiros passos, bem de mansinho, mamando nas tetas generosas das iaôs, nos colos acolhedores das Ialaorixás, nas carícias de ogãs e alabês, na feijoada do quintal de preto, nos gurufins nós territórios negros, nas comidas de santo e fundamentalmente no rufar dos tambores dos terreiros.
Os vapores saíam da Bahia de Todos os Santos, do Recôncavo e do Cais de Salvador para o Rio de Janeiro, trazendo em seu ventre a prenhez da mãe África, o jongo, o samba, a culinária, a capoeira, as ervas santas, o poder da adivinhação das contas do Ifá, as danças profanas e o canto mágico, que transformaram para sempre a cultura brasileira.
O babalaô africano conhecido como Bamboxé foi o primeiro a abrir uma casa de santo no Rio de Janeiro. Com o advento da abolição da escravatura ele retornou para a África compondo o contingente dos ‘Agudás’, que quer dizer em dialeto nagô, aqueles que retornaram. Depois da partida de Bamboxé a casa de santo ficou por conta do Babá João Alabá, localizada na região da Pequena África, cujas filhas de santo mudaram para sempre o panorama da vida cultural carioca e do país. Entre suas filhas de santo mais famosas podemos citar Tia Amélia, mãe de Donga, sambista que gravou o primeiro samba no país, chamado de ‘Pelo Telefone’. Tia Bebiana, organizadora dos desfiles de blocos e ranchos no Largo de São Domingo, Tia Perciliana, mãe de João da Baiana e Tia Ciata a primeira dama do samba, a parideira do samba carioca.
Tia Ciata é a grande referência do samba no Rio de Janeiro. Os sambistas a consideram a grande matriarca do samba carioca. Sua casa na Pequena África, no centro da cidade, era o local de encontro dos autênticos e pioneiros sambistas do Rio de Janeiro, o berço do samba carioca. Sua casa era frequentada por artistas e músicos de boa cepa como Ataulfo Alves, Heitor dos Prazeres, Paulo da Portela, Cartola, Carlos Cachaça, João da Gente, Alvaiade, Aniceto, Euclides, Ventura, Natal da Portela, Zé com Fome, Silas de Oliveira, Pixinguinha, Ismael, Bid, Marçal e a turma do Estácio. A turma do Estácio foi quem mudou o ritmo do samba para a forma que é tocado até hoje nas baterias das escolas de samba. Antes o samba que se dançava era um ritmo amaxixado, como podemos constatar no primeiro samba gravado por Donga, o famoso “Pelo Telefone”. Muitos sambistas torcem o nariz para esse samba, dizendo que o mesmo é um maxixe. Tia Ciata além de grande festeira, era uma Mãe de Santo respeitada pelo povo do santo no Centro do Rio de Janeiro. Sua fama correu chão, após ter curado com suas ervas e unguentos uma ferida renitente na perna do presidente do Brasil à época, Wenceslau Brás. Por esse motivo, por ordem do presidente, a polícia ficou proibida de invadir e terminar com a reunião de sambistas que aconteciano terreiro de Tia Ciata.
Nesse ambiente mágico onde o metafísico e o cultural se acasalavam sob as bençãos dos Orixás, o samba carioca deu seus primeiros passos. Acontecia logo após o encerramento das celebrações e sessões dos ofícios sagrados, quando havia então uma pausa necessária para a organização do terreiro para a prática dos festejos.
Os frequentadores faziam um intervalo de descanso para logo depois fazerem a conversão dos atabaques, antes comprometidos com o sagrado que entregues ao profano, eram surrados inclementes durante toda a noite por dedicados ogãs e alabês, cumprindo seus relevantes papéis de manter a massa em alegria, quando de suas couradas rugiam maxixes, sambas e polcas até o dia raiar.
Além do prazer de usufruir da própria riqueza musical e da alegria reinante, naquela época não havia transportes durante a madrugada que levassem o pessoal de volta para casa. Os frequentadores dos terreiros então aproveitavam que deveriam aguardar o dia amanhecer para fazer a festa, cantar, dançar e se fartar da “água que passarinho não bebe” ou “aquela que matou o guarda”. A casa de Tia Ciata assistiu as transformações da música e do samba. A turma do Estácio, por exemplo, ensaiava seus sambas defronte a uma escola de formação de normalistas no Largo do Estácio, nas franjas da Pequena África. Daí saiu a alcunha de “escola de samba”, que é utilizada até os dias atuais.
Noites memoráveis foram vividas na casa da Tia Ciata. João da Baiana, seu sobrinho, era o principal animador do arrasta pé. Tantos outros grandes sambistas passaram por aquele terreiro. Podemos lembrar de Zé Espinguela, o Pai Olufá do candomblé da Mangueira. Esse mesmo Zé Espinguela que junto com Paulo da Portela realizaram o primeiro encontro de escolas de samba no Rio de Janeiro, no ano de1929 no bairro do Engenho de Dentro, evento histórico que foi o embrião dos atuais desfiles de escolas de samba que acontecem em todo o país.
Todos esses sambistas pioneiros partiram para o Orum, nos enchendo de saudades que marejam nossos olhos. Estão todos reunidos no Orum, ambiente sagrado e celestial, onde as dores do mundo dos mortais não existem mais.
Sambista de verdade gosta mesmo é de um ajuntamento, de burburinho, de gente rindo escancarado, gent falando alto, de samba bom, felicidade de sambar com seus corpos suados e muita batucada. Certamente que um dia chamaram o Obatalá, orixá velha–guarda, conhecido como Oxalufam, que traz consigo seu paxorô, sempre vestido de branco, para uma resenha respeitosa no intuito de poderem criar um espaço restrito aos sambistas. Obatalá como todos sabem é o orixá que foi encarregado por Olodumaré para realizar o milagre da criação, aquele do saco da criação, que através de Ododuwa deu origem ao mundo. Costuma ser muito generoso sendo um orixá bom de entendimento. .
Com a resenha garantida, convocaram Paulo da Portela para desenrolar a ideia com poderoso orixá. Tia Ciata foi junto, pois era muito considerada no Orum por conta de suas oferendas luxuosas que sempre agradaram muito aos orixás que faziam questão de baixar em seu terreiro. Obatalá ficava muito feliz com a canjica, acaçá e mugunzá, seus petiscos preferidos, regados a um bom vinho branco e doces que Tia Ciata lhe oferecia, além de velas brancas, frutas, coco verde, mel e flores.
Um pedido dela contava muito no Orum e Obatalá entendeu que o pedido era muito justo. Em sua sabedoria compreendeu a importância da solicitação, alertando porém que gostaria de consultar outros orixás antes da decisão.
Foi uma correria só, pois raramente os orixás entravam em concílio e além disso todos deveriam estar contentes com os sambistas para votarem a favor do espaço que aqueles pretos barulhentos estavam reivindicando a criar.
Eram muitas as obrigações a serem realizadas. Para Oxum velas brancas, azuis ou amarelas. Flores e frutos de todos os tipos, essências de rosas, champanhe e licor de cereja. Para Oxóssi velas brancas, verdes ou rosas, mas também adora que lhe ofereçam cerveja, vinho doce e licor de caju, bem como flores do campo e frutas. Xangô não pode ser contrariado e todos se empenharam em produzir um padê especial com velas brancas, vermelhas ou marrons. Flores de todas as espécies, cerveja escura, vinho doce e licor de ambrosia. Obaluaiê o senhor da evolução é agradado com ofertas de velas brancas, vinho rosé, água pura, coco fatiado com mel e pipocas, rosas, margaridas e crisântemos. O guerreiro Ogum gosta de velas brancas, azuis ou vermelhas, cerveja, vinho licoroso e cravos. Iemanjá A dona das águas fica feliz com velas brancas, azuis ou rosas, champanhe, calda de ameixa ou pêssego, manjar, arroz-doce, melão e rosas brancas. Iansã senhora das emoções intensas, recebe com prazer velas brancas, amarelas e vermelhas. Também gosta de champanhe branca, licor de menta, aniz ou cerejas, rosas e palmas amarelas. Nanã regente da maturidade e da razão humana muito se satisfaz com velas brancas, roxas e rosas, champanhe, calda de ameixa ou figo, uva, melão, melancia, figo ou ameixa. Omulu orixá que rege nossa passagem para o mundo espiritual deve ser agradado com velas brancas, vermelhas ou pretas, água pura, coco, vinho doce, mel, pipoca e sal grosso.
A turma de sambistas se dividiu para correr atrás e desenrolar todas as oferendas necessária para agradar aos orixás. A coordenação da missão ficou por conta de Tia Perciliana que sempre foi respeitada pelas entidades do Orum. Do jeito que era organizado, Paulo da Portela apresentou um projeto para o grupo e cada um saiu em sua missão de conseguir tudo que fosse necessário para agradar aos orixás que iam participar do raríssimo concílio.
No dia combinados estavam todos lá gloriosos. Toodos os deuses assentados e esplendorosos em seus imensos tronos, imponentes e compenetrados. Alguns impacientes pois tinham muitas demandas para resolver no estelífero e na Terra. Recebiam pedidos de seus filhos mais diletos como promover a justiça, evitar acidentes e consertar casamentos. Outros cuidar de enfermos, evitar guerras, proteger viagens entre tantas outras obrigações. Xangô não estava muito satisfeito com a situação pois achava um absurdo o concílio se reunir para garantir um espaço exclusivo para os sambistas no Orum. A todo momento olhava de lado para Nanã Buruquê a senhora dos pântanos que em seu imensurável poder se mantinha impassível, aguardando o momento das falas.
Obatalá abriu o concílio colocando a necessidade da reunião para julgar o pedido, pois os solicitantes sempre foram muito dedicados aos trabalhos espirituais na Terra, e por conseguinte durante a vida terrena fizeram generosas e verdadeiras oferendas para todos os orixás. Obatalá lembrou a Xangô filho de Orumilá, aquele que altera o dia morte, dono do trovão, conhecedor dos caminhos do poder secular, governador da justiça e senhor do castelo de cem colunas de bronze, dos famosos amalás que Ciata lhe preparava com muito carinho, escolhendo os melhores quiabos pensando na satisfação de seu dono. Xangô grunhiu qualquer coisa mas realmente não estava muito satisfeito com toda a situação. Sua esposa Oxum sentou-se a seu lado e lhe acariciou os cabelos revoltos. Aos poucos a raiva foi dando lugar a um semblante mais tranquilo e o concílio seguiu seu curso.
Oxum de cara amarrada não gostava quando não falavam de Carmem do Xibuco, sua filha dileta do terreiro de João Alabá que assumiu a liderança religiosa da Pequena África com o retorno para a África do agudá Bamboxé. Tia Carmem era rezadeira como Tia Ciata e depois dos 21 anos de feita no santo foi introduzida nos mistérios das Yami Osorongá, dos pássaros da madrugada. Como Tia Carmem não estava no Orum do Samba, Oxum não apoiaria de jeito nenhum a iniciativa que deixava de fora aquela filha que cuidara tão bem de seus abians e iaôs, dos quelês e deloguns daqueles que trançavam os mais lindos mocans de palha da costa e fiavam fios de contas douradas ou de âmbar. Oxum ficava era feliz vendo seus filhos depois da obrigação de 7 anos ver seus egbomis ganharem as novas contas como Humjebe Lagdbá, Brajá, Âbar e Mojoló. Tanta coisa bonita, tanto xirê dourado, tanta entrega de deká, tanta puxada de muzenza, onde já se viu tirar a filha Carmem do Xibuco que veio de Amaralina, desse tal Orum do Samba que nem se sabe direito seus fundamentos, ainda mais que Carmem era rezadeira das boas e cantadeira junto Tia Bebiana e Tia Amélia nos arrasta-pés mais famosos da Pequena África.
Oxum quando diz não a terra treme, as águas se levantam e os deuses e deusas temem sua ira e a ira dos pássaros da noite, a fúria incomensurável do poder devastador das Três Senhoras. Oxum, a segunda esposa de Xangô, dona do Jogo de Búzios, da adivinhação das contas do Ifá, da sabedoria e do poder, não estava gostando nem um pouco dessa novidade de samba no Orum. Iemanjá senhora da fertilidade e protetora das crianças não entendia bem o que aquele povo queria fazer no Orum, já que tudo estava em seu lugar, sem alteração há milhares de anos. Oxum acompanhou Iemanjá na interrogação e Ogun pediu a palavra, primeiro pedindo assentimento a Omulu que estava sentado ao seu lado. Ogum fez um longo discurso em defesa dos sambistas, pois sempre protegia seus filhos perseguidos e prejudicados pelas leis injustas dos homens brancos na Terra. Lembrou que nos momentos mais difíceis da perseguição ao culto aos orixás esses sambistas nunca renegaram sua fé. Estiveram firmes nos trabalhos de terreiro, com suas oferendas e seus okiris, desenvolvendo novas iaôs com amor e dedicação. Lembrou da dinheirama que gastaram para montar os padês e tantas outras oferendas, as flores, as bebidas finas, o melhor de tudo sempre. Cuidaram de suas casas, de seus barracões com amor e carinho. Desenvolveram centenas de filhos e filhas de santo, prestaram caridade durante toda a vida e agora no Orum só querem um pequeno espaço na imensidão para se reunirem e brincar sem preocupação, em paz, como nunca aconteceu na vida terrena. Nanã a senhora das águas paradas, pediu a palavra e lentamente se dirigiu para o centro do círculo sagrado com seu ibiri. O fogo lhe iluminava as faces antigas e graves. Rompeu o silêncio dizendo em tom grave que nunca se deve abandonar os seus. Aqueles bravos sambistas sempre cumpriram com louvor e dedicação aos orixás na vida terrena e agora podem sim, ter seu espaço para ter um pouco de alegria, depois de uma vida tão sofrida. Em um silêncio absoluto Nanã Buruquê voltou para seu assento e olhou para Obatalá como que perguntando o que estava faltando para atender o pedido dos nossos filhos dileto. Obatalá então colocou o pedido em votação e todos aprovaram por unanimidade a criação do Orum do Samba.
Desfeito o concílio com o anúncio da aprovação, os orixás partiram em diferentes direções do universo estelífero, cavalgando raios de luzes e em fantásticas tempestades solares e em jatos poderosíssimos dos pulsares. Um cenário indescritível de poder e glória que iluminou as trevas gélidas do universo. Obaluaê transmitiu as decisões e salvaguardas do concílio, onde somente poderiam participar do Orum do samba os sambistas que na vida terrena tiverem tido compromisso com os orixás, além de bom comportamento e respeito ao sagrado. Determinou também que não fosse interrompida de forma alguma no mundo material a cultura do gurufim que ele particularmente muito apreciava. Obaluaê disse que sambista que se preza não tem velório, tem mesmo é gurufim. Velório é coisa de branco, de tristeza dos povos do gelo.
O gurufim é um ritual de celebração dos povos de origem africana, que celebram em corpo presente a passagem dos membros de suas comunidades para o Orum. O termo “Gurufim”, segundo Luis da Câmara Cascudo, é uma corruptela de ‘golfinho’, cetáceo que na cultura do Egito Antigo, conduz ou faz a passagem dos espíritos dos que morrem para uma outra vida, para o mundo dos mortos. Luis Antônio Simas diz que aqui no Brasil é comum na religiosidade dos bantos e iorubás a cerimônia do axexê, que é um rito, uma comemoração, uma festa para a morte. Simas explica que a crendice popular diz que a morte nunca leva somente uma pessoa, na verdade gosta de levar três. “Então o povo canta, bebe e brinca para enganar a morte”. É uma malandragem, para que a morte não perceba que tem um morto sendo velado naquele local. Então a morte ao observar a festa, não percebe o engodo, vai embora sem levar outras pessoas.
O bairro de Madureira no Rio de Janeiro fez o maior gurufim que se tem notícia. Foi o evento que marcou a passagem do sambista Paulo da Portela, fundador da escola de samba cujo nome incorporou. As exéquias aconteceram no ano de 1949 e infelizmente não puderam ser realizadas na sede da escola de samba, pois a viúva não permitiu que o corpo fosse velado na quadra da agremiação por conta de quizilas entre a escola e seu falecido marido, fundador da instituição, coisas do mundo do samba. A imprensa da época noticiou que 15 mil pessoas lotaram as ruas de Madureira para acompanhar a passagem do cortejo fúnebre.
No caso de Paulo da Portela o gurufim foi na rua mesmo. Enquanto o comércio cerrava as portas em respeito e homenagem ao ilustre líder sambista, o povo cantava e bebia enquanto caminhava acompanhando o cortejo. Muita gente ganhou um bom dinheiro no jogo do bicho ao apostar no número da sepultura de Paulo da Portela, que por mais incrível que possa parecer, deu a milhar na cabeça. Mais gurufim que isto impossível, a homenagem ao morto ser encerrada com o milhar da sepultura dando na cabeça no jogo do bicho.
O memorável sambista Padeirinho da Mangueira também se referiu ao gurufim em um de seus sambas, especificamente o “Linguagem do Morro”: “Briga de uns e outros/Dizem que é burburim/Velório no morro é gurufim”.
Dona Neuma, filha de Saturnino e mãe de Guesinha e Chininha, sempre foi a grande dama do samba de Mangueira. Neuma narrava que também fazia parte do gurufim algumas brincadeiras: “A gente tirava a porta da sala principal e deitava sobre os caixotes. Colocava o morto ali em cima da porta, rodeado de gente sentada em bancos. Quando a cachaça comia solta, nego dormia e os outros pintavam bigodes de gato na cara dele com uma rolha queimada”
Luiz Antônio Simas diz que essas brincadeiras costumavam ter o mar e os peixes como tema, pois os golfinhos carregam até hoje a tradição do Egito Antigo de transportar as pessoas para outros mundos. Em uma delas o capitão perguntava: “Gurufim veio?” e em coro todos respondiam: “não, não veio” e perguntava novamente: “Baleia veio? “Não, não veio” respondiam, e então quem veio? E o grupo apontando para alguém: “olha a sardinha aqui”, quando então cada um era apelidado pelo nome de um animal marinho. A pessoa que era a sardinha então tinha que responder, e passar adiante. Quem não respondesse ao chamado, tinha que pagar uma prenda, como levar um tapa na mão, conhecido como “bolo”, explica Simas.
“Velório no Morro” (Raul Marques e Tancredo Silva)
Lá
no morro quando morre um sambista
É um dia de festa e ninguém protesta
As águas rolam a noite inteira
Pois sem brincadeira o velório não presta
Tem também um gurufim
Que no fim acaba sempre em sururu
Mas é gozado pra chuchu (…)
(...)
Já encomendaram ao anjo Gabriel
Um novo céu para dar abrigo a sua gente
Que morre assim constantemente, de repente.
“Gurufim” (Cláudio Camunguelo)
Eu vou fingir
que morri
Pra ver quem vai chorar por mim
E quem vai ficar gargalhando no meu gurufim
Quem vai beber minha cachaça
E tomar do meu café
E quem vai ficar paquerando a minha mulher
Quando o
caixão chegar
Eu me levanto da mesa
E vou logo apagar
As quarto velas acesas
E vou dizer pra minha mãe
Não chora
Amigo a gente vê é nessa hora
A morte está presente no cotidiano dos poetas do samba. Nelson Cavaquinho cantava: “...Depois que eu me chamar saudade/Não preciso de vaidade/Quero preces e nada mais”, e “Quando eu passo/Perto das flores/Quase que elas dizem assim: Vai que amanhã enfeitaremos o seu fim”.
Concluindo as tratativas do Orum do samba, Obaluaê ficou muito satisfeito com a manutenção do gurufim no mundo dos mortais e se retirou com Nanã Buruquê para seus afazeres no Orum.
Foi decretado pelo concílio e por todos os orixás em seus assentos de baobá de 5 mil anos marchetados e incrustados de diamantes e outras pedras preciosas, que Paulo da Portela, Zé Espinguela, Dona Neuma e Clementina de Jesus seriam os responsáveis pela coordenação do espaço. Paulo da Portela que sempre foi muito organizado, rapidamente escreveu um estatuto que foi submetido à aprovação pelo coletivo. Chico Porrão da Mangueira redigiu o Regimento Interno e finalmente o funcionamento do espaço foi garantido.
No Orum do Samba a coisa acontece de maneira diferente. Os sambistas ficam de boas nas nuvens, tirando uns acordes aqui outros ali. Pedindo orientações a São Cartola e realizando exercícios vocais com Dona Ivone Lara. O regulamento não é lá muito rigoroso e sempre funciona a política das comadres e dos compadres. Noel Rosa sempre fuma escondido um cigarrinho da marca Celestial e Geraldo Pereira dá um jeito de tomar “umas e outras” com Beto Sem Braço. Vivem felizes em infinitas resenhas entre Mijinha, Preto Rico, Padeirinho, Zé Criolinho e Geraldo Babão. Dona Neuma da Mangueira organiza tudo e é quem manda de verdade no Céu dos Sambistas junto com Tia Ciata. Paga esporro geral pra todo mundo, enquadra qualquer vacilo quando é necessário e trabalha sempre na parceria com Dona Zica, mulher de Cartola, que também tem grande poder e dá uma moral na feijoada de sábado que o Natal da Portela adora. O medo do pecado da gula passa longe do Orum do Samba. Lá rola Tripa Lombeira, Barriga de Porco, Sarapatel, Rabada, Mocotó, Buchada de Bode e como ninguém é de ferro sempre surge um prato leve como Angu à Baiana com chouriço para abrir o apetite.
No Orum do Samba não há como ter tristeza. Isso é com os ‘Zé Ruela’ que ficaram lá embaixo reclamando da vida. Lá em cima não tem miséria, vida eterna é bom demais, ninguém anda “duro” pois não precisam de dinheiro, tudo corre suave, nos conformes, chapéu panamá, sapato bicolor, camisa de seda, mulheres no salto, cabelos nos trinques, não tem como não sair samba bom.
Os sambas elaborados são os mais lindos já compostos. Depois que os sambas ficam prontos, eles pedem aos Exús para descerem até a Terra e colocarem os sambas nas cabeças dos compositores e compositoras. Mas é tudo samba danado de bom! Se for um Exú mais paciente ele entrega o samba durante o sono do compositor. Se for um daqueles sagazes, faz como naquele samba que diz que a inspiração é como uma luz que chega de repente, com a rapidez de uma estrela cadente e zumpt! Enfia o samba na cabeça do poeta, que tem que se arvorar em encontrar caneta e papel nos lugares mais esquisitos e inimagináveis da vida, para poder escrever o samba que chegou inesperado, para não esquecer. Assim procediam Almir Guineto, Luiz Carlos da Vila, Tantinho, Canuto, Casquinha, Alberto Lonato, Xangô da Mangueira, Ventura, Gradim, Zé com Fome, Zé Espinguela, Casquinha, David Correia, Candeia, Mario Lago, e Waldir 59, além do povo guerreiro da Serrinha, povo de Dona Eulália, Vó Joana e Tia Maria do Jongo, Roberto Ribeiro, Darcy do Jongo, Mestre Fuleiro, Mano Elói, Silas de Oliveira, Manacéia, Mano Décio e Molequinho.
Tá uma alegria danada na turma do Cacique de Ramos que está no Orum do Samba. Oxóssi deixou plantar uma tamarineira e nela se reúnem Beth Carvalho, Ubirany, Guilherme de Brito e o povo das redondezas da Zona da Leopoldina como Luisinho Drummond o eterno presidente da Imperatriz. O pessoal tá numa animação só. O samba na Terra está meio triste, acabaram de subir Wilson das Neves, Nelson Sargento, Hélio Turco da Mangueira, Monarco da Portela e Djalma Sabiá do Salgueiro. Mas no Orum do Samba foi uma festa só, pois prepararam uma festa interminável para recebê-los. Todos se perfilaram em trajes de gala, com as bandeiras e estandartes das agremiações. Até o Bide do Estácio se empenhou no trampo, afinando com cuidado o surdão de primeira que marcou o momento solene da chegada. Só o Jamelão que estava reclamando com o Toco da Mocidade sobre a falação do povo, mas ele além de genial é sempre ranzinza mesmo.Mas foi tudo muito bonito, esmerado, preparado com carinho pela Dodô da Portela que acabou de ralhar com o Delegado que estava conversando com João Nogueira sobre samba e futebol. Todos receberam os novos membros com toda a pompa que existe no Orum. A cerimônia foi linda com todos e todas engalanados em seus trajes, sob as bênçãos do Comandante em Chefe do Orum do Samba, Paulo da Portela.
Mas o Orum do Samba tem seus regulamentos. Se chegar e disser que é sambista tem que provar que é bom malandro para Ismael e Wilson Batista. Vai ter que batucar para o Mestre André da Mocidade e Alcir do Prato, cantar para o Cartola e Nelson Cavaquinho, sambar para Gargalhada e Delegado e beber com Carlos Cachaça. Se for aprovado receberá um crachá para viver eternamente feliz e poder frequentar a Kizomba, a festa da Vila Isabel do Orum comandada por Noel.
A riqueza da cosmovisão africana diante da morte é um grande exemplo da capacidade de construção e reconstrução de um universo onírico maravilhoso, onde a realidade se funde com a metafísica e as dores são transformadas em alegrias e saudades. Esse poder de alquimia transcendental é próprio de um povo que elege a alegria como instituto basilar da vida, que através do encantamento existencial, ameniza suas dores e aflições oriundas do cotidiano do povo preto, inclusive enganando a morte.