A história dos negros no Brasil deixará de ser contada pelos vencedores. A maioridade da lei 10.639/2003 em 18 anos de desafio
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1o A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B:
"Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.
"Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’." Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 9 de janeiro de 2003; 182o da Independência e 115o da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Presidente da República Federativa do Brasil
O conteúdo do texto da Lei 10.639 é tão reduzido e famélico como o da Lei Áurea. Mas não deixa de ser um avanço enorme. Não caiu do céu e tampouco significa a conscientização ou conversão do poder público à temática racial. Foi uma vitória histórica do Movimento Negro brasileiro, conseguida através das incessantes lutas e demandas apresentadas desde sempre. O cumprimento desta lei apontará diretamente para o reposicionamento de nossa raiz indo-afro-ibérica, sendo que a construção da nação brasileira somente foi possível através da utilização intensiva da mão de obra escrava dos povos africanos/afrodescendentes e indígenas.
A promulgação da lei é motivo de comemoração e também de reflexão. Porém não deixa de ser motivo de constrangimento, pois, somente após 115 anos da abolição da escravatura, o archote da verdade e da justiça iluminou o parlamento brasileiro. Historicamente o parlamento brasileiro sempre foi branco, machista e sexista. Desde que não se ponha em risco seus privilégios e sua estrutura étnica, costuma aprovar essas leis, que para eles são meros penduricalhos políticos que agradam parte de seus eleitores.
Para o povo negro é de grande importância, pois traz em seu ventre a luz que poderá iluminar a invisibilidade histórica, programada e destinada ao povo negro. É uma reivindicação renitente do povo negro, o fim da invisibilidade. Acredita-se que ao entregar uma educação equânime a comunidade escolar, através de professores e profissionais da educação capacitados e sensibilizados, poderemos construir um futuro virtuoso, onde a diversidade seja valorizada e potencializada, onde as culturas em enlace produzam uma sociedade plural e afetuosa entre seus mais diferentes grupos étnicos.
Apesar de apresentar uma redação desidratada, a lei proporciona inúmeras possibilidades de abordagens. Há um mundo negro invisível a se descortinar, pronto para se saborear. Os docentes brasileiros podem enfim mergulhar no mundo de maravilhas que é a cultura negra, escudados pelo marco legal que os protegerá de aleivosias conservadoras e preconceituosas.
A composição étnica da população brasileira que detém mais da metade de negros e pardos, clama por uma educação equânime, que valorize o protagonismo de africanos e afrodescendentes em nosso país, mostrando que através de seus esforços, martírios e raízes, impuseram um vigoroso protagonismo, mesmo que de maneira forçada na maioria das vezes, na construção da nação brasileira.
Ao ser obrigatória já denota um mau começo. Lei que obriga quando é justa, mostra o atraso civilizatório daquele povo. Não é um bom começo, mas sem ela talvez nunca houvesse começo algum.
Os invasores e colonizadores que aqui aportaram, sempre escreveram ou reescreveram nossa história de acordo com seus oportunismos. Geralmente suas narrativas apresentavam uma visão deturpada, recheada de imperialismo senhorial, preconceituosa e evangelizadora. A construção da nação brasileira no que tange a poder e participação cidadã, sempre foi unilateral e segregacionista no que concerne a espaços concedidos aos diversos componentes étnicos da população. Durante todo o processo de desenvolvimento colonial, do território que era Pindorama, depois Terra de Santa Cruz e finalmente consolidado Brasil, nunca houve um momento de merecimento e paz para indígenas, africanos e afrodescendentes. Aos povos negros e indígenas, foi imposto a submissão do cativeiro, a humilhação da subserviência, a retirada da alma e da crença originária, a tortura, a sevícia e a morte. Como herança futura restou para a população de uma maneira geral, a lembrança da escravidão, do cativeiro, da dominação e da representatividade menor. É assim que os negros e pardos são geralmente vistos pelo restante da população. Os contemporâneos desses contingentes étnicos, são vítimas até os dias atuais de ações criminosas carregadas de discriminação e preconceito.
A lei encontra resistências enormes em sua consolidação. Talvez devido ao modelo deformado de processo civilizatório que foi posto em marcha pelos colonizadores europeus. De nada adianta lamentar a colonização portuguesa e exaltar a inglesa ou a francesa. As ex-colônias desses países também vivem em estado de miséria em todos os canto do planeta. Podemos constatar como passa hoje o Haiti, Argélia, Jamaica, Índia, Guianas, além de inúmeros países africanos, principalmente da África subsaariana.
Adam Smith em seu livro “A Riqueza das Nações” lembra que a palavra latina ‘colônia’ significava ‘plantation’, que na língua portuguesa quer dizer plantação. Porém a plantation aplicada ao novo Mundo, nesse caso não é somente uma área agricultável, mas sim um grande empreendimento colonial, com utilização de mão de obra escrava intensiva, sequestro e tráfico transatlântico de africanos, construção de navios negreiros, além da venda, compra e troca de mercadorias por escravos nos diversos entrepostos comerciais africanos.
A colonização do Brasil pelos portugueses foi muito violenta e perversa. Assim como na América Espanhola, foram exterminados milhões de autóctones com uma cultura riquíssima, centenas de línguas se perderam como se milhares de bibliotecas fossem incineradas. Somado a esse genocídio, milhões de cidadãos africanos foram sequestrados, retirados à força de seus países, de seus lares e trazidos em correntes para o cativeiro eterno. Esses africanos sempre foram considerados como seres sem alma, objetos falantes, por isso seus ‘senhores’ podiam dispor de seus corpos como bem o quisessem. O estupro sistemático das mulheres negras escravizadas foi um crime monstruoso que é mantido em silêncio, ou melhor, na invisibilidade. Essas mulheres eram violadas para gerarem filhos, que os escravizadores chamavam de ‘crias’, que ao completar a adolescência eram vendidos nos mercados de escravos. Imagine a dor dessas mulheres ao terem os filhos e filhas retiradas de suas vidas para serem comercializados como animais.
A escravidão no Brasil nunca foi pacífica ou cordial como muitos costumam dizer. Foi um período de intensos conflitos. A rebelião era comum nas fazendas e em outros empreendimentos escravocratas coloniais. A instituição dos quilombos se alastrava pelo país, o de Palmares durou inacreditáveis 100 anos e lutou mais de quarenta batalhas contra os impérios holandês e português, além de se bater contra os milicianos da época que eram os bandeirantes.
A historiografia oficial sempre apresentou uma versão equivocada sobre a resistência quilombola. Os negros dos quilombos eram considerados malfeitores, escravos fugidos, bandidos e ladrões. Os próprios livros de História do Brasil que eram aplicados nas escolas se referiam a Zumbi dos Palmares como um celerado, um bandido. A população palmarina em meados de 1600 chegou a compreender 20 mil habitantes, segundo dados da época, sendo que a população brasileira beirava 100 mil habitantes, segundo dados do IBGE. Na época a cidade do Recife possuía 7 mil habitantes. Portanto Palmares, possuía com certeza mais de 10% da população brasileira. Seria hoje, proporcionalmente falando, como o estado de São Paulo. Essas números impactantes ou foram apresentados de maneira incipiente ou sofreram a invisibilidade programada, ou seja, nunca constaram na historiografia oficial, certamente por um bom motivo, para que não houvessem mais rebeliões, para que houvesse arrefecimento no estado de rebeldia que incendiava o coração da maioria dos cativos.
Na verdade esses seres humanos escravizados se rebelaram com o cativeiro, com o trabalho forçado, preferindo morrer em combate respirando os ares da liberdade que perder a vida na humilhação do cativeiro, enriquecendo o escravizador.
O estado brasileiro contemporâneo sempre ocultou a verdadeira história de sua formação. De Palmares a Canudos passando pela Inconfidência Mineira com a martirização e glorificação de Tiradentes pelos republicanos. Da proclamação da república ao regime militar que se instalou em 1964 e perdurou por 21 anos. Da Abolição da Escravatura à Revolta da Chibata, sempre há uma narrativa de desconstrução do espírito rebelde, da ousadia do colonizado, do protagonismo do poder popular.
Com a lei 10.639/2003 podemos resgatar a verdade. Apesar de seu texto desidratado não oferecer muitas alternativas, podemos aproveitar e preencher essas lacunas com o que há de melhor no que concerne à representatividade do poder popular na construção desse país.
A lei delega aos profissionais da educação, principalmente ao corpo docente brasileiro, a missão de retirar a venda secular que foi colocada nos olhos da sociedade brasileira, sobre a verdadeira história do povo negro no Brasil.
Finalmente Brasil e África tornarão a se encontrar, agora sem os navios negreiros, sem as aberrações sociológicas, sem a involução civilizatória dos empreendimentos coloniais. A lei possibilitará a necessária desconstrução do imaginário popular acerca da escravidão pacífica e ‘democrática’. Escravidão que não pode ser naturalizada e tampouco romantizada pela literatura, dramaturgia ou meios de comunicação. A escravidão trouxe para o Brasil milhões de seres humanos que viviam no continente africano, vítimas do maior sequestro da história, com o pérfido intuito de serem escravizados e construírem o Novo Mundo. Através de um processo brutal e desumano, essas pessoas foram arrancadas de suas famílias à força e ao chegarem escravizados em outro continente, foram proibidos de constituírem família no Brasil e esquecerem para sempre as que haviam constituídas em África.
A condição de ser humano escravizado e sem alma, tornou o negro um ser inferior, sem direito a uma história. Fizeram parte de um mundo invisível, como ectoplasmas produtivos, vítimas de um mundo monumental e invisível, que aos olhos da lei e da sociedade colonial era estritamente legal.
O contingente étnico sequestrado veio de uma África imponente, com impérios grandiosos e com inúmeros avanços científicos e tecnológicos. Mas a empresa colonial eurocêntrica sempre mostrou o continente africano como um território de bárbaros que conviviam em condições inadequadas aos seres humanos, cultuando seitas demoníacas e sem os princípios básicos da civilização. Só não disseram que durante mais de 300 anos foram retirados daquele território as melhores mentes e os melhores corpos, os mais produtivos e capazes, que somaram mais de 10 milhões de seres humanos. Impossível um continente se desenvolver em toda a sua plenitude com uma canibalização histórica dessa magnitude.
A Lei 10.639/2003 veio em bom momento. As novas gerações aprenderão que houve um crime de lesa humanidade contra o povo africano e afrodescendentes. Entenderão e reivindicarão que esse crime necessita de urgentes reparações históricas. A lei deve cumprir um papel importante que é a transmissão não somente de conteúdos mas fazer a relação entre as etnias mais harmoniosa e retirar do imaginário popular a supremacia de um contingente étnico sobre outro.
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