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quarta-feira, 6 de março de 2024

Bergman, a República de Weimar e o Jesus da Goiabeira

O Ovo da Serpente, de Ingmar Bergman, é um filme denso e dolorido. Ali está, inteiro, o processo de esgarçamento social capitaneado por gente que se imagina salvadora da pátria e seus apoiadores nutridos pelo ressentimento. Mostra como se testava os limites da democracia alemã, em 1923: pela via do ódio e da corrosão das instituições, dos valores mais altos da existência e da civilização. Há risco de naufrágio, mas as massas, cada fez mais fanatizadas e manipuladas, se creem empoderadas. E ai de quem advirta sobre o rumo perigoso que trilham. O fanático encontra justificativa para tudo; sua atuação violenta silencia as vozes dissonantes. O título do filme de Bergman inspirou-se em Shakespeare, esse conhecedor da alma humana. É uma frase da tragédia Julio Cesar: "Pense nele como um ovo de serpente que, chocado, se tornaria mau, como os de sua espécie. E mate-o na casca". Algumas idéias - não as pessoas - devem ser cortadas no nascedouro. Elas chocam e dão origem a serpentes cujo veneno vai apodrecer a carne de quem as fez prosperar.
O Ovo da Serpente nunca deixa de ser atual. Naturalmente é uma obra prima cercada de gente laureada como Dino de Laurentis na produção, David Carradine (aquele do seriado Kung Fu) no papel de Alan Rosenberg, um trapezista judeu desempregado e a belíssima e talentosa Liv Ullman como Manuella, uma cantora de cabaré, cunhada de Rosenberg. O Ovo da Serpente e a série televisiva Berlin Alexanderplatz (1980) de Werner Fassbinder formam o que há de melhor na cinematografia mundial sobre a surpreendente República de Weimar, berço que embalou o nazismo de Hitler e suas monstruosidades. O Ovo da Serpente reproduz com a tradicional agucidade de Bergman os complexos panoramas sociais, ideológicos, religiosos, políticos e culturais do período. A pesquisa de Bergman é primorosa e o roteiro mais espetacular ainda. O cineasta reproduz com incrível fidelidade os passos de uma sociedade saída de uma guerra perdida, que antecipou a república declarada na cidade de Weimar, onde Goethe morreu. A nova república nasceu cheia de esperanças, mesmo sendo a representação política de um país humilhado e destroçado economicamente. O propósito da república liberal era reconduzir a Alemanha para um período de reconstrução e prosperidade. O cenário que surgiu com a república foi desesperador com inflação gigante, industrialização pífia, criminalidade elevada, anti-semitismo, anti-comunismo, desemprego em massa e a humilhação do Tratado de Versalhes. Foi o terreno fértil necessário para o nascimento do poderoso nacional-socialismo alemão que trouxe ao mundo o Terceiro Reich de Hitler. O período plúmbeo produziu obras de raro valor como A Montanha Mágica (1924) de Thomas Mann, Nosferatu (1922) de FW Murnau e Bram Stoker, Metropolis de Fritz Lang em 1927 e o Anjo Azul de Josef von Sternberg em 1930. A torrente expressionista era a resposta que a arte oferecia em contraponto ao medo e a insegurança do crescente movimento racista e xenofóbico, que foi respaldado por um corolário jurídico conservador que assistia a ascensão de um militarismo extremista que se apresentava como a única alternativa para livrar a a Alemanha dos comunistas de 1917, bem ali ao lado na Rússia. 
Não posso emitir um spoiler, pois vale à pena se surpreender com o filme. Os figurinos de Charlote Fleming se unem de maneira magistral à fotografia de Sven Nykvist que é fenomenal ao transmitir com fidelidade a aura daqueles tempos sombrios e assustadores. O Brasil também vive tempos assustadores e sombrios. O Ovo da Serpente nunca se mostrou tão atual e verdadeiro como aqui ao sul do Equador. Naquele distante 1923 Bergman denunciava as tentativas golpistas do Exército, a repressão a liberdade individual, aos gays, ao culto ao grande líder, ao ditador centralizador e a prática da segregação, do patriotismo enviesado, do nacionalismo inconteste, enfim, um ovo da serpente. Na Berlim de 1923 a população também buscava alimentos no lixo. Uma das cenas do filme mostra um mutirão de pessoas que se alimenta em torno do corpo de um cavalo morto. A arte imita a vida ou a vida imita a arte? Na Alemanha proto nazista, no período que antecedeu a II Guerra Mundial, a população alemã recebia incontáveis fake news por parte da chancelaria de Hitler, principalmente sobre uma provável invasão comunista onde as famílias alemãs deveriam dividir suas casas com os  russos em caso de vitória comunista. Obviamente que não chegaram ao absurdo da metafísica quando aqui no Brasil uma ministra afirmou que conversava constantemente com Jesus Cristo que surgia sentado em um galho de goiabeira. Essa aí deixou e muito, para trás o espírito inventivo e a criatividade do Bergman.
Mas as lições da República de Weimar são fielmente retratadas pelo cineasta sueco e são incrivelmente repetidas aqui no Brasil 80 anos depois. O nazismo inflou o espírito alemão propondo um nacionalismo exacerbado, um anticomunismo feroz e assustador e a pregação da defesa da família e de valores cristãos.
O resultado dessa união desaguou nos fornos crematórios dos campos de concentração e um total de 70 milhões de mortos no conflito entre 1939 e 1945, com o fim da guerra.
Bergman deixou um libelo acusatório recheado de beleza e magia, mostrando através do impressionismo a dureza do pensamento e do que são capazes os extremistas.

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