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Eu Negro

segunda-feira, 1 de maio de 2023

O Quartinho de Empregada e o Sonho de Laudelina

A mulher negra passou a vida no quartinho de empregada. Chegou ainda jovem na família abastada para prestar serviços de doméstica. Durante quarenta anos viveu no confinamento do quartinho de empregada. Pelo menos três gerações daquela família receberam seus cuidados. Ela sabia dos seus desejos, das manias, das malcriações, dos amores, dos casamentos e dos filhos e filhas que surgiram em profusão com o passar do tempo. Nunca se casou, não tinha tempo para namorar e nem se animava para se enfeitar, quanto mais ter um homem para engravidar e deixa-la sozinha com uma criança de colo. Sua vida sempre foi servir com eficiência ao núcleo familiar que a contratara e exigia sua atenção diuturnamente.
A rotina era intensa, fritava com cuidado os pasteizinhos de camarão do patrão, cuidava com atenção dos vestidos de madame e divertia as crianças participando de suas estripulias. Quando não estava dedicada no fogão era vista cuidando da limpeza dos banheiros e dos cômodos da casa. Se não estava passando a roupa na área de serviço corria com as crianças para embarcá-las na condução do colégio, para logo depois fazer compras no supermercado, assim era sua vida.
Nasceu em uma família paupérrima, numa distante e violenta periferia abandonada pelo poder público. Cresceu sentindo as carências e necessidades básicas de uma família negra pobre dos subúrbios. A cada dois meses costumava deixar a rica zona sul da cidade, onde trabalhava, para visitar sua família. Quando anunciava que ia passar o fim de semana com os seus era um deus nos acuda. Madame fechava a cara e falava poucas palavras, o patrão se desesperava pois ficaria sem seus pasteizinhos e as crianças sabiam que pelos menos durante esse fim de semana não ouviriam canções de ninar ou estórias fantásticas de um distante passado entranhado pelas maravilhas da cosmovisão africana. As crianças adoravam as estórias da mula sem cabeça, do padre voador, da loura atrás do poste e do cachorro de olhos de fogo que surgia no meio da noite. Pelo contrário, a petizada ouviria os gritos de desespero de madame por ter queimado as torradas e lamentos do patrão por não poder sair com sua camisa preferida que não estava passada e madame jamais ousaria ligar um ferro de passar roupa.
Nas férias escolares de fim de ano da criançada, a família viajava para as região serrana fora da cidade. Nesse período dedicado ao lazer ela não iria ter com seus familiares, pois viajava junto com madame e a família para as montanhas. Na casa de veraneio também tinha seu quartinho de empregada, para onde se recolhia depois de tirar a mesa do jantar, ter lavado a louça e contado estórias de ninar para a petizada. As jornadas eram duras e extenuantes, para ela não significavam férias e sim mais trabalho, jornadas dobradas com a mesma remuneração. Seu parco salário mínimo era economizado para ajudar sua família paupérrima nas agruras da vida de sofrimentos e carências cotidianas. Essa mulher negra passou sua vida servindo a uma família branca, vivendo na solidão do seu quartinho, sem reclamar, sempre solícita, amorosa e obediente. Esse é o destino de toda mulher negra que decide trabalhar como empregada doméstica e viver num quartinho de empregada de uma família burguesa.
O quarto de empregada enquanto dependência voltada às trabalhadoras da família é uma prática comum na sociedade burguesa brasileira. Na verdade é uma prática quase que exclusiva da elite brasileira. Praticamente não existe esse tipo de construção nas sociedades evoluídas do mundo moderno. Não há nada parecido com apartamentos dotados de quarto de empregada e prédios com elevador de serviço. Esse cômodo segregador faz parte de um microcosmo simbólico que oprime e demonstra à usuária sua limitação social. É uma fronteira demarcada entre a riqueza e a pobreza, um espaço diminuto que é construído como uma proto-representação da antiga senzala do tempo da escravidão.
O quarto de empregada é minúsculo, escuro, abafado, não tem janelas e possui uma pequena latrina em seu interior. Não é construído dentro dos princípios da arquitetura atual, que é tornar a vida do ser humano mais agradável e confortável. Pelo contrário, é construído para humilhar, para ser habitado pelas mulheres geralmente negras, que são obrigadas a dividir o exíguo espaço com diversas bugigangas guardadas pelos patrões. O quartinho é oferecido como um prêmio para mulheres pobres e periféricas que necessitam desesperadamente de trabalho. A burguesia brasileira é uma das mais cafonas e atrasadas do mundo. Ainda uniformiza seus empregados e obrigam seus motoristas a abrirem as portas dos carros para que usuários possam entrar e sair dos veículos. A relação das empregadas domésticas com seus patrões e patroas são humilhantes e chegam a beirar o ridículo, quando são proibidas de utilizar as dependências “sociais” da casa. Fora do horário de trabalho são relegadas ao confinamento dos seus cubículos, a viver no silêncio e purgar a solidão entre quatro paredes, carpindo a vida sofrida da senzala contemporânea.
O quarto de empregada é parte de uma barganha esperta e cruel que a burguesia oferece à frágil e precarizada mulher negra. Disponibilizam o quarto para a trabalhadora em troca do fim do incômodo do vai e vem diário rumo a seu lar e sua família nas periferias distantes. O sufocante quartinho é a garantia que os patrões oferecem para que suas empregadas não gastem até seis horas diárias dentro de transportes coletivos insalubres e abarrotados. Ao optarem em conviver cotidianamente com suas famílias, essas trabalhadoras se obrigam a chegar em casa por volta das 22h, exaustas, para acordarem às 5h da madrugada e chegar ao trabalho em tempo de servir o café da manhã da família e colocar as crianças na condução da escola. É uma rotina penosa que estressa e adoece essas mulheres negras.
Muitas dessas trabalhadoras fazem a opção de "morar" no quartinho de empregada para ter mais paz e descanso, mais "qualidade de vida" e consequentemente mais saúde. Preferem a singularidade do confinamento forçado, da solidão programada ao sacrifício da logística cotidiana dos transportes públicos. No quartinho podem ver o mundo através de uma TV jurássica e ouvir notícias através de um rádio despertador. Quando o sono chega têm à disposição uma velha caminha de solteiro, herdada dos patrões há muitos anos. A chantagem patronal faz parte do jogo que elas são obrigadas a jogar. Para não ter que se despencarem pelas ruas escuras e perigosas das noites e madrugadas das periferias, existe a opção cruel do quartinho. Várias assim preferem pois mesmo que inadequado, viver no quartinho compensa evitar passar pela cansativa maratona diária, que além de drenar sua saúde também afeta sua segurança e seu orçamento.
Os patrões por outro lado aproveitam a precarização da situação dessas mulheres e malandramente transformam a jornada diária das trabalhadoras domésticas em um processo de exploração continua. Além da pesada jornada diária que um grande apartamento exige das domésticas, a mulher refém dos patrões fica responsável pela guarda das crianças, para que os pais possam cumprir suas concorridas agendas sociais. Acrescentando que as domésticas cuidam das crianças quando o casal decide viajar ao exterior sozinhos. A pessoa de confiança que sempre estará à disposição para o cuidar das crianças será a empregada doméstica, eternamente cativa em seu quartinho de dormir. É pessoa de confiança sempre disponível com quem os pais podem deixa-las em confiança. 
O quarto de empregada é uma troca injusta, uma forma de corrupção social, onde os patrões oferecem o quartinho como moeda de troca, garantindo o uso do chuveiro elétrico, o restolho da comida da família e um afago ou outro de vez em quando, como se faz com os cães da casa. Os apartamentos geralmente são muito bem localizados, em áreas nobres e seguras. Falando em cães, a trabalhadora também costuma sair à noite e dar um passeio com o cachorro de madame pelo bairro chique, para que ele possa espairecer e fazer suas necessidades fisiológicas. Muitas trabalhadoras domésticas aceitam e gostam de viver assim, por conta de uma história de vida precarizada a que historicamente foram submetidas. Outras não, passam por todas essas humilhações por ter filhos para criar que dependem da sua proteção. Filhos que são criados por vizinhas, irmãs, tias e avós para que suas mães negras possam servir e atender as necessidades cotidianas de famílias brancas da elite.
A sociedade brasileira é tolerante com o racismo. Para ela a situação da população negra está posta, é uma realidade e nada pode ser feito para modificá-la. Que os negros encontrem trabalho no subemprego, que estudem em escolas públicas precarizadas, que utilizem o sistema de saúde criminoso que o estado brasileiro oferece aos mais vulneráveis. A burguesia é a reprodutora de todos esses males ao trazer para si o imenso cabedal de privilégios que o capitalismo pode oferecer. Para ela, a burguesia, poder comer caviar e manter a trabalhadora negra confinada no quartinho faz parte do jogo antropológico da vida. E mais, a elite se sente benemérita por estar gerando um emprego para aquela figura quase ectoplasmática, que sofre a invisível solidão de sua senzala moderna que é o quartinho de empregada.
Mas a mulher negra não está mais entre nós. Após consumir sua vida se dedicando ao bem estar de uma família que nunca foi sua, morreu solitária, silenciosamente, na cama de uma enfermaria coletiva de um hospital público. Morreu onde morrem os pobres, os desvalidos, os deserdados da Terra como disse Fanon. Morta em uma enfermaria coletiva de um hospital público, longe da família, entre estranhos, na solidão dos miseráveis.
Depois de servir a três gerações daquela família como empregada. Depois de cuidar tão bem de tantas pessoas, crianças, jovens e adultos, jaz imóvel no caixão de terceira categoria. Imóvel e honesta por ter cumprido tão bem sua missão de se dedicar a cuidar daquela família com todo o amor desse mundo. É o fim silencioso de mais uma mulher negra trabalhadora em um país racista e segregador. Das dezenas de pessoas brancas de quem cuidou, apenas duas estão ao seu lado para a despedida final. Um final triste e melancólico onde seu destino foi a cova rasa do cemitério da distante periferia. Agora deve estar no céu das empregadas, longe dos sufocantes quartinhos, feliz e recompensada em belíssimos ambientes, onde nenhuma delas trabalha e gozam de todos os privilégios e mordomias que nunca puderam ter aqui na Terra.
O Brasil possui 6 milhões de trabalhadores e trabalhadoras domésticas. A luta pelo reconhecimento da atividade profissional das trabalhadoras domésticas é marcada pela intolerância e invisibilidade do racismo estrutural. Mesmo 80 anos depois da criação do movimento sindical que luta pela categoria, somente 3 em cada 10 domésticas possuem carteira profissional assinada por seus patrões. Se por um lado romantizaram a trajetória sofrida de Carolina de Jesus, para esconder o racismo e os efeitos deletérios do capitalismo sobre as mulheres negras, por outro lado invisibilizam uma mulher negra admirável, que deveria sua trajetória política debatida na academia e na sociedade com mais ênfase. Seu nome é Laudelina de Campos Melo, chamada pela ditadura militar de “O terror das patroas”. Laudelina dedicou toda sua vida à política, sendo militante da Frente Negra Brasileira e do Partido Comunista Brasileiro. Foi através de sua visão de mundo que criou em 1936 na cidade de Santos, em São Paulo, o movimento sindical que passou a exigir melhores condições de trabalho para todas as pessoas que exercessem atividades domésticas remuneradas.
Mineira como Carolina de Jesus, Laudelina nasceu 6 anos após a promulgação da Lei Áurea, em Poços de Caldas, Minas Gerais. Como quase todas as meninas negras daquele período, começou a trabalhar aos sete anos de idade e foi obrigada a abandonar os estudos para ajudar a mãe na criação dos de seus irmãos. Aos 16 anos passou a participar de reuniões do movimento negro. O sociólogo Joaze Bernardino-Costa, em sua tese de doutoramento, narra que no período mais próximo do fim da escravidão, o serviço doméstico era mencionado nas leis sanitárias para proteger os patrões de suas empregadas, que eram vistas como ameaças às famílias empregadoras. De acordo com Laudelina em entrevista à educadora Elisabete Pinto, publicada em sua dissertação de mestrado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp):
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"A situação da empregada doméstica era muito ruim. A maioria daquelas antigas trabalharam 23 anos e morria na rua pedindo esmola. Lá em Santos, a gente andou cuidando, tratou delas até a morte. Era um resíduo da escravidão, porque era tudo descendente de escravo".

As entidades em que Laudelina militava à época, o PCB e a Frente Negra Brasileira, foram fechadas e colocadas na clandestinidade pela ditadura de Getúlio Vargas com a instalação do Estado Novo entre os anos de 1937 e 1946. A discriminação se tornou mais evidente quando a Consolidação das Leis do Trabalho que unificou as leis trabalhistas que existiam naquele período, não incluiu a categoria das domésticas em seu escopo de proteção. Laudelina se alistou na Força Expedicionária Brasileira e se juntou ao esforço de guerra para combater as tropas do Eixo, comandadas por Adolph Hitler. De acordo com Laudelina: 
"Hitler foi o maior carrasco que existia naquela época. Dizia no Livro Azul que ele eliminaria todas as raças que não fossem arianas, principalmente a raça negra seria eliminada. Então aquilo me levou, me trouxe uma revolta dentro de mim. Então resolvi me alistar para servir a pátria"

Laudelina trabalhou como empregada doméstica até meados dos anos 50 e vivia de uma pensão e da venda de salgadinhos no bairro em que morava.
Com o fim do Estado Novo sua associação voltou a funcionar mas continuou a ser perseguida pela ditadura militar com o golpe de 64, quando sua entidade, para não encerrar as atividades, se abrigou na União Democrática Nacional – UDN, que tinha como líder máximo o governador Carlos Lacerda.
Chegando aos 70 anos Laudelina afastou-se da entidade por motivos de saúde e após pedidos insistentes de suas companheiras voltou ao batente e após a promulgação da Constituição Cidadã de 1988 a associação finalmente se tornou um sindicato. Laudelina morreu em 1991 aos 86 anos de idade e não pode assistir a vitória da categoria que fundou ver aprovada a Emenda Constitucional nº 72 de 02/04/2013, a PEC das Domésticas. A PEC das Domésticas estabeleceu igualdade dos direitos como: Jornada de trabalho de oito horas diárias e 44 semanais; Pagamento de horas extras; Adicional noturno; Descanso de no mínimo de 1 hora e máximo de 2 horas; Obrigatoriedade do recolhimento do FGTS por parte do empregador; Seguro-desemprego; Salário-família; Auxílio-creche e pré-escola; Seguro contra acidentes de trabalho; Indenização em caso de demissão sem justa causa. Vale à pena registrar que somente dois congressistas votaram contra a PEC das Domésticas e um desses dois foi o Deputado Federal à época Jair Bolsonaro.
A atuação política dessa mulher negra e pobre foi fundamental para que essa enorme categoria conquistasse seus direitos a nível nacional. Laudelina também deixou seu nome registrado na luta contra o racismo e contra a discriminação das mulheres, já que sempre carregou consigo o estigma da cor e da origem. Uma mulher admirável que se rebelou contra o sistema e mesmo com sua luta invisibilizada pela sociedade e pelo racismo estrutural nunca abriu mão de seus princípios revolucionários.

*Amauri Queiroz é Escritor.

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