O magnífico continente africano é chamado de Berço da Humanidade e Berço da Civilização. Através de sua formidável diversidade étnica e cultural, pode contar toda a história do desenvolvimento da humanidade. O planeta Terra possui 6 continentes, sendo que o africano é o terceiro maior, com uma área de cerca de 30 milhões de quilômetros quadrados. A área do continente corresponde a mais de 20% da área total do globo terrestre. No continente habitam em torno de 1 bilhão de habitantes, tornando-o o segundo mais populoso do planeta. Muitos pensam equivocadamente que a África é um país, mas é um imponente continente composto por 54 países, sendo 48 continentais e 6 insulares, tendo como exemplo as ilhas de Cabo Verde e Madagascar.
São creditadas ao continente africano algumas das invenções mais importantes da civilização, onde podemos destacar o elevado conhecimento do povo egípcio, que nos surpreende até os dias atuais com seus insondáveis mistérios, muitos que se mantêm indecifráveis por mais de 5 mil anos.
Os povos africanos da antiguidade sempre se destacaram pela navegação, conhecimento da astronomia, domínio do ferro, construções, medicina e literatura. São famosos os périplos dos filósofos gregos ao continente para beber da fonte do conhecimento de suas diversas etnias. Pablo Picasso confessou que as artes africanas o influenciaram diretamente para a criação do Cubismo.
O Programa Origens Humanas do Museu de História Natural Smithsonian dos Estados Unidos avalia que, entre 1 e 2 milhões de anos atrás iniciou-se o processo evolutivo que há 200 mil anos atrás no continente africano surgiu o homo sapiens, o primeiro hominídeo que deixou o continente africano e se espalhou pelo planeta, propiciando o surgimento de novas etnias. Com o passar do tempo, esses grupos humanos continuaram com o processo migratório e espalharam-se mais ainda mundo afora. Ao se estabelecerem nas mais diversas regiões do globo terrestre, esses grupos humanos foram adquirindo naturalmente as características necessárias para sobreviver nas referidas condições climáticas locais. Na medida em que foram se estabelecendo nos diferentes territórios, as características locais necessárias foram se acentuando e quanto mais se distribuíam pelo planeta, as diferenças se acentuavam mais ainda. Os grupos humanos que hoje habitam o planeta Terra são originários daqueles distantes ancestrais africanos. Em tese, todos os seres humanos do planeta são afrodescendentes, independentemente de suas características atuais. As diferenças que hoje perpassam todos os seres humanos não passam de meras adaptações climáticas.
A melanina por exemplo é uma proteína que está presente em nossa pele, olhos e cabelo. Nos povos negros, sua coloração escura serve como filtro para que haja proteção contra as altas exposições de raios UV, ou seja, da radiação solar. Esse mecanismo evolutivo da natureza permite que seres humanos possam habitar locais de grande aridez e com alto grau de exposição solar, como é o caso do continente africano. A melanina é o filtro protetor natural que evita a deterioração do corpo humano pelo excesso de radiação no DNA das células. Portanto, quanto mais sol, mais melanina e, consequentemente, quanto mais melanina, mais o filtro aumenta, mais a pele requer proteção, escurecendo a superfície da pele. Podemos afirmar que a melanina é um mega protetor solar gratuito e necessário que os africanos receberam da natureza. Os povos dos países escandinavos possuem pouca melanina porque a incidência solar naquela região do planeta é bastante reduzida, portanto possuem pouca melanina na pele para que possam receber a quantidade necessária de vitamina D no corpo e assim possuem a pele bastante branca, quase um caso de albinismo. Seus cabelos não necessitam da proteção que os cabelos crespos africanos oferecem à população negra devido as altas temperaturas. Nesse caso, o cabelo crespo cria uma camada de ar entre o couro cabeludo e a superfície da cabeça para proteção da calota craniana. Nas regiões frias, de pouca incidência solar, essa proteção não se faz necessária e os cabelos perdem o poder de proteção que os cabelos africanos possuem, tornando-os lisos e caídos. Os olhos da população escandinava também são diferentes dos povos africanos, geralmente são claros nas cores azul ou verde. São mais claros devido à necessidade de maior absorção de luz, que é mais reduzida nos países frios que no continente africano, onde os olhos são profundamente negros para protege-los da intensa luz solar. Excetuando um detalhe aqui e outro ali, não existem diferenças cruciais, até pelo fato de que todos os habitantes do planeta serem praticamente iguais no interior do corpo humano, onde o sangue é vermelho e todos os órgãos são semelhantes, o que evidencia de maneira inexorável que todas as diferenças existentes entre os seres humanos são meras adaptações climáticas. No campo cognitivo todos amam igualmente, choram suas perdas, sorriem com as conquistas, constituem suas famílias, criam seus filhos, trabalham, vivem e morrem como habitantes do planeta Terra, sem diferenças que não sejam as culturais.
O Mercantilismo, as Grandes Navegações e a Chegada ao Continente Africano
Com o advento das grandes navegações do mercantilismo que se revelaram como um movimento expansionista que antecedeu ao capitalismo, os povos europeus passaram a procurar novos territórios em busca de matéria prima para suas manufaturas e ao mesmo tempo novos mercados para comercialização de seus excedentes. Portugal e Espanha iniciaram o ciclo das grandes navegações enquanto estados nacionais e desembarcaram na América e no continente africano, transformando para sempre aqueles territórios.
O brutal processo de conquista dos novos territórios através de invasões e guerras de conquista, causou um verdadeiro genocídio nos povos africanos e nas populações ameríndias. Os povos africanos, principalmente da África Subsaariana, em sua grande maioria, viviam sob o regime tribal, onde a oralidade era a forma de transmissão principal de suas ancestralidades, cosmovisões, ciência e cultura. Os europeus aproveitaram muito bem o conhecimento apreendido em África, transportando-o para a Europa, criando e sistematizando suas respectivas narrativas. Esse conhecimento foi apresentado como uma nova matriz civilizatória planetária, que vai da Filosofia à Astronomia, passando pela Medicina, Engenharia e Arquitetura.
A Grécia e o Império Romano, o Renascimento e o Iluminismo, já na modernidade, foram os grandes beneficiários do conhecimento africano adquirido. As grandes invenções europeias, os grandes avanços da ciência, quase todos, em sua maioria, possuem as digitais da cultura africana. A maneira que a Europa encontrou para se assenhorar desse conhecimento foi a conquista territorial, o colonialismo e a escravidão.
A colonização do continente africano pelos países europeus tem seu início no século XV quando Portugal passou a controlar algumas terras da costa atlântica africana. A obsessão por encontrar um caminho marítimo para a Índia levou a frota lusitana a encontrar o continente africano, rico em possibilidades para o atendimento demandado pela atividade mercantil.
Os portugueses enfrentaram no continente africano as duras condições impostas pelo clima inclemente e também amargaram pesadas perdas decorrentes tanto pelos naufrágios como por conflitos com tribos guerreiras africanas.
O novo território mostrou-se rico em recursos naturais e os portugueses após conseguirem conquistar por guerra ou por parcerias os novos espaços, passaram a explorar metais, pedras preciosas, agricultura e marfim.
A exploração do continente africano pelos europeus se manteve restrita ao litoral até meados do século XVIII, pois as investidas econômicas dos colonizadores eram mais frequentes nas Américas que na África. Com a guerra de Independência dos Estados Unidos e a Revolução Industrial, os europeus passaram a buscar cada vez mais matérias primas e possibilidades de comercialização em outros territórios.
A partir de então houve uma explosão de expedições exploratórias ao interior do continente africano por parte de aventureiros e missionários cristãos que investiam na conversão daqueles povos ao cristianismo e ao mesmo tempo forneciam informações sobre as possibilidades econômicas e comerciais dos novos espaços encontrados.
As expedições exploratórias traçaram novos mapas e rotas comerciais para os diversos países europeus, que eram protagonistas de disputas ferrenhas por novos territórios no continente africano, em um processo denominado neocolonialismo.
Os europeus passaram a investir em metodologias sofisticadas de dominação com a implantação de poderosos sistemas de repressão com unidades militares e também por um severo rigor administrativo. A metodologia garantia o perfeito funcionamento da empresa colonial que gerava grandes lucros para o crescente sistema protocapitalista. No século XIX não existia mais a figura do monarca absolutista do século XVI, mas sim a presença dos poderosos grupos econômicos capitalistas. Foi a partir desse momento que se passa a ouvir o termo imperialismo, pois, a dominação territorial é centrada no campo político, militar e mercantil, sem a arquitetura institucional do absolutismo.
O neocolonialismo do século XIX está diretamente ligado aos ventos da Segunda Revolução Industrial, que chegou com as novidades tecnológicas ancoradas nos transportes, comunicações, agricultura e manufaturas. Esses avanços exigiam novos mercados na medida em que a produção era cada vez maior e portanto exigia cada vez mais matéria prima e energia.
A fundamentação ideológica do racismo na colonização do continente africano foram baseadas em interpretações equivocadas da obra de Charles Darwin, onde, segundo os europeus, a superioridade europeia sobre os outros grupos étnicos do planeta estaria comprovada através do “darwinismo social”. Os avanços tecnológicos e a produção intelectual e científica da época, o poder do Cristianismo com a Escolástica e principalmente com o Renascimento e a lufada luminosa do Iluminismo. Esses aspectos evolutivos da Europa, em tese justificavam a validação da superioridade dos brancos sobre os povos “negros” e “amarelos”.
Os europeus estavam realmente convictos de sua superioridade sobre as populações do continente africano. Tomando como princípio basilar cristianizar e civilizar esses povos, passaram a investir na proposta de colonização desses países encontrados no continente africano, trabalhando para que esses novos territórios se adequassem ao modelo mercantilista europeu.
O controle espiritual dos povos africanos pelos missionários cristãos da Europa causou um grande estremecimento na crença do sagrado e da cosmovisão africana. O Presidente do Quênia Jomo Kenyatta declarou: “Quando os brancos chegaram, nós tínhamos as terras e eles a Bíblia. Depois eles nos ensinaram a rezar e quando abrimos os olhos nós tínhamos a Bíblia e eles a terra”.
O neocolonialismo levou os países europeus a uma competição cerrada entre eles próprios. Por conta disso as nações europeias incentivavam ataques de grupos tribais aliados contra entre outros grupos tribais aliados de outros países.
A tentativa de solucionar esses conflitos veio através da Conferência de Berlim, proposta por Portugal e realizada na Alemanha durante os anos de 1884/1885. O encontro foi presidido pelo Chanceler Prussiano Otto Von Bismarck, conhecido como Chanceler de Ferro.
A conferência tinha como objetivo pacificar e pactuar entre os países participantes a ocupação do continente africano. A conferência reuniu catorze potências imperialistas do século XIX como Império Otomano, Império Austro-Húngaro, Império Alemão, Estados Unidos, Rússia, Grã-Bretanha, Dinamarca, Portugal, Espanha, França, Bélgica, Holanda, Itália, Suécia e Noruega.
O novo desenho geopolítico do continente africano pós conferência criou inúmeros conflitos tribais com guerras sanguinárias entre os diversos grupos étnicos, que devido ao novo desenho passaram a conviver dentro das mesmas fronteiras que seus inimigos.
A conferência redesenhou o mapa geopolítico da África, passando por cima de milhares de anos de tradições e cosmovisões existentes. O sistema colonial europeu possuía uma força avassaladora diante do povo africano. As principais transformações começavam pela destruição da cosmovisão africana e da matriz religiosa dos colonizados. A proibição da utilização da língua mãe era um dos primeiros atos do colonialismo, e a educação formal era ofertada somente na língua do colonizador, que impunha à força o idioma europeu próprio da nação colonizadora. Os valores europeus eram passados gradualmente e cobrados no médio prazo. O cristianismo era a principal transformação cultural imposta aos colonizados, que possuíam sua religiosidade milenar do sagrado africano passada através de inúmeras gerações.
A Escravização de Africanos e o Tráfico Transatlântico
Portugal percebeu que poderia lucrar de maneira exponencial se investisse no tráfico de africanos escravizados, que seriam trocados por mercadorias vindas da Europa, principalmente bebidas alcoólicas, tabaco e diversos manufaturados.
Os escravos eram comercializados inicialmente no próprio continente A partir do século XVI a atividade escravagista se intensificou e o tráfico negreiro se tronou uma atividade fundamental para a assentação das bases do Novo Mundo pelos europeus.
A busca insaciável por cada vez mais escravos para as Américas e Caribe causou um enorme prejuízo a diversas etnias africanas. Inúmeros grupos tribais deixaram de trabalhar nas atividades econômicas das rotas comerciais e passaram a se especializar na capturas de seres humanos para serem comercializados com os europeus.
Novos territórios colonizados eram vistos pelas metrópoles como meros fornecedores de matéria prima e mão de obra escrava. A sofisticação da empresa colonial era tamanha que arquitetou o que denominou-se chamar de ‘comércio triangular’, que consistia na estratégia de logística marítima onde quando o navio chegava da Europa com aguardente, rum e outras bebidas alcoólicas, tabaco, manufaturas, armas e pólvora, já havia uma carga humana, ou seja, africanos escravizados que eram destinados ao Novo Mundo. Chegando nas Américas ou Caribe os escravizados eram desembarcados e os navios eram novamente carregados com matéria prima, rumando novamente para a metrópole, onde eram carregados novamente com manufaturas, armas, pólvora, aguardente e tabaco para rumarem incontinente ao continente africano, completando a triangulação.
O sequestro e o tráfico transatlântico de africanos escravizados para as Américas e Caribe constituiu o maior crime de lesa humanidade que a Europa cometeu em toda sua história. As estimativas históricas calculam que entre 10 e 15 milhões de africanos escravizados foram trazidos para o continente americano.
Durante mais de 300 anos, saíam quase que diariamente 1 ou 2 navios repletos de africanos sequestrados para serem escravizados no Novo Mundo. Foram milhares de viagens que cruzaram o Atlântico rumo ao Caribe e as Américas. Sendo que essas travessias atingiram a dolorosa cifra de 2 milhões de seres humanos atirados ao mar pelos mais diversos e pérfidos motivos.
A maioria dos sequestrados era trazida do interior, em uma caminhada apressada e desumana. Chegando ao litoral, eram despidos de todas as suas roupas e entregues nus ao traficante europeu, que organizava o embarque nos navios negreiros.
O interior do navio negreiro era minúsculo e insalubre. Para otimizar o lucro, os traficantes amontoavam até cerca de 400 escravos por navio, homens, mulheres e crianças despidos e acorrentados, respirando um ar fétido e sufocante pelo cheiro de vômito, urina e excrementos que eram feitos no próprio local em que estavam acorrentados. O choque de realidade desses seres humanos era abissal, pois há pouco estavam em suas aldeias em suas rotinas cotidianas com suas famílias, vivendo a vida em paz e repentinamente essas pessoas se viram caçadas como animais, amarradas e trazidas para os navios que rumavam para uma terra distante, de onde nunca mais retornariam. Não veriam mais a África, suas aldeias e suas famílias, passando o resto da vida em uma melancolia sem fim.
Naquele tempo, as grandes navegações padeciam de problemas crônicos, como escorbuto, disenteria, varíola, entre outras doenças. A capacidade de disseminação do vetor era enorme, pois os africanos sequestrados navegavam em grupos e acorrentados, terrivelmente próximos uns aos outros, onde o contágio era praticamente imediato. Pelos diários dos navios negreiros da época, os dados indicam essas cifras, uma vez que cada sequestrado doente que era jogado ao mar para não contagiar o coletivo era contabilizado no Livro dos Mortos como prejuízo diante do investimento aportado na operação de aquisição de cativos.
O investimento na compra de africanos sequestrados na África e o seu respectivo transporte para o Novo Mundo significavam o que se pode chamar de “investimento de alto risco”, devido a diversas ocorrências como as descritas acima, às quais podemos somar suicídios, depressão, ataque de piratas, motim, naufrágios, fuga de sequestrados entre outros. A empresa colonial que comercializava esses seres humanos contabilizava criteriosamente cada africano doente que era jogado ao mar e seus preços seriam diluídos nos preços dos outros cativos que chegavam ao continente, para compensar o prejuízo com a perda daquela vida.
O porão do navio era um lugar de horror. Para evitar motins e sublevações, muitas vezes os traficantes colocavam nos porões dos navios etnias inimigas que, mesmo acorrentadas, tentavam se matar uns aos outros e passavam a viagem inteira se vigiando. Os escravistas seguiam a velha premissa do “dividir para reinar”. Como os grupos de africanos inimigos passavam a viagem inteira acorrentados mas tentando se trucidar, os traficantes não precisavam se preocupar com tentativas de fugas ou rebeliões.
Não havia uma rotina de alimentação. Os alimentos, uma mistura horrível de restos de carne e farelo, era atirada nos porões, e a divisão era realizada pelos próprios cativos, que priorizavam os homens e os grupos dominantes.
O medo maior era a calmaria do mar, fator muito comum de acontecer. Quando o barco entrava em uma calmaria, ficava parado, aguardando a chegada dos ventos, o que, às vezes, levava vários dias. Na medida em que os dias passavam e o navio mantinha-se parado, o capitão mandava jogar africanos doentes ao mar para compensar o tempo perdido na calmaria e equilibrar a quantidade de ração que seria necessária para se chegar ao porto de origem. Os cálculos eram diários, e os mais doentes eram descartados ao mar com um peso amarrado nas pernas para irem diretamente ao fundo do oceano. Foram tantos africanos atirados ao mar que os tubarões mudaram suas rotas migratórias milenares durante o tempo do tráfico transatlântico para seguirem os navios negreiros com seus descartes humanos ainda vivos. Era uma rota de sangue e horror e o festival de barbaridades dos tubarões devorando homens, mulheres e crianças servia de diversão para as tripulações brancas dos navios. Além de todo esse cenário dantesco, as mulheres negras escravizadas que eram embarcadas nesses navios, sofriam as mais bárbaras práticas por parte das tripulações dessas embarcações.
O Fim do Tráfico Transatlântico
Em meados do século XIX, a atividade criminosa do tráfico transatlântico estava entrando em seu ocaso e agonizava em seus últimos momentos. Embora a resistência pelo fim do tráfico negreiro fosse muito grande em razão da dependência do trabalho escravo. O envolvimento da Inglaterra foi fundamental para que esse ciclo perverso tivesse fim.
Após a declaração da independência do Brasil, o governo inglês condicionou seu apoio e reconhecimento ao novo país com a condição de que a escravidão fosse extinta.
O reconhecimento da Inglaterra aconteceu em 1825 com o compromisso que a abolição ocorresse até 1830. Com a concordância do governo brasileiro o Brasil oficializou seu compromisso aprovando em 1831 a Lei Feijó, que decretava a proibição do tráfico negreiro definitivamente, o que jamais aconteceu.
O fim do tráfico transatlântico e posteriormente da escravidão seguiu um roteiro que começou com os ventos do Iluminismo e da Revolução Industrial. As novas relações de produção impostas pela Revolução Industrial faziam parte da consolidação do sistema capitalista, onde o consumo que geraria lucro e riquezas necessitaria de um grande mercado consumidor. A Inglaterra necessitava ampliar seus mercados e com a mão de obra escrava predominando nesses territórios ela passou a encontrar dois grandes óbices que foram ao ausência de mercado consumidor de alto impacto e o desinteresse por esses territórios pela aquisição dos novíssimos engenhos à vapor e outros equipamentos mecânicos, já que a mão de obra escrava cumpria com todas asa demandas exigidas pelo mercado.
Nesse contexto, a Inglaterra, com o intuito de vender máquinas a vapor para substituir o trabalho braçal e fazer florescer um promissor mercado consumidor, proibiu o tráfico transatlântico de africanos escravizados através da Lei Bill Aberdeen em 1845, proibindo o tráfico de escravos africanos. A lei previa que a marinha inglesa, tinha poder para interceptar, perseguir e aprisionar os navios negreiros que transportassem escravos. Com a Lei Bill Aberdeen houve um intenso movimento do tráfico transatlântico, para logo após sofrer uma grande redução e finalmente o arrefecimento do horroroso empreendimento colonial transatlântico, que oficialmente teve fim. Os ingleses patrulhavam o Oceano Atlântico e os portos do Brasil. Os navios negreiros que conseguiam burlar o bloqueio em alto mar, desembarcavam os africanos sequestrados em praias distantes das capitais para somente depois atracar sem cativos nos portos oficiais brasileiros. Por isso, a expressão “para inglês ver”, onde durante as fiscalizações portuárias dos navios oriundos do continente africano pelos militares ingleses, nenhum africano escravizado era encontrado.
No âmbito interno, no ano de 1850, foi promulgada a Lei Eusébio de Queirós que proibia o tráfico de africanos escravizados para o Brasil. A lei foi aprovada muito a contragosto pelos parlamento brasileiro escravista e foi apenas uma resposta às demandas diplomáticas por parte dos britânicos para que essa prática tivesse fim.
O comércio hediondo de escravização de seres humanos é uma ferida que dificilmente será cicatrizada e marca o grau de perversidade do período colonial. O que ocorreu durante todo esse processo foi uma tragédia humanitária sem precedentes com milhões de mortos e escravizados. Deixando o continente africano sem seus melhores corpos e mentes que foram retirados durante 350 anos com navios negreiros saindo diariamente do continente todos as dias, levando africanos escravizados para a construção do projeto capitalista no Novo Mundo.
As Colônias Europeias no Continente Africano
A posição social dos africanos nos países colonizados era apontada de acordo com o grau de adaptação aos valores culturais europeus. Na pirâmide social do sistema colonial o europeu era o topo da pirâmide sempre. Os nativos que compreendiam o idioma alienígena e conheciam bem os costumes europeus ocupavam posições intermediárias e eram encarregados de funções administrativas que incluíam o trato com a massa de colonizados que não falavam o idioma da metrópole. A base da pirâmide era composta por aqueles que não se comunicavam na língua do colonizador e eram destinados ao trabalho árduo e análogo à escravidão.
O sistema colonial não impôs pacificamente sua dominação e cultura. Aconteceram incontáveis rebeliões e revoltas, principalmente no norte do continente onde encontramos o Egito, Argélia, Tunísia e Marrocos, que além da perda de soberania, lutaram contra a imposição de outra religião e contra o trabalho obrigatório que era imposto pelos colonizadores. O neocolonialismo praticamente destruiu o tecido social africano, sua força de trabalho, sua organização social milenar e seu imenso estoque étnico intelectualizado, ao transportar criminosamente para o Novo Mundo mais de 10 milhões de seres humanos que foram sequestrados e escravizados durante 350 anos.
A posse do corpo do outro, o poder de violá-lo, espancá-lo, a destruição de sua psiquê e o arrefecimento de sua autoestima transformaram o africano escravizado em “objetos”, seres sem alma, instrumentos falantes.
A partir da espoliação e da destruição do tecido social africano, cresce mais ainda a tese da subalternidade de raças, onde a etnia negra foi considerada inferior e não civilizada. Ao ser considerada inferior, não civilizada e herege, a população do continente africano passou a ser objeto de cobiça enquanto mão de obra não remunerada, ou seja, escravizada. Pois a conquista do território, sua exploração e a escravização de seus habitantes eram justificadas pela igreja e pelos impérios como necessária para que aquelas almas fossem salvas do pecado.
A história comprova que houve um grande salto epistemológico no processo civilizatório europeu, após o contato com os povos africanos. O mesmo não pode se dizer do contrário, onde o continente africano após ter contato com os europeus sofreu um terrível processo de espoliação e controle de seus territórios por parte dos europeus.
O Neocolonialismo
A ocupação do continente africano sofreu um grande impulso com o que se convencionou chamar de neocolonialismo. Esse movimento se deu a partir de meados do século XIX, quando a Europa vivia os efeitos da Segunda Revolução Industrial. As transformações que o capitalismo sofreu através desse impulso tecnológico, gerou a necessidade de buscar mais matérias primas e outros mercados para comercialização das manufaturas. A ambição das nações europeias se voltou para a Ásia e África, territórios onde passaram a empreender expedições exploratórias e de conquista.
O neocolonialismo africano promoveu verdadeiros genocídios naquele continente. O Congo, por exemplo, que foi colonizado pelo Rei Leopoldo II da Bélgica perdeu mais de 10 milhões de habitantes, mortos sob tortura pelo regime do monarca belga. O projeto belga no Congo foi um dos primeiros passos que motivou o neocolonialismo, seguido do projeto de Portugal em Angola, Cabo Verde, Moçambique e São Tomé e Príncipe, e pelo projeto francês no continente que colonizou a Argélia, Senegal, Tunísia, Alto Volta, Costa do Marfim, Mali, Níger, Congo, Gabão, Chade, Camarões e República Centro Africana.
O sistema colonial no continente africano começou a ruir devido a diversos fatores previsíveis e imprevisíveis. O principal que poderia ser previsto foi a formação de uma burguesia africana formada nas melhores instituições ensino da Europa. Esses filhos dos antigos chefes tribais e de funcionários africanos com posições de destaque na empresa colonial veio a formar a classe média africana e passou a desenvolver o pensamento emancipacionista de descolonização. Por outro lado, os ventos da Revolução de 1917 na Rússia varriam o planeta e se tornaram uma bandeira concreta de luta contra o capitalismo opressor. A união desses e de outros fatores propiciou a preparação do terreno para que as sementes da liberdade fossem plantadas.
O Movimento Anticolonialista e o Fim das Colônias
O processo de descolonização do continente africano foi marcado por um período de efervescência política intensa violência. Os países europeus deixaram um triste legado às futuras gerações africanas, ao modificar de maneira radical o modo de vida daquela população através de um modelo administrativo arbitrário e opressor, que alterou significativamente o modo de vida de milhões de pessoas, não respeitando a religiosidade, a organização política e a cultura daqueles territórios. O modelo de desenvolvimento que foi implementado era alicerçado na exploração intensiva das reservas minerais, agrícolas e energéticas.
Após a Segunda Guerra Mundial o movimento de descolonização do continente africano sofreu novo impulso, com a criação das Nações Unidas em 1948, que através de sua carta de fundação garantia a autodeterminação dos povos. A partir de então o movimento anticolonialista. As potências europeias saíram da guerra com suas economias exauridas e sem condições de enfrentar as guerras de libertação em curso no continente africano. Os Estados Unidos e a Rússia entraram no período chamado de Guerra Fria e ambos passaram a apoiar as guerras anticoloniais africanas, disputando agressivamente através de apoio logístico e militar os movimentos emancipacionistas africanos, visando estabelecer parcerias econômicas que lhes seriam fundamentais na manutenção de seus regimes, tanto capitalista como socialista. A guerra civil de Angola foi um dos grandes exemplos, onde os Estados Unidos apoiavam o grupo guerrilheiro UNITA e a União Soviética apoiava o outro grupo guerrilheiro denominado MPLA.
Em muitos países africanos a independência ocorreu de maneira pacífica, onde a metrópole transmitiu o poder político progressivamente e garantiu a manutenção do poder econômico em mãos de grupos ligados à metrópole. O último país colonial a deixar o continente africano foi Portugal que abandonou definitivamente suas aspirações imperialistas na África em 1974, após a Revolução dos Cravos.
Após a conquista da independência por todos os países do continente africano, as imensas instabilidades sociais e políticas controladas e represadas afloraram ao mesmo instante, explodindo em incontáveis conflitos étnicos separatistas, que desaguaram em horrorosos genocídios como o de Ruanda em 1994, onde 800 mil pessoas pertencentes à etnia tutsi, foram massacradas e mortas pelas milícias da etnia hutus. O conflito étnico foi o resultado da administração colonial europeia, que governou o país com mão de ferro em parceria com a etnia tutsi, minoritária mas considerada como superior no país. Quando a guerra de libertação explodiu os hutus que eram a grande maioria da população iniciaram uma dolorosa vendeta, massacrando os tutsi de maneira implacável, que não conseguiram resistir pois foram abandonados pelas forças militares coloniais e entregues à própria sorte.
A população do continente africano atualmente ainda sofre com os restolhos políticos deixados pelo colonialismo. As enormes dificuldades econômicas e sociais são cicatrizes de um período que naturalizou a violência e o escravismo como prática cotidiana, deixando de lado os principais primados humanitários.
A imagem que é disseminada pela mídia através dos tempos é de um povo sem cultura, enfraquecido, doente e desorganizado politicamente. Em momento nenhum se coloca que toda essa situação advém de um processo desumano exploratório sanguinário e opressor. Que as nações europeias enriqueceram através desse processo, que podemos comparar metaforicamente a uma transfusão de sangue ao contrário, onde o doente fornece initerruptamente seu sangue para a manutenção e desenvolvimento do corpo do sadio.
Apesar da independência política, os países africanos ainda não se libertaram do jugo econômico das metrópoles. Muitos dos grandes grupos econômicos que iniciaram o período colonial ainda exercem um grande poder sobre as administrações dessas nações, interferindo nos destinos políticos através de corrupção ou financiamento de grupos paramilitares que defendem seus interesses.
As Nações Unidas necessitam empreender com mais efetividades movimento na direção de reparações através do Fórum de Afrodescendentes criado para estabelecer políticas de promoção para a população afrodescendente e avançar no cumprimento das deliberações assentadas no Plano de Ação da Conferência de Durban de 2001. As nações que enriqueceram com a dilapidação das riquezas africanas, principalmente aquelas da Conferência de Berlim, deveriam criar um grande fundo internacional para reparações voltado ao continente africano e aos afrodescendentes da diáspora, objetivando construir um quadro de políticas de ações afirmativas que promovam projetos de inclusão de povos africanos e afrodescendentes nas nações que compõem a ONU.
*Jornalista, Escritor, Palestrante, Consultor
em Direitos Humanos e Combate ao Racismo.
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