Postagem em destaque

Não deixe o samba morrer

quarta-feira, 5 de março de 2025

Não deixe o samba morrer

Agora cismaram que nos desfiles de escolas de samba tudo é religiosidade africana. Esse pessoal podia estudar um pouco mais os enredos sobre a cosmovisão africana e suas ancestralidades. O Continente Africano possui 54 países com mais de 100 idiomas e culturas diferentes. De muitos desses países  vieram os escravizados que participaram de nossa cons tituição indo-afro-ibérica. A empresa colonial e escravista transportou para o Brasil entre o Século XVI e o Século XIX cerca de 5 milhões de africanos escravizados, sendo que 1 milhão deles e delas morreram na travessia e foram jogados ao mar, muitos ainda vivos mas com enfermidades.
No século XVI o Continente Africano era totalmente desconhecido pelos europeus. Salvo a costa do Marrocos onde os portugueses conquistaram Ceuta em 1415, quando partiram de Lisboa com 220 navios e 50 mil homens.
A partir de Ceuta os portugueses passaram a avançar pela costa africana prevendo a instalação de entrepostos que serviriam de apoio para a carreira das Índias, completada por Vasco da Gama em 1498.
O Cristianismo na África Subsaariana ainda era muito incipiente no Século XVI mas tomou impulso com a emissão das s bulas papais Dum Diversas e Romanus ok, onde a Igreja Católica passou a permitir a escravização de não-cristaos, gentios e sarracenos. 
Os escravizados que foram trazidos para o Novo Mundo cultuavam suas religiões e credos de matriz africana, desse modo não conheciam outra religião e tampouco o Cristianismo. Voltando para a Marquês de Sapucaí, se o enredo for contar alguma história do povo negro, que construiu essa nação, necessariamente passará pelas religiões de matriz africana. A própria existência das escolas de samba está intimamente vinculada aos centros de Umbanda Omolokô e terreiros de Candomblé. Foi no intenso caldeirão cultural da Pequena África, no Centro do Rio de Janeiro, que o samba carioca começou a tomar forma. A referência principal da gênese do samba foi a casa da Tia Ciata, Iaquequerê do terreiro do famoso babalorixá João Alabá, que assumiu o terreiro do babá Bamboxé Obitikô, que voltou para Lagos na Nigéria após a abolição da escravatura. 
Tia Ciara curou uma ferida renitente na perna do Presidente Wenceslau Braz, que em reconhecimento proibiu a polícia de interferir tanto na prática religiosa do terreiro, como nas rodas de batuque que varavam as madrugadas. Existiam também outras "tias" como Amélia, Perciliana (mãe de João da Baiana), Bebiana e Carmem do Xibuca de Amaralina, que animavam as noites da Pequena África. Dali o samba foi se moldando e se espraiando para todo o Rio de Janeiro. A turma do Estácio com Ismael Silva, Bide, Marçal , Brancura e Edgard deram luz ao ritmo cadenciado para o samba que é tocado assim até hoje. Madureira tinha o Ogã e jongueiro Paulo da Portela que fundou o Conjunto Oswaldo Cruz que passou a se chamar Vai Cono Pode e depois Escola de Samba Portela. Na Serrinha tinha a Dona Eulália, Vó Joana e Tia Maria, todas do jongo, além de Mestre Fuleiro, Molequinho, Mano Décio e Eloi Antero Dias, o Mano Elói, pai de santo que levou o samba para a Mangueira. Carlos Cachaça que foi testemunha ocular do fato afirmou que Mano Eloi apresentou o samba no terreiro de Omolokô de Tia Fé, na presença de Zé Espinguela, o Pai Olufá e outros presentes. Tia Fé, figura lendária e venerada até hoje em Mangueira fundou um rancho carnavalesco denominado Pérolas do Egito, que junto com outras agremiações formaram a Estação Primeira dé Mangueira em 1928 sob a direção de Cartola, que era cambono da Umbanda Carioca ou Omolokô, Saturnino Gonçalves pai de Dona Neuma, Abelardo da Bolinha, Carlos Cachaça, Seu Euclides, Zé Espinguela, Seu Maçú e Pedro Paquetá. Em Vila Isabel tinha Noel Rosa que viveu embates famosos com Wilson Batista.
Aliás, Paulo da Portela e Zé Espinguela no ano de 1929, realizaram o Primeiro Encontro de Escolas de Samba no terreiro de Zé Espinguela Engenho de Dentro que foi a gênese dos atuais desfiles de escola de samba. Esses pioneiros e pioneiras passaram muito aperto com a repressão da época por fazerem samba. 
Após recebermos este tesouro cultural, passamos a ser cerceados pela branquitude beócia de nossa ancestralidade, tentando através de discursos anódinos, conter nosso vigor e paixão pela riqueza de nossa origem multicultural e pluriétnica. Para eles é fatigante ouvir nossas ancestralidades e de acordo com seus desejos, não poderemos mais contar nossas epifanias, cantar as histórias de nossos ancestrais na festa que nós criamos e eles querem ditar as regras. Até compreendemos que é difícil emocionados das bolhas do zap compreenderem a complexidade cultural da cosmovisão africana. Assim é mais fácil se levantarem escudados em falsos biombos de proselitismos. Pode haver Oktoberfest todos os anos com as mesmas mulheres loiras, olhos azuis, caucasianas e batavas, aboletadas em cima dos mesmos carros alegóricos, cantando as mesmas canções saxônicas que está tudo certo. Mas nos carros alegóricos dos negros não pode. Como diz Milton Cunha, escola de samba é negritude, pretitude, gente suada falando alto, tomando cerveja, é macumba sim, é resistência e aquilombamento. Quem não pode com mandinga não carrega patuá. Valeu Zumbi.

segunda-feira, 3 de março de 2025

O desfile das escolas de samba que você provavelmente não conhece

Acabei de sair do desfile da Mangueira como membro da consagradíssima Ala dos Compositores, a primeira desse tipo nos desfiles e fundada por Cartola. Não sei se sou merecedor mas me empenho por ser, sabendo que por ela passaram além de Cartola, Nelson Cavaquinho, Nelson Sargento, Zé Ramos, Hélio Turco, Leci Brandão (ainda membro), Carlos Cachaça, Saturnino Gonçalves, Zagaia, Xangô, Jamelão, Jurandir, Zé Criança, Geraldo da Pedra, e Gradim entre tantos outros.
Dentro de um desfile existem vários desfiles. Enquanto a escola passa desfilando sua imponência, centenas de pessoas trabalham esbaforidas para que nenhum contratempo aconteça ou então corrigindo contratempos que podem retirar pontos da escola. 
O desfile não permite teste drive para os carros alegóricos. Nos ensaios técnicos as atenções são voltadas para som, luz, evolução e cronometragem. No desfile prá valer as operações pré desfile são tensas: colocar os destaques no topo dos carros alegóricos, subir os componentes nas alegorias, verificar os obstáculos aéreos, bombeiros civis para prevenção de incêndio, hidratação dos componentes na concentração, dar os últimos retoques nas alegorias, conferir as fantasias das alas e garantir o melhor alinhamento possível das fileiras de componentes antes de entrar na avenida. Correndo por fora tem a afinação dos instrumentos da bateria e os testes de som p os intérpretes e da própria bateria. Existem ainda diversos detalhes que são infinitesimais como maquiagem da comissão de frente, efeitos especiais e por aí vai.
O resultado final é sempre consagrados, destarte um tombo aqui e outro ali, uma alegoria perder uma peça, abrir espaços entre as alas (buracos) e a escola ter que correr no final para não extrapolar o tempo. 
Geralmente todas as escolas passam bem, dentro do tempo mas sempre com uma pequena falha em algum setor. É o preço que se paga por colocar quase 4 mil pessoas em uma grande ópera à ceu aberto com músicos e cantores sem formação musical da academia, separados por esculturas gigantescas se movendo em direção ao final do desfile.
É no mínimo uma façanha. Portanto, independente do resultado, os componentes dessas agremiações colocaram seus corações em casa detalhe, em casa alfinete, nos ensaios de canto, nos ensaios de rua, nos ensaios técnicos e nas fantasias. Essas pessoas em prol das cores de seus pavilhões deixam a vida de lado e mergulham na obsessão da construção do carnaval de suas escolas. São as garbosas Velhas Guardas com seus bravos componentes octogenários, os membros das baterias e comissões de frente com seus ensaios extenuantes, poetas e compositores responsáveis pelo hino que a escola levará para a avenida, om seus ensaios extenuantes, passistas, casais de Mestre- Sala e Porta-Bandeiras que ensaiam de forma ensandecida e as deliciosas alas das comunidades onde o sangue da escola pulsa com mais vigor.
O esforço da direção da escola para controlar esse turbilhão é louvável. São centenas de profissionais assalariados na quadra de ensaios e no barracão de alegorias, abastecimento de bares a quadra, realização de eventos para arrecadação de fundos, controle de mensalidades, gastos com fantasias, viagens de representação etc. Tudo isso acontece o ano inteiro para que a escola desfile por 80 minutos para jurados imparciais vê inclementes. 
Ao fim somente uma será campeã e todas as outras amargarão a derrota e o ano investido com tanta fibra e dedicação.
Esses são os desfiles dentro do desfile. É como um iceberg onde só enxergamos a parte acima da superfície. Faz pó arte da nossa cultura e é sempre bom lembrar que todo esse espetáculo tem sua origem na Umbanda Omolokô e nos terreiros de Candomblé da Pequena África.

sábado, 1 de março de 2025

O samba pede passagem


A escola de samba e o samba sempre foram os principais espaços de socialização da comunidade negra no Brasil. Desde os primórdios da História do Samba que o povo negro se empenhou em manter um espaço comunitário, onde pudesse compartilhar com sua família atividades sociais e de lazer. A indústria do entretenimento na sociedade burguesa sempre foi voltada para as pessoas da classe média, com razoável poder aquisitivo. Nesses espaços, os negros com raríssimas exceções, podiam frequentar e participar dos eventos como convidados. O apartheid social e econômico pelo qual a população negra foi submetida, após o fim da escravidão, levou os negros a se organizar em torno dos principais processos onde mantinham algum tipo de domínio, protagonismo e poder, o Candomblé e o samba. A escola de samba é o templo profano do povo negro. Nela as famílias se reúnem e se desenvolvem no aprendizado de suas diversas características artísticas e culturais.
A cosmovisão do samba está entre as coisas mais deliciosas dessa vida. Não há nada mais gratificante que desfrutar de um bom momento, cantando e relaxando em uma boa roda de samba, ou então nos ensaios de quadra das escolas de samba que alegram os fins de semana de parte da sociedade em todo o país. A sensação é divina, e nada melhor que soltar o corpo, se entregar ao deleite do ritmo pagão, cantando e alegrando-se em animados arrasta-pés, regados a uma boa cachaça de alambique, aquela que “matou o guarda”, acompanhada de uma boa cervejinha gelada com um pratinho de tira-gosto como acompanhamento.
Quem nunca deu aquela sambadinha gostosa, ao ouvir um samba malandreado, dolente e gostoso? Bem devagar, devagarinho, como canta o Martinho da Vila. O samba sempre foi a cadência da batida do coração do povo brasileiro. É o principal alimento cultural que nos nutre e o maior legado que a população negra delegou para nossa sociedade. Suas origens são ligadas ao continente africano, aos tambores, ao Candomblé e aos folguedos da cultura negra além-mar.
João Gilberto cantava que o samba veio da Bahia e estava correto. Pois esse menino dengoso, o samba, veio aconchegado no colo ancestral das Mães de Santo do Recôncavo Baiano, principalmente de Santo Amaro da Purificação e Cachoeira, que após a abolição da escravidão foram viver no Rio de Janeiro, para onde partiram em um movimento denominado “Diáspora Baiana” ou “Êxodo Baiano”. Partiram levando na bagagem essa joia cultural fantástica que encanta o planeta. O samba é filho dileto do Jongo, do samba de roda do Recôncavo, possuindo uma relação direta com o culto aos Orixás, Inquices e Voduns, do Omolokô e daquilo que Cartola chamava de Umbanda Carioca, da qual era cambono. O samba também bebeu na fonte das tradições culturais e religiosas da África Subsaariana. Nasceu como representante de uma representação cultural que servia como momento de lazer e ao mesmo tempo como o bálsamo que amenizava o terrível sofrimento pelo qual passava o povo negro escravizado, tanto no eito de trabalho como na senzala, nos tempos do Brasil Colônia e Brasil Império.
O parto do samba carioca ocorreu com certeza nos terreiros de Candomblé e Centros de Umbanda Omolokô da Pequena África e também nas rodas de Jongo como dizem alguns historiadores. Havia uma grande concentração desses terreiros na região que abrangia um imenso território no Centro da cidade do Rio de Janeiro denominado Pequena África que ia dá Gamboa/Pedra do Sal até a Praça XI.
A certidão de nascimento do samba contém algumas lacunas, mas com certeza no formato que conhecemos hoje, surgiu entre o fim do século XIX e o início do século XX. Veio ao mundo abençoado pelos sons dos atabaques e dos tambores tocados com dedicação e amor por ogãs e alabês das casas de santo. Nasceu no instante compreendido entre o cansaço e a preguiça. Cansaço porque depois de um trabalho puxado de axé no terreiro, era necessário dar descanso ao corpo, que há pouco estava entregue ao poder espiritual, para que assim recobrasse as forças. Preguiça porque era necessário preparar o terreiro para o ritual agora profano, com comidas, tambores e outros apetrechos essenciais.
O batizado com o nome “Samba” pode ser oriundo do termo angolano “Semba”, que significa umbigada. É um tipo de dança profana do povo bantu, mas não sagrada como são as umbigadas do Jongo, como afirmam alguns pesquisadores.
Foram as tias baianas que assistiram e abençoaram o nascimento do samba, forrando seu berço com carinho e tradição. O samba em seu berço foi ninado com canções do samba de roda do Recôncavo entremeadas com batuques, lundus, polcas, maxixes e jongo. Essas tias baianas eram em sua grande maioria Ialorixás renomadas e poderosas, exerciam grande influência sobre a comunidade negra no Centro do Rio de Janeiro.
O início do século XX foi um momento de intensa felicidade para a população negra, que vivia sob os efeitos idílicos do fim da escravidão. Os negros comemoravam e agradeciam principalmente à princesa Isabel pela promulgação lda Lei Áurea, que lhes libertou definitivamente do cativeiro do branco opressor, depois de intermináveis 350 anos de sofrimentos. Apesar de tantas agruras e dificuldades, a alegria havia voltado aos corações da população negra tão sofrida e vilipendiada pelo cruel regime recém-extinto. Eram livres, mas nunca deixaram de ser vigiados pelo sistema de repressão e controlados pelo sistema jurídico, que sempre exarou leis em defesa da elite branca e sistematicamente contra a população negra.
Apesar da vigilância constante da polícia, os negros e negras se reuniam em diversos lugares denominados “zungus” para comemorar a liberdade, comer comidas típicas, buscar trabalho, praticar religiosidade e como não podia deixar de ser, utilizavam o samba de roda, o jongo, o maxixe a polca e o lundu como fundo musical para suas comemorações. A certidão de nascimento do samba foi lavrada nos terreiros das tias baianas, com destaque para as tias Ciata, Amélia e Perciliana.
Os sambistas consideram Tia Ciata como a grande parteira e mãe amamentadora do samba carioca. Nascida em 1854, em Santo Amaro da Purificação, terra de Caetano Veloso, Assis Valente e Maria Bethânia, chegou ao Rio de Janeiro em 1876 aos 22 anos de idade, onde casou e constituiu família, tendo sido mãe de 14 filhos.
Ciata além de grande doceira e festeira, era uma Mãe de Santo respeitada pelo povo negro. Ficou mais famosa ainda após ter curado com suas ervas e unguentos uma ferida renitente na perna do à época Presidente do Brasil, Wenceslau Brás. Sua proximidade com o Presidente da República, que lhe garantiu que a polícia não interromperia e encerrasse sob catatau as suas obrigações religiosas nem as animadas festas embaladas principalmente pelo imberbe samba.
Além da própria riqueza musical reinante, naquela época não havia transportes durante a madrugada. Os frequentadores dos terreiros aproveitavam que deveriam aguardar o dia amanhecer para retornar aos seus afazeres cotidianos. A madrugada era consumida então em animadas rodas de batuque, já que a designação “samba” ainda não havia sido cunhada. Geralmente o arrasta-pé virava a noite e a partir daí pode ter surgido o termo “sambar até o sol raiar”.
Pela casa de Tia Ciata passaram grandes nomes da música popular e do samba como Ataulfo Alves, Paulo da Portela, Cartola, Carlos Cachaça, Natal da Portela, Zé com Fome, Silas de Oliveira, Pixinguinha, Hilário Jovino e Donga. Sinhô, Ismael Silva, Bide, Marçal que eram frequentadores assíduos formavam a Turma do Estácio. Essa turma de bambas do Estácio foi a que mudou o ritmo do samba para uma versão mais cadenciada, fugindo do maxixe, como o que se toca até os dias de hoje nas baterias das escolas de samba. Essa mesma turma também cunhou o nome “escola de samba”, pois ensaiavam defronte a uma Escola de Formação de Professores no bairro do Estácio.
Antes do samba que conhecemos o que se dançava era um ritmo maxixado, como podemos constatar no fonograma do primeiro samba gravado no Brasil por Donga, o famoso “Pelo Telefone”. Muitos sambistas torcem o nariz para esse samba, dizendo que o fonograma é um maxixe. Outros sambistas alegam que Pelo Telefone não foi o primeiro samba, pois havia duas gravações anteriores que eram samba como Casa de Baiana em 1913 e Urubu Malandro em 1914. Pelo Telefone foi uma composição coletiva com participação de vários frequentadores da casa da Tia Ciata, mas foi registrada na Biblioteca Nacional por Donga somente, como sendo dele. Mais tarde incluiu também Mauro de Almeida como seu parceiro na composição. Um dos maiores defensores da tese de criação coletiva foi o baiano Hilário Jovino que alegava ser um dos compositores. Hilário Jovino era pai do malandro Saturnino da Praça 11 e primo de Heitor dos Prazeres. Precursor dos ranchos e do Carnaval do Rio de Janeiro, Jovino fundou inúmeros ranchos, que seriam os blocos e escolas de samba de hoje, sendo que um dos mais famosos que se tem notícia llfoi o Ameno Resedá, que tinha entre seus admiradores mais destacados o escritor Coelho Neto. O Ameno Resedá é lembrado até hoje nos desfiles das escolas de samba.
Os sambistas pioneiros não eram vistos com bons olhos pela sociedade. João da Baiana contava que seu pandeiro tinha a assinatura de um senador da república, pois, somente assim poderia transitar livremente com o instrumento pela cidade. Os sambistas eram perseguidos e geralmente vinculados pela polícia a marginais, malandros e capoeiristas, grupo também perseguido e para quem havia sido criada a lei no Código Penal de 1890 que punia quem praticava a capoeira, a Lei da Capoeiragem, cujo texto era o seguinte: "Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação de capoeiragem: pena de prisão celular por dois a seis meses".
Após a Lei Áurea em 1888, o governo brasileiro iniciou um gigantesco processo de embranquecimento de sua população, estimulando a imigração de europeus, primeiramente com alemães e italianos e depois do Japão, quando em 1908 atracou no Porto de Santos o navio Kasato Maru com a primeira leva de 781 imigrantes japoneses que vieram contratados para trabalhar nas fazendas do interior paulista.
Enquanto o país passava pelo processo de embranquecimento ou eugenia como muitos alegam, no Rio de Janeiro era iniciado um imenso processo de gentrificação por parte do governo.
O Rio de Janeiro era a capital do Brasil no início do século XX. O país recém-saído da escravidão era a maior cidade afroatlântica da época, mas ainda com vestígios de vocação rural. Com os novos tempos passou a sofrer mudanças que visavam sua inserção entre as grandes capitais do mundo moderno, reivindicando sua nova vocação urbana incipiente e engatinhando na industrialização. O Centro do Rio era composto por muitos cortiços, alguns com até 2 mil pessoas como o “Cortiço Cabeça de Porco”, daí o nome de cabeça de porco para qualquer tipo de ajuntamento de habitações pobres do mesmo formato. As epidemias sanitárias se sucediam na capital e a classe burguesa clamava por higienização e modernização do centro da cidade.
O Presidente Rodrigues Alves deu plenos poderes ao Prefeito Pereira Passos, que governou a cidade entre 1902 e 1906. Passos foi inspirado pela modernização da cidade de Paris, dando início ao período conhecido como Belle Époque, onde um dos principais exemplos é o Teatro Municipal no Centro do Rio de Janeiro, uma obra prima da arquitetura da época, desenhado por Francisco Pereira Passos, filho do Prefeito, que optou em desenhar uma cópia fiel da Ópera de Paris. Apesar dos esforços de Pereira Passos a inauguração do Teatro Municipal aconteceu somente em 1909 sob a gestão do Prefeito Souza Aguiar, seu sucessor.
O processo de gentrificação da capital foi avassalador e violento, com foco no centro da cidade, onde cortiços foram derrubados à revelia para dar lugar a grandes edifícios, e modernas avenidas. Essas intervenções de Pereira Passos foram consideradas autoritárias, quando grande parte da população pobre foi expulsa desses cortiços sem indenização, tendo que se deslocar para as encostas dos morros da cidade, originando um incremento no número das poucas favelas que existiam naquele período.
A modernização transformou a imagem da cidade com a inauguração da moderna e ampla Avenida Central, no estilo dos boulevares parisienses, com suas lojas e cafés de luxo. Também foi inaugurada a impressionante à época iluminação pública, a reforma do Porto do Rio de Janeiro, o primeiro sistema de saneamento básico eficiente e a vacinação forçada da população sob o comando do sanitarista Oswaldo Cruz. A vacinação compulsória levou a deflagração da insurgência negra denominada “Revolta da Vacina”. A partir da Bélle Epoque, com a modernização da capital do país, o Rio de Janeiro entrou definitivamente para o clube das grandes e modernas cidades do planeta.
A população negra foi a que mais sofreu com os impactos da gentrificação. Primeiro tendo que abandonar o local de moradia de forma compulsória, contra sua própria vontade. Segundo dentro do contexto cultural, onde as manifestações populares como o samba e a capoeira foram perseguidas e proibidas, devido ao forte recorte racial de seus praticantes, motivada pela intenção das elites da capital de europeizar o cenário das artes e da cultura da cidade, banindo a crescente cultura negra do cenário urbano. Para tanto passaram a prender sambistas que portavam instrumentos musicais e verificavam se seus dedos possuíam calos adquiridos com a arte de tocar percussão. Todo esse contexto de gentrificação originou a criação de uma forte burguesia carioca, que repudiava qualquer manifestação de origem africana ou afrodescendente.
Com o passar dos anos, o samba foi se organizando e aos poucos e cada vez mais passando a fazer parte da vida cultural da cidade. No início dos anos 1920 o carnaval de rua organizado era alegrado pelos ranchos carnavalescos da burguesia. Os desfiles aconteciam na moderna Avenida Central e eram um feudo exclusivo da elite e da classe média. Os pobres não podiam desfilar nos ranchos e corsos da Avenida Central, devido ao alto custo exigido na confecção das fantasias, e também por não pertencerem ao mesmo estrato social dos foliões. O primeiro rancho popular a desfilar foi o “Reis de Ouro” de Hilário Jovino, que criou as figuras do Mestre Sala e Porta Bandeira e também o conceito de enredo, depois absorvidos pelas escolas de samba. Os pobres também desfilavam em blocos e cordões compostos por maioria negra que vivia na região da Pequena África. Esses blocos mantinham a tradição de usar atabaques e tambores que marcavam o ritmo das batucadas africanas mescladas com elementos do Candomblé. As primeiras licenças para desfiles de blocos emitidas pela polícia datam de 1889 para os blocos “Grupo Carnavalesco São Cristóvão”, “Teimosos do Catete”, “Corações de Ouro” e “Piratas do Amor”, entre outros.
Havia ainda os “blocos de sujo”, que assim eram denominados porque eram compostos por trabalhadores que saíam do trabalho diretamente para o carnaval, sem tomar banho. Esses trabalhadores-foliões compravam máscaras de Clóvis ou de Velhos e saíam na frente dos cordões, abrindo o desfile dos blocos. Marchavam sempre em grupo, abrindo os desfiles, criando então o embrião das atuais Comissões de Frente das escolas de samba.
Nos anos 1920 a contribuição da Turma do Estácio foi fundamental para compreendermos o samba como é tocado hoje. Os sambistas do Estácio eram famosos e também participavam dos saraus da casa da Tia Ciata, com destaque para Ismael Silva, Bide, Marça e Brancura. Bide foi o criador do surdo de marcação, quando utilizou pela primeira vez uma lata de banha de 20 quilos vazia, colocou papel de saco de cimento molhado amarrou nas extremidades com barbante e arame, aquecendo o instrumento na fogueira. A marcação do surdo criado pela Turma do Estácio retirou o ritmo maxixado do samba e manteve sua característica cadenciada que é utilizada até os dias atuais. Bide também alterou a estrutura de apresentação dos sambas das escolas que eram cantados de maneira improvisada, passando então a ser compostos e ensaiados antecipadamente.
Em 1929, Zé Espinguela ou Pai Olufá, Pai de Santo do Morro da Mangueira e o sambista Paulo da Portela, realizaram o primeiro encontro de escolas de samba, defronte à casa de Zé Espinguela no bairro do Engenho de Dentro. Juntos definiram critérios como Mestre Sala e Porta Bandeira, Samba de Enredo, Ala das Baianas em homenagem a Tia Ciata e a Bateria no que seria a gênese do que assistimos hoje nos sambódromos de todo o país.
Nos anos 1930 os desfiles das escolas de samba eram desorganizados. Não havia uma metodologia definida e a única obrigação das escolas era passar defronte à casa de Tia Ciata, na Praça 11, para reverenciá-la e receber sua aprovação. Não havia um local pré-definido e nem premiação. Nos anos 40 passa a ter início a organização “profissional” das escolas de samba. Alguns sambistas eram muito respeitados pelo mundo do samba e poderiam ser chamados de Embaixadores do Samba, autênticos líderes de ébano, entre os quais se destacava Paulo da Portela e Zé Espinguela. Através das gestões de Paulo da Portela e outros sambistas, o Presidente Getúlio Vargas, empenhado em demonstrar apreço pelo nacionalismo e pela cultura nacional, promulgou finalmente a descriminalização do samba durante o Estado Novo.
A partir desse momento, livres juridicamente para atuar, as escolas de samba se proliferaram com força total, reunindo principalmente nos subúrbios inúmeras agremiações como o Império Serrano, dissidência do Prazer da Serrinha no Morro do São José Operário em Madureira, Conjunto Oswaldo Cruz que depois se tornou Vai Como Pode e finalmente Portela também de Madureira/Oswaldo Cruz, Salgueiro na Tijuca que foi o resultado da fusão de duas escolas do Morro do Salgueiro as “Depois Eu Digo” e “Azul e Branco”. A Imperatriz Leopoldinense na Zona da Leopoldina originária da Recreio de Ramos, tendo como base o Complexo do Alemão, Mocidade Independente de Padre Miguel da Zona Oeste que surgiu a partir do time de várzea local “Independente Futebol Clube”, Unidos Vila Isabel fundada por seu China inspirado não bloco “Acadêmicos da Vila”, bloco da “Dona Maria Tataia” e dos clubes “Unidos da Vila” e “Vila Futebol Clube”. Vila Isabel é um bairro conhecido pelo talento de seus compositores, sendo que os dois mais conhecidos são Noel Rosa e Martinho da Vila, a Deixa Falar sempre carregou sua enorme tradição, que depois se tornou Estácio de Sá, no Centro do Rio de Janeiro, a Vizinha Faladeira reivindica ser a primeira escola de samba e foi a agremiação que introduziu o luxo nos desfiles. A Beija Flor de Nilópolis, da Baixada Fluminense é uma das grandes forças atuais do samba e investe em enredos voltados para a negritude, tendo em Joãosinho Trinta, Neguinho da Beija Flor, Selminha Sorriso e Pinah seus grandes destaques. A nova geração é composta pela União da Ilha do Governador , Unidos do Viradouro, Porto da Pedra, ambas do lado de lá da Baía de Guanabara, Grande Rio, Unidos da Tijuca e São Clemente, União da Ilha, Caprichosos de Pilares, Acadêmicos de Santa Cruz, Unidos de Lucas, entre muitas outras.
As escolas de samba seguem uma antiga tradição de se organizarem por famílias. Tirando a Mangueira como exemplo, podemos ver o poder da escola distribuído entre as famílias. Entre os principais clãs da negritude daquele território estão as famílias da Dona Neuma/Saturnino/Chininha e Guesinha, Geraldo da Pedra, Zé Criolinho, Zé Ramos, Cartola e Zica, Dória, Tia Fé/Gilda/Roberto Firmino e Guanaira, Nelson Sargento, Tinguinha/Elmo, Carlos Cachaça, Zé Criolinho,  Tantinho, Hélio Turco, Alvinho e Padeirinho. Todas famílias importantes na genealogia mangueirense, que sempre mantiveram o poder entre si, excetuando um ou outro pequeno hiato.
A Mangueira surgiu da união de diversos blocos e ranchos da comunidade. No morro já existia o rancho da de Tia Fé denominado Pérolas 

Paulo Barros contra Zumbi

O Carnavalesco Paulo Barros causou polêmica ao afirmar seu repúdio aos enredos afros das escolas de samba. O mais surpreendente é que ele como carnavalesco afirmar que "não gosta" de enredo sobre a cosmovisão africana. Qualquer ser humano que que tem o privilégio de montar esta grande aula a céu aberto que é o desfile de uma escola de samba, dirigida para milhões de pessoas em todo o planeta, deveria ter orgulho de mostrar as raízes africanas que estão entranhadas na identidade nacional de maneira inquestionável. 
Não se trata de "gostar", trata-se sim de honestidade intelectual, pois, em 2022 na Paraíso do Tuiuti, Barros apresentou o enredo afro "Ka Riba Tí Ye - Que nossos caminhos se abram", quando a escola amargou o décimo primeiro lugar. Portanto o debate deveria se concentrar não em gostar ou não gostar e sim saber ou não saber desenvolver um enredo sobre a cosmovisão africana. Para quem já fez enredo sobre "Playmobil", demonstrando que atira em todas as direções, geralmente sem o sucesso da vitória, deveria se manter respeitosamente calado sobre o tema e não criticar os seus adversários com manifestações que insuflam a extrema-direita nacional. Ao negar de maneira peremptória a importância das raízes africanas, sempre sub representadas e até ocultadas pela historiografia oficial, Paulo Barros, por conta de sua limitação intelectual, presta um grande desserviço à luta pela promoção da igualdade racial no país. Não são somente "enredos afros", e sim o resgate histórico da saga de um povo que amargou 350 anos de cativeiro, registrado como um dos maiores genocídios da história universal. A redução da tragédia transatlântica afrodiaspórica, que sequestrou e escravizou nas Américas e Caribe mais de 20 milhões de africanos sequestrados de seus lares, onde eram livres em África deve ser sempre lembrada, para que nunca mais se repita. Se a representação artística desse trágico e inesquecível panorama "desgosta" o carnavalesco Paulo Barros é porque ele possui sérios problemas em relação às reparações históricas que estão em curso em todo o mundo democrático. Paulo Barros já fez um enredo sobre a Alemanha em 2013 e teve um carro alegórico sobre o Holocausto Judeu proibido pela justiça em 2008, evento que causou protestos e grande comoção na comunidade judaica, representada no fato pela Federação Israelita. Paulo Barros originalmente , em seu enredo, vestiria um destaque de Adolfo Hitler no carro alegórico do Holocausto da Viradouro. O escândalo foi rapidamente abafado pela escola e assim que terminou o desfile o carnavalesco foi defenestrado da instituição. Em tempos de recrudescimento do fascismo e do nazismo no Brasil, acho melhor passarmos a prestar mais atenção em seus movimentos, pelo que podemos observar sua capivara não é das melhores e suas digitais estão espalhadas por aí.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

É Carnaval!

O Carnaval está se aproximando do seu clímax. Escolas de samba nós preparativos finais estão sob estresse profundo. Blocos de rua se organizam para enfrentar a maratona desgastante sob o sol abrasador arrastando multidões pelas ruas do país. Grupos de bate-bolas, colombinas e pierrôs ensaiam suas singularidades para se divertirem no tríduo momesco que em breve varrerá o Brasil.

O Carnaval além do ambiente de alegria que contagia a população, é uma verdadeira usina de produzir dinheiro. A cadeia produtiva do Carnaval responde por indicadores significativos nos PIBs dos municípios brasileiros. Não é somente sair pelas ruas se divertindo sem compromisso. O Carnaval envolve uma poderosa teia de empreendimentos que sustenta milhões de famílias enquanto atividade produtiva e econômica. É como um iceberg, onde enxergamos somente a ponta emetsa e não a parte submersa. Para cada purpurina, instrumentos musicais, fantasias, bailes, escolas de samba e blocos, há uma imensa e febril cadeia produtiva que vai do vendedor ambulante do bloquinho aos aviões que despejam turistas à rodo nos hotéis das cidades brasileiras.

O evento talvez seja a maior fábrica de sonhos do planeta. Diversas situações típicas envolvem seus participantes: os casais que são formados nos blocos, o flerte nas arquibancadas dos sambódromos e até mesmo as esperanças depositadas nos desfiles das agremiações carnavalescas como as gigantes escolas de samba que promovem verdadeiras óperas populares à céu aberto onde milhares de músicos e atores encenam seus enredos em busca de um troféu ansiado.

O desfile das escolas de samba é a evidência mais inconteste da capacidade criativa e protagônica do povo negro. Saindo da Pequena África para o mundo, os desfiles são produções primorosas onde a capacidade criativa e empreendedora da população negra, faz demolir o discurso preconceituoso de uma histórica subrepresentatividade étnica, criativa e empreendedora do povo negro.

Nascido nos terreiros de Candomblé e Omolokô da Umbanda Carioca, no colos das mães de santo, iaôs, ogâns e alabês da Pequena África, o samba, esse menino travesso, se tornou a cadência da batida da cultura brasileira. Esses negros e negras que lutaram contra a repressão do sistema opressor da época de seu nascimento, fizeram um trabalho difícil de acreditar e que se transformou em um dos maiores espetáculos da Terra.

Estamos aqui para saudar Tia Ciata, Carmem do Xibuco, Tia Perciliana, João da Baiana, Tia Amélia, Babá Bamboxé, Zé Espinguela, Tia Fé, Dona Esther, Maria Rainha, Paulo da Portela, Cartola, Hilário Jovino, Djalma Sabiá, Joãosinho Trinta, Fernando Pamplona,  Dona Eulália, Molequinho, Mano Elói, Mano Décio, Natal, Chico Santana, Dona Neuma, Dona Zica, Dodô, Chico Porráo, Alfredo Português, Carlos Cachaça, Argemiro, Casquinha, Mônaco, Ataulfo Alves, Heitor dos Prazeres, Ismael Silva, Bid, Marçal e Edgard e toda a turma do Estácio, Noel Rosa, enfim, todas as pessoas que desde os primórdios dos anos 20 do Século XX construíram a história do samba com resiliência e dignidade.

Destarte a criminalização do Carnaval por parte das religiões cristãs, a festa já abriu suas portas para a população vivenciar esse período de alegria e confraternização. Rogamos aos deuses que seja de alegria e paz.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

A Dor do Negro


Qual será o nível de resignação de um homem negro no campo das dores? Talvez nunca saibamos, pois, a alma negra possui tantas camadas imperscrutáveis que se torna praticamente impossível decifrá-la. Não sabemos se a Psicanálise compreende ou desenvolveu técnicas específicas para a persona do negro. Freud era branco e vivia em um mundo branco, onde a academia sequer se importava com os infortúnios e as dores negras.
Existem inúmeras dimensões por onde coexistem os sentimentos humanos. Porém, sentimentos humanos passam a ideia de que são os sentimentos dos brancos. A academia é branca e não se preocupa em compartimentar a alma humana dentro do espectro melanínico, ou seja, por origem racial. Portanto, o processo de “coisificação” do negro, destarte a contemporaneidade, permanece sendo uma realidade inconteste. Obviamente que as pessoas sofrem, independente do grupo étnico ou social. Porém um contingente humano rebaixado etnicamente, sempre sofrerá de uma maneira diferente e até perigosa. Suas dores não serão as dores universais, as dores do mundo. As dores do negro são particulares, descartáveis e infindáveis. Talvez a dor maior do negro seja a de simplesmente existir. Sim, existir em um mundo onde o branco é o paradigma existencial natural, onde a beleza do branco representa a beleza universal, onde o sucesso do branco se reflete em todos os campos da ciência e da intelectualidade.
O negro surge na história de maneira equivocada, não como o primeiro grupo humano mas como uma legião de flagelados necessitando de cultura e desenvolvimento. Uma trapaça da branquitude gerou pseudociências que condenaram muitas gerações de negros ao colonialismo e à escravidão mercantil de alto espectro. Sempre em prol de um desenvolvimento que nunca aconteceu no Continente Africano e sim na Europa, que encontrou na empresa colonial fortuna e poder.
A engenhosidade das sociedades caucasianas geraram afroprosopopeias, onde em um processo distópico e surreal, passaram a atribuir características humanas ao seres humanos negros. Engendraram o apagamento de vivos, de cultura viva e de religiões e cosmovisões vivas.
Boaventura Santos cunhou como “epistemicídio” o intento de apagar saberes, culturas, conhecimentos e cosmovisões não eurocêntricas. Quando se destrói uma aldeia se destrói também uma biblioteca viva. O que o colonialismo efetivou em África foi um verdadeiro genocídio, tanto humanos como espiritual. Porém as narrativas não se compreendem apenas aos livros e publicações históricas. A destruição de sociedades organizadas africanas em prol de um desenvolvimento que nunca existiu trouxe as dores. São muitas dores, sendo que atreladas à morte das guerras coloniais veio a escravização e comercialização de mentes e corpos africanos.
Junto com as dezenas de milhões de mortes de africanos em África ou na diáspora, houve o amálgama das dores, que de tão silenciosas, como são as dores do povo negro, ficaram nas calendas. O que se herdou das injustiças está sendo corretamente cobrado em processos onde se clama por reparações históricas e ações afirmativas. Porém de tão silenciosas que são, as dores seguem coexistindo em um limbo primordial, como os pântanos de Nanã. Lá onde se convulsionam em sentimentos plúmbeos, não se pode medir ou definir suas dimensões, tampouco engendrar um processo de amenizá-las e mais ainda, quiçá saná-las. A compreensão do branco acerca das dores negras é praticamente nula. Apesar de encontrarmos bravos aliados na caminhada, eles não trazem em seu conjunto genético os sofrimentos e as dores do povo negro. Eles não compreendem o que é ser considerado um ser humano inferior, um cidadão de segunda classe, um coadjuvante no processo civilizatório universal. A maioria dos brancos olha para o povo negro como um possível problema, como um povo que retira prováveis benesses de suas vidas por conta de programas sociais do governo. Não há solidariedade, que deveria ser o primado básico da convivência entre os povos.
Saber não ser considerado um igual no que tange à cidadania e detentor dos mesmos direitos dos brancos faz o negro sangrar espiritualmente. Para esse tipo de hemorragia não há cauterização ou cicatrização. Não há medicina ou doutores que impeçam o jorrar incessante de assimetrias que se tornam lamentos e incompreensões.
Os brancos criaram as religiões que remetem os seres humanos a um estado constante de culpas e pecados, onde um Deus vingativo e perverso envia as almas para queimar no inferno, por seus erros básicos humanos. A antevisão do inferno com demônios vermelhos açoitando as almas penadas durante toda a eternidade fez dos negros seres confusos, pois a perda da cosmovisão politeísta africana os deixou sem opções de salvação a não ser aceitar e se conformar com o novo modelo existencial proposto pelo branco. Modelo perverso, onde trabalhar até à morte sem remuneração, perder a posse dos próprios corpos, dos desejos e da ideia de sociedade, os levou à bancarrota da autoestima. Portanto aí residem os relicários da maioria das dores negras que ainda persistem na sociedade contemporânea.
O negro está condenado dentro da sociedade capitalista a sofrer de maneira continuada, pois assim, não reúne forças para se rebelar. São colocados no mercado de trabalho em subrepresentações laborativas. Engenhosidade do capitalismo para que não tenham tempo de pensar em rebelião. Desse modo, são atirados pelo sistema econômico da branquitude às periferias distantes dos centros de trabalho, onde coexistem com um ambiente degradado e eivado pela violência do narcotráfico. A branquitude e seu sistema capitalista olham o negro como um hamster correndo naquelas rodas onde o fim é o início e o início é o fim. A roda nunca para de girar e o negro corre eternamente sem nunca ter tempo para cuidar de sua família, estudar, progredir e se e rebelar. Por trás desse sistema perverso estão as religiões abraâmicas, insistindo carinhosamente que sofrer é o melhor caminho para um pseudo paraíso em uma vida fora da terra, após sua morte. Uma maneira inteligente de encapsular as dores com a promessa de uma vida venturosa no paraíso. O grande óbice para a construção de uma sólida convergência negra de construção de alteridade é que a opção da via do paraíso está vencendo de goleada.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

LUIZ GAMA, O SPARTACUS BRASILEIRO

Luiz Gonzaga Pinto da Gama, o Spartacus Brasileiro, foi um dos maiores brasileiros de todos os tempos. Nasceu na cidade de Salvador, capital da Bahia, em 21 de junho de 1830, em um sobrado da Rua do Bângala, na Freguesia de Santa’Anna. Filho de Luiza Mahin, que segundo alguns historiadores, foi uma princesa da Costa da Mina, sequestrada de sua casa real e trazida para o Brasil na condição de escrava. Do pai de Luiz Gama ninguém nunca soube o nome. O que se sabia era que foi um fidalgo branco de posses e pertencente a uma tradicional família baiana de origem portuguesa. A mãe era mulher culta, letrada e islamizada. Conseguiu comprar a própria liberdade no ano de 1812. Alforriada então, inicia sua participação em inúmeros levantes de escravos que lutavam por liberdade na Bahia. Luiza Mahin sempre foi uma revolucionária convicta, participando de quase todas as rebeliões de cativos que sacudiram a Bahia no início do século XIX, com destaque para a Revolta dos Malês e também a Sabinada. Sua casa servia de local de encontro dos insurretos e Luiza, como trabalhava como quituteira nas ruas de Salvador, era encarregada de distribuir as mensagens secretas para os revoltosos, com as instruções de reuniões e atos de sabotagens. Foi perseguida e refugiou-se no Rio de Janeiro onde ao chegar integrou-se em outras rebeliões. Algumas fontes dizem que foi presa e deportada para África. Outras asseguram que refugiou-se no Maranhão, onde desenvolveu o Tambor de Criola. Seu verdadeiro destino permanece em mistério até hoje. Luiz Gama foi o homem que Rui Barbosa, o Águia de Haia, se referiu na Conferência sobre o Abolicionismo de 1911 da seguinte maneira: “...foi uma rara fortuna ter cultivado intimamente a amizade de Luiz Gama em lutas que nunca esquecerei”. Rui Barbosa e Castro Alves formavam com Luiz Gama o trio baiano de abolicionistas mais brilhantes na capital paulista. Era no escritório de advocacia de Luiz Gama que Castro Alves, Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, entre outros, se reuniam para falar de política abolicionista, república, Direito e Maçonaria, ordem onde Luiz Gama galgou os mais altos graus da Loja América em São Paulo, um centro irradiador da abolição da escravidão e da república. Foram nas reuniões desta Loja que eles tomaram conhecimento desses ideais liberais e progressistas. A amizade entre os baianos é comprovada quando Luiz Gama levou o amigo Castro Alves ao navio que o transportaria ao Rio de Janeiro para se tratar de um acidente com arma de fogo. Do Rio de Janeiro o Poeta dos Escravos partiu para a Bahia e nunca mais retornou a São Paulo, morrendo muito jovem, retirado na propriedade de seus genitores. São mistérios que somente a Bahia possui. Como consolidar a amizade entre dois representantes da alta burguesia baiana com um negro, vendido pelo pai aos 10 anos de idade como escravo. O menino negro escravo, tornou-se um voraz autodidata, por força da vida, já que foi proibido de frequentar a Faculdade de Direito de São Paulo por sua condição racial, ensinava Direito a seus pupilos conterrâneos que nela estudavam, mas o infortúnio do destino, a escravidão em voga e o racismo, não permitiram que ele pudesse nela estudar. Ao completar 10 anos, no dia 10 de outubro de 1840, Luiz Gama ouviu de seu pai que fariam um passeio. Apesar de nunca falar sobre seu genitor, nem mesmo pronunciar seu nome, disse que o pai era carinhoso com ele. Porém, mesmo pertencente a uma rica família, endividou-se me demasia, metido em súcias que vivia, e o passeio de barco do menino na verdade era a sua venda como escravo para o Rio de Janeiro, em um navio de nome Saraiva. Sua mãe estava foragida por contas de sua participação em diversos movimentos sediciosos e deixou o menino com o pai até que pudessem reunir a família novamente, o que nunca mais aconteceria. Ao desembarcar no Rio de Janeiro na companhia de um grupo de cerca de cem escravos, foi entregue a um português de nome Vieira, que possuía um comércio de velas na Rua da Candelária no centro da cidade. Vieira também comerciava grupo de escravos oriundos da Bahia em troca de polpudas comissões. O português o levou para a própria casa, onde avaliou que o menino poderia fazer companhia, servindo de pajem a seus filhos. A esposa do lusitano se afeiçoou ao pobre piá negro, assim como todas as mulheres da casa, que se encantaram com o menino tão jovem, indefeso, envolvido pelo manto da tanta penúria, porém repleto de doçura. Deram-lhe um bom banho, roupas limpas e o colocaram em uma cama para dormir, quando enfim pode ter sua primeira noite de sono tranquila e em segurança, desde que havia saído da Bahia no paquete Saraiva. O português Vieira, com seu coração na sola do pé, resolveu vender o menino para outro traficante de escravos, que o levou com um grande grupo de cativos para São Paulo em viagem de navio. Desembarcaram no Porto de Santos e subiram a perigosa e temida Serra de Cubatão rumo a longínqua cidade de Campinas, percurso que fizeram à pé, em sofrida caravana. Tanto em Campinas como em Jundiaí, os compradores de escravos rejeitaram Luiz Gama por ser de origem baiana. Os senhores de escravos tinham notícias das revoltas de cativos na Bahia e recusavam qualquer escravo oriundo daquele estado. “Ainda mais com 10 anos!”, diziam “Já é coisa ruim desde pequeno, boa coisa não deve ter feito por lá!”. Que triste fado! Vivendo entre tantas rejeições o menino também era rejeitado inclusive como escravo, talvez o mais baixo degrau da escala humana. O traficante de escravos sem conseguir vender o menino, o devolveu ao seu proprietário, um alferes de nome Cardoso, no centro da cidade de São Paulo. O comerciante morava em um amplo sobrado na Rua do Comércio, bem próximo à Rua Direita. Passando a viver no sobrado, Luiz Gama aprendeu diversos ofícios como sapateiro, engomador, lavador, costureiro e copeiro. Os bons ventos da sorte começaram a lhe bafejar quando veio morar no sobrado dos Cardoso o jovem Antônio Rodrigues, um hóspede muito culto e com a mente voltada para o altruísmo e para as humanidades, estava ali para concluir seus estudos. Esse jovem mais tarde se tornou advogado e juiz de direito. Antônio Rodrigues se afeiçoou a Luiz Gama, lhe ensinando a ler, para logo depois lhe abrir as portas do mundo das ciências matemáticas e humanidades. O progresso de Luiz Gama com as letras era tamanho que passou a ensinar os filhos do Alferes Cardoso e por assim fazer, solicitou sua alforria, alegando que seu trabalho intelectual estava acima e não compreendia os ofícios de um escravo. Além disso, alegava que era um homem livre, pois seu pai era um fidalgo e sua mãe uma escrava liberta que havia comprado sua alforria. O alferes Cardoso obviamente negou a alforria e Gama após conseguir provas incontestes de sua condição de homem livre, fugiu da casa dos Cardoso e se tornou soldado da milícia estadual aos 18 anos de idade, onde permaneceu até 1854. Ocupava a patente de Cabo de Esquadra quando foi obrigado a dar baixa do serviço por supostos “atos de insubordinação” contra um oficial. Além da baixa forçada, esteve preso por 40 dias antes de ser posto em liberdade. Nos idos de 1840, em plena vigência da escravidão, a palavra de um praça negro não tinha a mínima credibilidade perante a acusação de um oficial branco. Um tribunal penal militar jamais estaria ao lado de um jovem negro de baixa patente, em detrimento ao libelo acusatório proferido por um oficial caucasiano. Pelo que se pode observar, na trajetória de vida de Luiz Gama, desde quando foi entregue à escravidão pelo próprio pai, ainda menino e depois rapazola e homem feito, sua caminhada sempre foi eivada de revezes, onde todos, um a um foram removidos e superados, inclusive um dos principais à época que era o analfabetismo. Mais uma vez Gama teve que buscar um novo rumo para seguir em frente, pois, desde que embarcou no paquete Saraiva rumo ao assustador destino no Rio de Janeiro, longe da mãe que nunca mais veria, passou a ter a própria existência como sua principal tirana. Luiz Gama aprendeu com a dureza da vida, que o caminho se faz caminhando. Durante os anos em que abraçou a carreira militar trabalhava nas horas vagas como Copista no escritório do Escrivão Major Benedito Coelho Neto, já então seu amigo. Também sendo amanuense, algo como auxiliar administrativo, no gabinete de Francisco Furtado de Mendonça, catedrático da Faculdade de Direito do qual também tornou-se, por seu correto comportamento e louvável saber, ordenança e homem de confiança. Serviu como Escrivão para várias autoridades policiais, sendo nomeado amanuense da Secretaria de Polícia onde ficou até 1868, de onde foi demitido a bem do serviço público como “turbulento e sedicioso”, pelos políticos dos partidos conservadores que chegaram ao poder. Luiz Gama ainda estava no período da escravidão e sua condição de negro em cargos públicos de referência incomodava o sistema escravista que se estruturava sobre a quebra da autoestima do negro, de sua alegada condição inferior, de ser quase que um objeto que falava. A sua ascensão social e política na sociedade onde o escravismo ditava as leis, certamente incomodava o poder supremacista local da época. Como Jornalista Gama escreveu para vários periódicos onde através de sátiras defendia o fim da escravidão e a república, atacando ferozmente a aristocracia brasileira. Em seu trabalho de advogado, exercido de maneira gratuita para os negros, conseguiu libertar mais de 500 escravos. Em seu círculo de relações abolicionistas, entre tantas outras personalidades, torna-se amigo íntimo de José Bonifácio, o Moço, professor de Direito, neto do Patriarca da Independência, amizade correspondida que durou por toda de ambos. Em julho de 1859 assiste ao nascimento do seu filho Bendicto Graccho Pinto da Gama, fruto de sua união com Claudina Fortunata Sampaio, que viria a se tornar engenheiro eletricista e que está sepultado a seu lado no mausoléu do Cemitério da Consolação. Neste mesmo ano publica “Primeiras Trovas Burlescas de Getulino”. No ano seguinte publica a segunda edição da mesma obra revisada e corrigida na cidade do Rio de Janeiro, onde mais uma vez tenta encontrar sua mãe Luiza Mahin, sem obter êxito. A partir de 1861 Gama dedica-se de corpo e alma ao seu trabalho no jornalismo, com ênfase na “República das Letras”, focando sua verve literária e o saber jurídico na defesa das ideias liberais, republicanas e abolicionistas. Os movimentos sociais republicanos avançam juntamente com a pressão internacional pelo fim da escravidão, capitaneada pela Inglaterra com seu interesse em vender máquinas e engenhos à vapor paridos pelo ventre da Revolução Industrial. A Junta Francesa para Emancipação dos Negros, ligada à Maçonaria, encaminha carta ao governo brasileiro para que a abolição da escravatura se torne um processo rápido e concreto. Que obteve como resposta do Império Brasileiro que seria apenas uma questão de forma e oportunidade. Todo esse movimento incendiava o país. Estados como Ceará e Rio Grande do Norte já encaminhavam seus processos de abolição, assim como o Rio Grande do Sul. Revoltas escravas aconteciam de norte a sul do país e em 28 de setembro de 1871, como um preâmbulo para a abolição geral e irrestrita, foi promulgada a Lei do Ventre Livre. No ano de 1877, em meio ao incansável trabalho humanitário, Luiz Gama estabelece sua banca de advogados com Antônio Carlos Soares e Antônio Ferraz, onde exerce a profissão de advogado até o fim de sua vida. Doente e consumido pelo diabetes sua militância no final da vida era motivo de admiração por toda a sociedade. Mesmo assim fundou o Centro Abolicionista de São Paulo e José do Patrocínio por sua influência cria no Rio de Janeiro a Sociedade Brasileira contra a Escravidão, cujo presidente era Joaquim Nabuco. Tornou-se destacado maçom, recebendo daquela fraternidade todas as honrarias possíveis. Morreu em 24 de agosto de 1882 na cidade de São Paulo. Exatamente 6 anos antes da abolição da escravatura, pela qual tanto lutou e dedicou sua vida de jurista, jornalista e poeta. Seu funeral foi o maior já registrado na história da capital paulista. Se fossemos calcular proporcionalmente em relação aos dias de hoje, seriam milhões de pessoas às ruas acompanhando a passagem do cortejo fúnebre. Luiz Gama deixa como exemplo para o povo negro, que nada pode suplantar a força de vontade, a garra de vencer e a paciência para triunfar. São inúmeros recados que sua existência deixou para a posteridade. Mas alguns são basilares como a importância da educação formal na vida de todos os seres humanos. O segundo exemplo é a retidão de caráter e a determinação na crença do que é o bem natural e humano, e o último, que é a lealdade do compromisso com a justiça e a liberdade. Se hoje pessoas negras conseguem galgar patamares significativos tanto na vida pública como na iniciativa privada, com certeza há a pena, o cérebro e o olhar de Luiz Gama. Se em cada parque, praças e praias do país as crianças negras correm livres e felizes está ali o sorriso de Luiz Gama. Ele nos deixou como responsabilidade uma tarefa imensa que é defender o legado dos abolicionistas, que dedicaram suas vidas para que nós pudéssemos ter as nossas bem ao alcance de nossas mãos. A vida de Luiz Gama é uma saga inimaginável. Se fosse no hemisfério norte, certamente teria se transformado nas mais altas linguagens culturais, artísticas e históricas. Nós escritores, poetas e amantes da liberdade, podemos homenageá-lo com lindas produções literárias que comporão essa coletânea tão especial. Traçaremos linhas de uma teia que serão o amálgama de um mosaico admirável, daquele ser humano que nasceu livre, foi tornado escravo pelo próprio pai aos 10 anos de idade, sofreu todas as intempéries da vida, deu a volta por cima e mesmo atado aos grilhões da escravidão, soube perseverar e transformou todos os limões azedos que a vida sempre lhe ofertou em uma deliciosa e refrescante limonada chamada liberdade.