sexta-feira, 7 de março de 2025
quarta-feira, 5 de março de 2025
Não deixe o samba morrer
Agora cismaram que nos desfiles de escolas de samba tudo é religiosidade africana. Esse pessoal podia estudar um pouco mais os enredos sobre a cosmovisão africana e suas ancestralidades. O Continente Africano possui 54 países com mais de 100 idiomas e culturas diferentes. De muitos desses países vieram os escravizados que participaram de nossa cons tituição indo-afro-ibérica. A empresa colonial e escravista transportou para o Brasil entre o Século XVI e o Século XIX cerca de 5 milhões de africanos escravizados, sendo que 1 milhão deles e delas morreram na travessia e foram jogados ao mar, muitos ainda vivos mas com enfermidades.
No século XVI o Continente Africano era totalmente desconhecido pelos europeus. Salvo a costa do Marrocos onde os portugueses conquistaram Ceuta em 1415, quando partiram de Lisboa com 220 navios e 50 mil homens.
A partir de Ceuta os portugueses passaram a avançar pela costa africana prevendo a instalação de entrepostos que serviriam de apoio para a carreira das Índias, completada por Vasco da Gama em 1498.
O Cristianismo na África Subsaariana ainda era muito incipiente no Século XVI mas tomou impulso com a emissão das s bulas papais Dum Diversas e Romanus ok, onde a Igreja Católica passou a permitir a escravização de não-cristaos, gentios e sarracenos.
Os escravizados que foram trazidos para o Novo Mundo cultuavam suas religiões e credos de matriz africana, desse modo não conheciam outra religião e tampouco o Cristianismo. Voltando para a Marquês de Sapucaí, se o enredo for contar alguma história do povo negro, que construiu essa nação, necessariamente passará pelas religiões de matriz africana. A própria existência das escolas de samba está intimamente vinculada aos centros de Umbanda Omolokô e terreiros de Candomblé. Foi no intenso caldeirão cultural da Pequena África, no Centro do Rio de Janeiro, que o samba carioca começou a tomar forma. A referência principal da gênese do samba foi a casa da Tia Ciata, Iaquequerê do terreiro do famoso babalorixá João Alabá, que assumiu o terreiro do babá Bamboxé Obitikô, que voltou para Lagos na Nigéria após a abolição da escravatura.
Tia Ciara curou uma ferida renitente na perna do Presidente Wenceslau Braz, que em reconhecimento proibiu a polícia de interferir tanto na prática religiosa do terreiro, como nas rodas de batuque que varavam as madrugadas. Existiam também outras "tias" como Amélia, Perciliana (mãe de João da Baiana), Bebiana e Carmem do Xibuca de Amaralina, que animavam as noites da Pequena África. Dali o samba foi se moldando e se espraiando para todo o Rio de Janeiro. A turma do Estácio com Ismael Silva, Bide, Marçal , Brancura e Edgard deram luz ao ritmo cadenciado para o samba que é tocado assim até hoje. Madureira tinha o Ogã e jongueiro Paulo da Portela que fundou o Conjunto Oswaldo Cruz que passou a se chamar Vai Cono Pode e depois Escola de Samba Portela. Na Serrinha tinha a Dona Eulália, Vó Joana e Tia Maria, todas do jongo, além de Mestre Fuleiro, Molequinho, Mano Décio e Eloi Antero Dias, o Mano Elói, pai de santo que levou o samba para a Mangueira. Carlos Cachaça que foi testemunha ocular do fato afirmou que Mano Eloi apresentou o samba no terreiro de Omolokô de Tia Fé, na presença de Zé Espinguela, o Pai Olufá e outros presentes. Tia Fé, figura lendária e venerada até hoje em Mangueira fundou um rancho carnavalesco denominado Pérolas do Egito, que junto com outras agremiações formaram a Estação Primeira dé Mangueira em 1928 sob a direção de Cartola, que era cambono da Umbanda Carioca ou Omolokô, Saturnino Gonçalves pai de Dona Neuma, Abelardo da Bolinha, Carlos Cachaça, Seu Euclides, Zé Espinguela, Seu Maçú e Pedro Paquetá. Em Vila Isabel tinha Noel Rosa que viveu embates famosos com Wilson Batista.
Aliás, Paulo da Portela e Zé Espinguela no ano de 1929, realizaram o Primeiro Encontro de Escolas de Samba no terreiro de Zé Espinguela Engenho de Dentro que foi a gênese dos atuais desfiles de escola de samba. Esses pioneiros e pioneiras passaram muito aperto com a repressão da época por fazerem samba.
Como não falar de religiosidade se as baterias das escolas de samba tocam cada uma para seu orixá. A Mangueira, por exemplo, toca para Oxossi enquanto que a da Portela e da Mocidade para Ogun, União de Padre Miguel para Xangô e e assim por diante.
Após recebermos este tesouro cultural, passamos a ser cerceados pela branquitude beócia de nossa ancestralidade, tentando através de discursos anódinos, conter nosso vigor e paixão pela riqueza de nossa origem multicultural e pluriétnica. Para eles é fatigante ouvir nossas ancestralidades e de acordo com seus desejos, não poderemos mais contar nossas epifanias, cantar as histórias de nossos ancestrais na festa que nós criamos e eles querem ditar as regras. Até compreendemos que é difícil emocionados das bolhas do zap compreenderem a complexidade cultural da cosmovisão africana. Assim é mais fácil se levantarem escudados em falsos biombos de proselitismos. Pode haver Oktoberfest todos os anos com as mesmas mulheres loiras, olhos azuis, caucasianas e batavas, aboletadas em cima dos mesmos carros alegóricos, cantando as mesmas canções saxônicas que está tudo certo. Mas nos carros alegóricos dos negros não pode. Como diz Milton Cunha, escola de samba é negritude, pretitude, gente suada falando alto, tomando cerveja, é macumba sim, é resistência e aquilombamento. Quem não pode com mandinga não carrega patuá. Valeu Zumbi.
segunda-feira, 3 de março de 2025
O desfile das escolas de samba que você provavelmente não conhece
Acabei de sair do desfile da Mangueira como membro da consagradíssima Ala dos Compositores, a primeira desse tipo nos desfiles e fundada por Cartola. Não sei se sou merecedor mas me empenho por ser, sabendo que por ela passaram além de Cartola, Nelson Cavaquinho, Nelson Sargento, Zé Ramos, Hélio Turco, Leci Brandão (ainda membro), Carlos Cachaça, Saturnino Gonçalves, Zagaia, Xangô, Jamelão, Jurandir, Zé Criança, Geraldo da Pedra, e Gradim entre tantos outros.
Dentro de um desfile existem vários desfiles. Enquanto a escola passa desfilando sua imponência, centenas de pessoas trabalham esbaforidas para que nenhum contratempo aconteça ou então corrigindo contratempos que podem retirar pontos da escola.
O desfile não permite teste drive para os carros alegóricos. Nos ensaios técnicos as atenções são voltadas para som, luz, evolução e cronometragem. No desfile prá valer as operações pré desfile são tensas: colocar os destaques no topo dos carros alegóricos, subir os componentes nas alegorias, verificar os obstáculos aéreos, bombeiros civis para prevenção de incêndio, hidratação dos componentes na concentração, dar os últimos retoques nas alegorias, conferir as fantasias das alas e garantir o melhor alinhamento possível das fileiras de componentes antes de entrar na avenida. Correndo por fora tem a afinação dos instrumentos da bateria e os testes de som p os intérpretes e da própria bateria. Existem ainda diversos detalhes que são infinitesimais como maquiagem da comissão de frente, efeitos especiais e por aí vai.
O resultado final é sempre consagrados, destarte um tombo aqui e outro ali, uma alegoria perder uma peça, abrir espaços entre as alas (buracos) e a escola ter que correr no final para não extrapolar o tempo.
Geralmente todas as escolas passam bem, dentro do tempo mas sempre com uma pequena falha em algum setor. É o preço que se paga por colocar quase 4 mil pessoas em uma grande ópera à ceu aberto com músicos e cantores sem formação musical da academia, separados por esculturas gigantescas se movendo em direção ao final do desfile.
É no mínimo uma façanha. Portanto, independente do resultado, os componentes dessas agremiações colocaram seus corações em casa detalhe, em casa alfinete, nos ensaios de canto, nos ensaios de rua, nos ensaios técnicos e nas fantasias. Essas pessoas em prol das cores de seus pavilhões deixam a vida de lado e mergulham na obsessão da construção do carnaval de suas escolas. São as garbosas Velhas Guardas com seus bravos componentes octogenários, os membros das baterias e comissões de frente com seus ensaios extenuantes, poetas e compositores responsáveis pelo hino que a escola levará para a avenida, om seus ensaios extenuantes, passistas, casais de Mestre- Sala e Porta-Bandeiras que ensaiam de forma ensandecida e as deliciosas alas das comunidades onde o sangue da escola pulsa com mais vigor.
O esforço da direção da escola para controlar esse turbilhão é louvável. São centenas de profissionais assalariados na quadra de ensaios e no barracão de alegorias, abastecimento de bares a quadra, realização de eventos para arrecadação de fundos, controle de mensalidades, gastos com fantasias, viagens de representação etc. Tudo isso acontece o ano inteiro para que a escola desfile por 80 minutos para jurados imparciais vê inclementes.
Ao fim somente uma será campeã e todas as outras amargarão a derrota e o ano investido com tanta fibra e dedicação.
Esses são os desfiles dentro do desfile. É como um iceberg onde só enxergamos a parte acima da superfície. Faz pó arte da nossa cultura e é sempre bom lembrar que todo esse espetáculo tem sua origem na Umbanda Omolokô e nos terreiros de Candomblé da Pequena África.
sábado, 1 de março de 2025
O samba pede passagem
A escola de samba e o samba sempre foram os principais espaços de socialização da comunidade negra no Brasil. Desde os primórdios da História do Samba que o povo negro se empenhou em manter um espaço comunitário, onde pudesse compartilhar com sua família atividades sociais e de lazer. A indústria do entretenimento na sociedade burguesa sempre foi voltada para as pessoas da classe média, com razoável poder aquisitivo. Nesses espaços, os negros com raríssimas exceções, podiam frequentar e participar dos eventos como convidados. O apartheid social e econômico pelo qual a população negra foi submetida, após o fim da escravidão, levou os negros a se organizar em torno dos principais processos onde mantinham algum tipo de domínio, protagonismo e poder, o Candomblé e o samba. A escola de samba é o templo profano do povo negro. Nela as famílias se reúnem e se desenvolvem no aprendizado de suas diversas características artísticas e culturais.
A cosmovisão do samba está entre as coisas mais deliciosas dessa vida. Não há nada mais gratificante que desfrutar de um bom momento, cantando e relaxando em uma boa roda de samba, ou então nos ensaios de quadra das escolas de samba que alegram os fins de semana de parte da sociedade em todo o país. A sensação é divina, e nada melhor que soltar o corpo, se entregar ao deleite do ritmo pagão, cantando e alegrando-se em animados arrasta-pés, regados a uma boa cachaça de alambique, aquela que “matou o guarda”, acompanhada de uma boa cervejinha gelada com um pratinho de tira-gosto como acompanhamento.
Quem nunca deu aquela sambadinha gostosa, ao ouvir um samba malandreado, dolente e gostoso? Bem devagar, devagarinho, como canta o Martinho da Vila. O samba sempre foi a cadência da batida do coração do povo brasileiro. É o principal alimento cultural que nos nutre e o maior legado que a população negra delegou para nossa sociedade. Suas origens são ligadas ao continente africano, aos tambores, ao Candomblé e aos folguedos da cultura negra além-mar.
João Gilberto cantava que o samba veio da Bahia e estava correto. Pois esse menino dengoso, o samba, veio aconchegado no colo ancestral das Mães de Santo do Recôncavo Baiano, principalmente de Santo Amaro da Purificação e Cachoeira, que após a abolição da escravidão foram viver no Rio de Janeiro, para onde partiram em um movimento denominado “Diáspora Baiana” ou “Êxodo Baiano”. Partiram levando na bagagem essa joia cultural fantástica que encanta o planeta. O samba é filho dileto do Jongo, do samba de roda do Recôncavo, possuindo uma relação direta com o culto aos Orixás, Inquices e Voduns, do Omolokô e daquilo que Cartola chamava de Umbanda Carioca, da qual era cambono. O samba também bebeu na fonte das tradições culturais e religiosas da África Subsaariana. Nasceu como representante de uma representação cultural que servia como momento de lazer e ao mesmo tempo como o bálsamo que amenizava o terrível sofrimento pelo qual passava o povo negro escravizado, tanto no eito de trabalho como na senzala, nos tempos do Brasil Colônia e Brasil Império.
O parto do samba carioca ocorreu com certeza nos terreiros de Candomblé e Centros de Umbanda Omolokô da Pequena África e também nas rodas de Jongo como dizem alguns historiadores. Havia uma grande concentração desses terreiros na região que abrangia um imenso território no Centro da cidade do Rio de Janeiro denominado Pequena África que ia dá Gamboa/Pedra do Sal até a Praça XI.
A certidão de nascimento do samba contém algumas lacunas, mas com certeza no formato que conhecemos hoje, surgiu entre o fim do século XIX e o início do século XX. Veio ao mundo abençoado pelos sons dos atabaques e dos tambores tocados com dedicação e amor por ogãs e alabês das casas de santo. Nasceu no instante compreendido entre o cansaço e a preguiça. Cansaço porque depois de um trabalho puxado de axé no terreiro, era necessário dar descanso ao corpo, que há pouco estava entregue ao poder espiritual, para que assim recobrasse as forças. Preguiça porque era necessário preparar o terreiro para o ritual agora profano, com comidas, tambores e outros apetrechos essenciais.
O batizado com o nome “Samba” pode ser oriundo do termo angolano “Semba”, que significa umbigada. É um tipo de dança profana do povo bantu, mas não sagrada como são as umbigadas do Jongo, como afirmam alguns pesquisadores.
Foram as tias baianas que assistiram e abençoaram o nascimento do samba, forrando seu berço com carinho e tradição. O samba em seu berço foi ninado com canções do samba de roda do Recôncavo entremeadas com batuques, lundus, polcas, maxixes e jongo. Essas tias baianas eram em sua grande maioria Ialorixás renomadas e poderosas, exerciam grande influência sobre a comunidade negra no Centro do Rio de Janeiro.
O início do século XX foi um momento de intensa felicidade para a população negra, que vivia sob os efeitos idílicos do fim da escravidão. Os negros comemoravam e agradeciam principalmente à princesa Isabel pela promulgação lda Lei Áurea, que lhes libertou definitivamente do cativeiro do branco opressor, depois de intermináveis 350 anos de sofrimentos. Apesar de tantas agruras e dificuldades, a alegria havia voltado aos corações da população negra tão sofrida e vilipendiada pelo cruel regime recém-extinto. Eram livres, mas nunca deixaram de ser vigiados pelo sistema de repressão e controlados pelo sistema jurídico, que sempre exarou leis em defesa da elite branca e sistematicamente contra a população negra.
Apesar da vigilância constante da polícia, os negros e negras se reuniam em diversos lugares denominados “zungus” para comemorar a liberdade, comer comidas típicas, buscar trabalho, praticar religiosidade e como não podia deixar de ser, utilizavam o samba de roda, o jongo, o maxixe a polca e o lundu como fundo musical para suas comemorações. A certidão de nascimento do samba foi lavrada nos terreiros das tias baianas, com destaque para as tias Ciata, Amélia e Perciliana.
Os sambistas consideram Tia Ciata como a grande parteira e mãe amamentadora do samba carioca. Nascida em 1854, em Santo Amaro da Purificação, terra de Caetano Veloso, Assis Valente e Maria Bethânia, chegou ao Rio de Janeiro em 1876 aos 22 anos de idade, onde casou e constituiu família, tendo sido mãe de 14 filhos.
Ciata além de grande doceira e festeira, era uma Mãe de Santo respeitada pelo povo negro. Ficou mais famosa ainda após ter curado com suas ervas e unguentos uma ferida renitente na perna do à época Presidente do Brasil, Wenceslau Brás. Sua proximidade com o Presidente da República, que lhe garantiu que a polícia não interromperia e encerrasse sob catatau as suas obrigações religiosas nem as animadas festas embaladas principalmente pelo imberbe samba.
Além da própria riqueza musical reinante, naquela época não havia transportes durante a madrugada. Os frequentadores dos terreiros aproveitavam que deveriam aguardar o dia amanhecer para retornar aos seus afazeres cotidianos. A madrugada era consumida então em animadas rodas de batuque, já que a designação “samba” ainda não havia sido cunhada. Geralmente o arrasta-pé virava a noite e a partir daí pode ter surgido o termo “sambar até o sol raiar”.
Pela casa de Tia Ciata passaram grandes nomes da música popular e do samba como Ataulfo Alves, Paulo da Portela, Cartola, Carlos Cachaça, Natal da Portela, Zé com Fome, Silas de Oliveira, Pixinguinha, Hilário Jovino e Donga. Sinhô, Ismael Silva, Bide, Marçal que eram frequentadores assíduos formavam a Turma do Estácio. Essa turma de bambas do Estácio foi a que mudou o ritmo do samba para uma versão mais cadenciada, fugindo do maxixe, como o que se toca até os dias de hoje nas baterias das escolas de samba. Essa mesma turma também cunhou o nome “escola de samba”, pois ensaiavam defronte a uma Escola de Formação de Professores no bairro do Estácio.
Antes do samba que conhecemos o que se dançava era um ritmo maxixado, como podemos constatar no fonograma do primeiro samba gravado no Brasil por Donga, o famoso “Pelo Telefone”. Muitos sambistas torcem o nariz para esse samba, dizendo que o fonograma é um maxixe. Outros sambistas alegam que Pelo Telefone não foi o primeiro samba, pois havia duas gravações anteriores que eram samba como Casa de Baiana em 1913 e Urubu Malandro em 1914. Pelo Telefone foi uma composição coletiva com participação de vários frequentadores da casa da Tia Ciata, mas foi registrada na Biblioteca Nacional por Donga somente, como sendo dele. Mais tarde incluiu também Mauro de Almeida como seu parceiro na composição. Um dos maiores defensores da tese de criação coletiva foi o baiano Hilário Jovino que alegava ser um dos compositores. Hilário Jovino era pai do malandro Saturnino da Praça 11 e primo de Heitor dos Prazeres. Precursor dos ranchos e do Carnaval do Rio de Janeiro, Jovino fundou inúmeros ranchos, que seriam os blocos e escolas de samba de hoje, sendo que um dos mais famosos que se tem notícia llfoi o Ameno Resedá, que tinha entre seus admiradores mais destacados o escritor Coelho Neto. O Ameno Resedá é lembrado até hoje nos desfiles das escolas de samba.
Os sambistas pioneiros não eram vistos com bons olhos pela sociedade. João da Baiana contava que seu pandeiro tinha a assinatura de um senador da república, pois, somente assim poderia transitar livremente com o instrumento pela cidade. Os sambistas eram perseguidos e geralmente vinculados pela polícia a marginais, malandros e capoeiristas, grupo também perseguido e para quem havia sido criada a lei no Código Penal de 1890 que punia quem praticava a capoeira, a Lei da Capoeiragem, cujo texto era o seguinte: "Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação de capoeiragem: pena de prisão celular por dois a seis meses".
Após a Lei Áurea em 1888, o governo brasileiro iniciou um gigantesco processo de embranquecimento de sua população, estimulando a imigração de europeus, primeiramente com alemães e italianos e depois do Japão, quando em 1908 atracou no Porto de Santos o navio Kasato Maru com a primeira leva de 781 imigrantes japoneses que vieram contratados para trabalhar nas fazendas do interior paulista.
Enquanto o país passava pelo processo de embranquecimento ou eugenia como muitos alegam, no Rio de Janeiro era iniciado um imenso processo de gentrificação por parte do governo.
O Rio de Janeiro era a capital do Brasil no início do século XX. O país recém-saído da escravidão era a maior cidade afroatlântica da época, mas ainda com vestígios de vocação rural. Com os novos tempos passou a sofrer mudanças que visavam sua inserção entre as grandes capitais do mundo moderno, reivindicando sua nova vocação urbana incipiente e engatinhando na industrialização. O Centro do Rio era composto por muitos cortiços, alguns com até 2 mil pessoas como o “Cortiço Cabeça de Porco”, daí o nome de cabeça de porco para qualquer tipo de ajuntamento de habitações pobres do mesmo formato. As epidemias sanitárias se sucediam na capital e a classe burguesa clamava por higienização e modernização do centro da cidade.
O Presidente Rodrigues Alves deu plenos poderes ao Prefeito Pereira Passos, que governou a cidade entre 1902 e 1906. Passos foi inspirado pela modernização da cidade de Paris, dando início ao período conhecido como Belle Époque, onde um dos principais exemplos é o Teatro Municipal no Centro do Rio de Janeiro, uma obra prima da arquitetura da época, desenhado por Francisco Pereira Passos, filho do Prefeito, que optou em desenhar uma cópia fiel da Ópera de Paris. Apesar dos esforços de Pereira Passos a inauguração do Teatro Municipal aconteceu somente em 1909 sob a gestão do Prefeito Souza Aguiar, seu sucessor.
O processo de gentrificação da capital foi avassalador e violento, com foco no centro da cidade, onde cortiços foram derrubados à revelia para dar lugar a grandes edifícios, e modernas avenidas. Essas intervenções de Pereira Passos foram consideradas autoritárias, quando grande parte da população pobre foi expulsa desses cortiços sem indenização, tendo que se deslocar para as encostas dos morros da cidade, originando um incremento no número das poucas favelas que existiam naquele período.
A modernização transformou a imagem da cidade com a inauguração da moderna e ampla Avenida Central, no estilo dos boulevares parisienses, com suas lojas e cafés de luxo. Também foi inaugurada a impressionante à época iluminação pública, a reforma do Porto do Rio de Janeiro, o primeiro sistema de saneamento básico eficiente e a vacinação forçada da população sob o comando do sanitarista Oswaldo Cruz. A vacinação compulsória levou a deflagração da insurgência negra denominada “Revolta da Vacina”. A partir da Bélle Epoque, com a modernização da capital do país, o Rio de Janeiro entrou definitivamente para o clube das grandes e modernas cidades do planeta.
A população negra foi a que mais sofreu com os impactos da gentrificação. Primeiro tendo que abandonar o local de moradia de forma compulsória, contra sua própria vontade. Segundo dentro do contexto cultural, onde as manifestações populares como o samba e a capoeira foram perseguidas e proibidas, devido ao forte recorte racial de seus praticantes, motivada pela intenção das elites da capital de europeizar o cenário das artes e da cultura da cidade, banindo a crescente cultura negra do cenário urbano. Para tanto passaram a prender sambistas que portavam instrumentos musicais e verificavam se seus dedos possuíam calos adquiridos com a arte de tocar percussão. Todo esse contexto de gentrificação originou a criação de uma forte burguesia carioca, que repudiava qualquer manifestação de origem africana ou afrodescendente.
Com o passar dos anos, o samba foi se organizando e aos poucos e cada vez mais passando a fazer parte da vida cultural da cidade. No início dos anos 1920 o carnaval de rua organizado era alegrado pelos ranchos carnavalescos da burguesia. Os desfiles aconteciam na moderna Avenida Central e eram um feudo exclusivo da elite e da classe média. Os pobres não podiam desfilar nos ranchos e corsos da Avenida Central, devido ao alto custo exigido na confecção das fantasias, e também por não pertencerem ao mesmo estrato social dos foliões. O primeiro rancho popular a desfilar foi o “Reis de Ouro” de Hilário Jovino, que criou as figuras do Mestre Sala e Porta Bandeira e também o conceito de enredo, depois absorvidos pelas escolas de samba. Os pobres também desfilavam em blocos e cordões compostos por maioria negra que vivia na região da Pequena África. Esses blocos mantinham a tradição de usar atabaques e tambores que marcavam o ritmo das batucadas africanas mescladas com elementos do Candomblé. As primeiras licenças para desfiles de blocos emitidas pela polícia datam de 1889 para os blocos “Grupo Carnavalesco São Cristóvão”, “Teimosos do Catete”, “Corações de Ouro” e “Piratas do Amor”, entre outros.
Havia ainda os “blocos de sujo”, que assim eram denominados porque eram compostos por trabalhadores que saíam do trabalho diretamente para o carnaval, sem tomar banho. Esses trabalhadores-foliões compravam máscaras de Clóvis ou de Velhos e saíam na frente dos cordões, abrindo o desfile dos blocos. Marchavam sempre em grupo, abrindo os desfiles, criando então o embrião das atuais Comissões de Frente das escolas de samba.
Nos anos 1920 a contribuição da Turma do Estácio foi fundamental para compreendermos o samba como é tocado hoje. Os sambistas do Estácio eram famosos e também participavam dos saraus da casa da Tia Ciata, com destaque para Ismael Silva, Bide, Marça e Brancura. Bide foi o criador do surdo de marcação, quando utilizou pela primeira vez uma lata de banha de 20 quilos vazia, colocou papel de saco de cimento molhado amarrou nas extremidades com barbante e arame, aquecendo o instrumento na fogueira. A marcação do surdo criado pela Turma do Estácio retirou o ritmo maxixado do samba e manteve sua característica cadenciada que é utilizada até os dias atuais. Bide também alterou a estrutura de apresentação dos sambas das escolas que eram cantados de maneira improvisada, passando então a ser compostos e ensaiados antecipadamente.
Em 1929, Zé Espinguela ou Pai Olufá, Pai de Santo do Morro da Mangueira e o sambista Paulo da Portela, realizaram o primeiro encontro de escolas de samba, defronte à casa de Zé Espinguela no bairro do Engenho de Dentro. Juntos definiram critérios como Mestre Sala e Porta Bandeira, Samba de Enredo, Ala das Baianas em homenagem a Tia Ciata e a Bateria no que seria a gênese do que assistimos hoje nos sambódromos de todo o país.
Nos anos 1930 os desfiles das escolas de samba eram desorganizados. Não havia uma metodologia definida e a única obrigação das escolas era passar defronte à casa de Tia Ciata, na Praça 11, para reverenciá-la e receber sua aprovação. Não havia um local pré-definido e nem premiação. Nos anos 40 passa a ter início a organização “profissional” das escolas de samba. Alguns sambistas eram muito respeitados pelo mundo do samba e poderiam ser chamados de Embaixadores do Samba, autênticos líderes de ébano, entre os quais se destacava Paulo da Portela e Zé Espinguela. Através das gestões de Paulo da Portela e outros sambistas, o Presidente Getúlio Vargas, empenhado em demonstrar apreço pelo nacionalismo e pela cultura nacional, promulgou finalmente a descriminalização do samba durante o Estado Novo.
A partir desse momento, livres juridicamente para atuar, as escolas de samba se proliferaram com força total, reunindo principalmente nos subúrbios inúmeras agremiações como o Império Serrano, dissidência do Prazer da Serrinha no Morro do São José Operário em Madureira, Conjunto Oswaldo Cruz que depois se tornou Vai Como Pode e finalmente Portela também de Madureira/Oswaldo Cruz, Salgueiro na Tijuca que foi o resultado da fusão de duas escolas do Morro do Salgueiro as “Depois Eu Digo” e “Azul e Branco”. A Imperatriz Leopoldinense na Zona da Leopoldina originária da Recreio de Ramos, tendo como base o Complexo do Alemão, Mocidade Independente de Padre Miguel da Zona Oeste que surgiu a partir do time de várzea local “Independente Futebol Clube”, Unidos Vila Isabel fundada por seu China inspirado não bloco “Acadêmicos da Vila”, bloco da “Dona Maria Tataia” e dos clubes “Unidos da Vila” e “Vila Futebol Clube”. Vila Isabel é um bairro conhecido pelo talento de seus compositores, sendo que os dois mais conhecidos são Noel Rosa e Martinho da Vila, a Deixa Falar sempre carregou sua enorme tradição, que depois se tornou Estácio de Sá, no Centro do Rio de Janeiro, a Vizinha Faladeira reivindica ser a primeira escola de samba e foi a agremiação que introduziu o luxo nos desfiles. A Beija Flor de Nilópolis, da Baixada Fluminense é uma das grandes forças atuais do samba e investe em enredos voltados para a negritude, tendo em Joãosinho Trinta, Neguinho da Beija Flor, Selminha Sorriso e Pinah seus grandes destaques. A nova geração é composta pela União da Ilha do Governador , Unidos do Viradouro, Porto da Pedra, ambas do lado de lá da Baía de Guanabara, Grande Rio, Unidos da Tijuca e São Clemente, União da Ilha, Caprichosos de Pilares, Acadêmicos de Santa Cruz, Unidos de Lucas, entre muitas outras.
As escolas de samba seguem uma antiga tradição de se organizarem por famílias. Tirando a Mangueira como exemplo, podemos ver o poder da escola distribuído entre as famílias. Entre os principais clãs da negritude daquele território estão as famílias da Dona Neuma/Saturnino/Chininha e Guesinha, Geraldo da Pedra, Zé Criolinho, Zé Ramos, Cartola e Zica, Dória, Tia Fé/Gilda/Roberto Firmino e Guanaira, Nelson Sargento, Tinguinha/Elmo, Carlos Cachaça, Zé Criolinho, Tantinho, Hélio Turco, Alvinho e Padeirinho. Todas famílias importantes na genealogia mangueirense, que sempre mantiveram o poder entre si, excetuando um ou outro pequeno hiato.
A Mangueira surgiu da união de diversos blocos e ranchos da comunidade. No morro já existia o rancho da de Tia Fé denominado Pérolas
Paulo Barros contra Zumbi
O Carnavalesco Paulo Barros causou polêmica ao afirmar seu repúdio aos enredos afros das escolas de samba. O mais surpreendente é que ele como carnavalesco afirmar que "não gosta" de enredo sobre a cosmovisão africana. Qualquer ser humano que que tem o privilégio de montar esta grande aula a céu aberto que é o desfile de uma escola de samba, dirigida para milhões de pessoas em todo o planeta, deveria ter orgulho de mostrar as raízes africanas que estão entranhadas na identidade nacional de maneira inquestionável.
Não se trata de "gostar", trata-se sim de honestidade intelectual, pois, em 2022 na Paraíso do Tuiuti, Barros apresentou o enredo afro "Ka Riba Tí Ye - Que nossos caminhos se abram", quando a escola amargou o décimo primeiro lugar. Portanto o debate deveria se concentrar não em gostar ou não gostar e sim saber ou não saber desenvolver um enredo sobre a cosmovisão africana. Para quem já fez enredo sobre "Playmobil", demonstrando que atira em todas as direções, geralmente sem o sucesso da vitória, deveria se manter respeitosamente calado sobre o tema e não criticar os seus adversários com manifestações que insuflam a extrema-direita nacional. Ao negar de maneira peremptória a importância das raízes africanas, sempre sub representadas e até ocultadas pela historiografia oficial, Paulo Barros, por conta de sua limitação intelectual, presta um grande desserviço à luta pela promoção da igualdade racial no país. Não são somente "enredos afros", e sim o resgate histórico da saga de um povo que amargou 350 anos de cativeiro, registrado como um dos maiores genocídios da história universal. A redução da tragédia transatlântica afrodiaspórica, que sequestrou e escravizou nas Américas e Caribe mais de 20 milhões de africanos sequestrados de seus lares, onde eram livres em África deve ser sempre lembrada, para que nunca mais se repita. Se a representação artística desse trágico e inesquecível panorama "desgosta" o carnavalesco Paulo Barros é porque ele possui sérios problemas em relação às reparações históricas que estão em curso em todo o mundo democrático. Paulo Barros já fez um enredo sobre a Alemanha em 2013 e teve um carro alegórico sobre o Holocausto Judeu proibido pela justiça em 2008, evento que causou protestos e grande comoção na comunidade judaica, representada no fato pela Federação Israelita. Paulo Barros originalmente , em seu enredo, vestiria um destaque de Adolfo Hitler no carro alegórico do Holocausto da Viradouro. O escândalo foi rapidamente abafado pela escola e assim que terminou o desfile o carnavalesco foi defenestrado da instituição. Em tempos de recrudescimento do fascismo e do nazismo no Brasil, acho melhor passarmos a prestar mais atenção em seus movimentos, pelo que podemos observar sua capivara não é das melhores e suas digitais estão espalhadas por aí.
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