O negro sabe muito bem onde o calo aperta. Um desses locais é a porta do banco. As portas e seus alpendres sempre foram locais de humilhação para o povo negro. Na época do império, nós alpendres das igrejas, havia uma pequena estrutura de ferro em forma de “T” cravada no chão. Nessa peça de metal os negros tiravam o barro dos pés para poder entrar na igreja. Daí então surgiu a expressão “pé rapado”, que é uma tradução popular para quem é despossuído de bens materiais, ou seja paupérrimo.
Na porta do céu tem São Miguel, anjo guerreiro que porta uma espada , cuja missão celestial é impedir a entrada nos campos do Senhor daqueles que não professam o catolicismo. Novamente grande parte dos negros também está fora do jogo, pois as religiões de matriz africana não possuem o cristianismo como referência espiritual.
Mas mesmo estando nos tempos modernos algumas portas são a representação viva da discriminação racial. Podemos citar como exemplo as portas das boates famosas, onde reina de maneira impávido um personagem que pode ser feminino ou masculino, que determina através da observação analítica de fenótipo quem pode entrar ou não no estabelecimento. Obviamente que os negros que não são famosos não passam por esta régua, não importando como estejam vestidos ou o quanto carregam de dinheiro em suas carteiras. Nesses ambientes, o que vale é a representação caucasiana, eurocêntrica, pele branca, onde os negros não têm vez.
A porta mais cruel que interfere mais diretamente na auto estima do povo negro é a porta dos bancos. Aquela porta giratória que parece ser aleatória e democrática mas não é. Pelo contrário, a porta de entrada dos bancos é a maior representação visível do racusmo estrutural que podemos constatar atualmente.
Enquanto o mundo gira e a civilização avança em seus primados de direitos humanos e diversidade, a porta giratória dos bancos insiste em girar no sentido contrário, na direção do passado, onde a população negra raspava os pés antes de entrar na igreja, onde os negros escravizados eram obrigados por lei a andarem descalços, para serem diferenciados das pessoas livres.
A porta giratória dos bancos é como uma máquina do tempo, que gira no sentido contrário da história e remete o povo negro ao tempo da escravidão, à humilhação do tempo triste da senzala e da escravidão. Há uma dura e autêntica aula de história das civilizações no girar preconceituoso das portas dos bancos. Aquele movimento giratório demonstra o tempo histórico onde o capitalismo estruturou a política de dominação e segregação do povo negro, primeiro no continente africano e depois no Novo Mundo, para onde foram trazidos como seres escravizados.
Não existem escravos, ninguém nasce na horrível condição de escravo. Todos os seres humanos nascem naturalmente livres, de acordo com a ordem primordial do universo. As pessoas também não se tornam escravas e sim são escravizadas. A ambição humana por acumulação de capital fez com que os brancos europeus empreendessem navegações exploratórias e dominadoras ao continente africano, em busca de poder e riquezas em novos territórios.
A dominação e partilha do continente africano entre as principais nações européias deu início ao olhar crítico e consequente desconstrução de uma cosmovisão milenar, que sempre viveu de acordo com suas tradições culturais, sem interferir na cultura de outros povos. Os europeus levaram ao continente africano culturas incompreensíveis como casas com muros, propriedade privada e acumulação obsessiva de capital. Levaram também o álcool como fator de impulsão anímica e a pólvora como componente irrefreável de conquista e morte.
Do século XVI em diante o que pudemos assistir foi uma barbárie incomensurável, onde a matança, conquista e escravização levou a humanidade a um patamar assombroso de irrealidade e crueldade. Nesse movimento histórico perverso o continente africano sofreu a espoliação contínua de suas riquezas inesgotáveis, transformando simples países europeus em grandes potências econômicas internacionais, além de retirar desse mesmo continente, durante 400 anos, seus melhores corpos e mentes, levados sob os grilhões dos navios negreiros através do Oceano Atlântico para a empreitada de construção do Novo Mundo.
Aquele povo livre, feliz e orgulhoso, outrora vivendo em nações livres, foram transformados em restolhos humanos pela insaciável ganância capitalista. A mancha histórica do colonialismo e da escravidão estará sempre manchando as bandeiras democráticas do chamado mundo livre. O deletério desmonte humanitário causado pelo colonialismo e por extensão pela escravidão, por mais que se promovam ações pontuais de reparações, jamais poderá ser compensado e esquecido.
A crueldade perpetrada contra o povo negro tanto no continente africano como na gigantesca afrodiáspora, permanece na sociedade contemporânea imanente e indissociável do tempo histórico. Por isso a porta giratória dos bancos apita quando um ser humano negro tenta atravessá-la. Ele não consegue pois está em uma dimensão diferente da dela. Ele está no futuro e ela está no passado. Ela ainda é a porta senhorial, colonial, imperial. Para a porta ele é o mesmo negro, da pele preta, do cabelo crespo, dos olhos de medo do passado.
Por mais que a civilização avance célere na direção do futuro, sempre existirão esses portais transdimensionais que sugarão a alma negra para o passado, para o tempo do colonialismo e da escravidão. O capitalismo possui conhecimentos sistematizados e avanços tecnológicos formidáveis, mas ainda mantém em seu id antropológico as digitais indeléveis da perversão.
O povo negro tem sabedoria e organização suficientes para criar um mecanismo temporal que feche para sempre esse portal transdimensional das portas giratórias que crudelizam sua existência, que perpetua o racismo e a dominação. O conhecimento e a sensibilidade estão na alma negra, sempre estiveram na alma negra. O espírito e a ancestralidade desse povo histórico irão pavimentar através da diversidade um novo futuro, onde os sorrisos e abraços negros serão os autênticos portais da felicidade, onde a roda a girar será a da fortuna.
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