Qual será o nível de resignação de um homem negro no campo das dores? Talvez nunca saibamos, pois, a alma negra possui tantas camadas imperscrutáveis que se torna praticamente impossível decifrá-la. Não sabemos se a Psicanálise compreende ou desenvolveu técnicas específicas para a persona do negro. Freud era branco e vivia em um mundo branco, onde a academia sequer se importava com os infortúnios e as dores negras.
Existem inúmeras dimensões por onde coexistem os sentimentos humanos. Porém, sentimentos humanos passam a ideia de que são os sentimentos dos brancos. A academia é branca e não se preocupa em compartimentar a alma humana dentro do espectro melanínico, ou seja, por origem racial. Portanto, o processo de “coisificação” do negro, destarte a contemporaneidade, permanece sendo uma realidade inconteste. Obviamente que as pessoas sofrem, independente do grupo étnico ou social. Porém um contingente humano rebaixado etnicamente, sempre sofrerá de uma maneira diferente e até perigosa. Suas dores não serão as dores universais, as dores do mundo. As dores do negro são particulares, descartáveis e infindáveis. Talvez a dor maior do negro seja a de simplesmente existir. Sim, existir em um mundo onde o branco é o paradigma existencial natural, onde a beleza do branco representa a beleza universal, onde o sucesso do branco se reflete em todos os campos da ciência e da intelectualidade.
O negro surge na história de maneira equivocada, não como o primeiro grupo humano mas como uma legião de flagelados necessitando de cultura e desenvolvimento. Uma trapaça da branquitude gerou pseudociências que condenaram muitas gerações de negros ao colonialismo e à escravidão mercantil de alto espectro. Sempre em prol de um desenvolvimento que nunca aconteceu no Continente Africano e sim na Europa, que encontrou na empresa colonial fortuna e poder.
A engenhosidade das sociedades caucasianas geraram afroprosopopeias, onde em um processo distópico e surreal, passaram a atribuir características humanas ao seres humanos negros. Engendraram o apagamento de vivos, de cultura viva e de religiões e cosmovisões vivas.
Boaventura Santos cunhou como “epistemicídio” o intento de apagar saberes, culturas, conhecimentos e cosmovisões não eurocêntricas. Quando se destrói uma aldeia se destrói também uma biblioteca viva. O que o colonialismo efetivou em África foi um verdadeiro genocídio, tanto humanos como espiritual. Porém as narrativas não se compreendem apenas aos livros e publicações históricas. A destruição de sociedades organizadas africanas em prol de um desenvolvimento que nunca existiu trouxe as dores. São muitas dores, sendo que atreladas à morte das guerras coloniais veio a escravização e comercialização de mentes e corpos africanos.
Junto com as dezenas de milhões de mortes de africanos em África ou na diáspora, houve o amálgama das dores, que de tão silenciosas, como são as dores do povo negro, ficaram nas calendas. O que se herdou das injustiças está sendo corretamente cobrado em processos onde se clama por reparações históricas e ações afirmativas. Porém de tão silenciosas que são, as dores seguem coexistindo em um limbo primordial, como os pântanos de Nanã. Lá onde se convulsionam em sentimentos plúmbeos, não se pode medir ou definir suas dimensões, tampouco engendrar um processo de amenizá-las e mais ainda, quiçá saná-las. A compreensão do branco acerca das dores negras é praticamente nula. Apesar de encontrarmos bravos aliados na caminhada, eles não trazem em seu conjunto genético os sofrimentos e as dores do povo negro. Eles não compreendem o que é ser considerado um ser humano inferior, um cidadão de segunda classe, um coadjuvante no processo civilizatório universal. A maioria dos brancos olha para o povo negro como um possível problema, como um povo que retira prováveis benesses de suas vidas por conta de programas sociais do governo. Não há solidariedade, que deveria ser o primado básico da convivência entre os povos.
Saber não ser considerado um igual no que tange à cidadania e detentor dos mesmos direitos dos brancos faz o negro sangrar espiritualmente. Para esse tipo de hemorragia não há cauterização ou cicatrização. Não há medicina ou doutores que impeçam o jorrar incessante de assimetrias que se tornam lamentos e incompreensões.
Os brancos criaram as religiões que remetem os seres humanos a um estado constante de culpas e pecados, onde um Deus vingativo e perverso envia as almas para queimar no inferno, por seus erros básicos humanos. A antevisão do inferno com demônios vermelhos açoitando as almas penadas durante toda a eternidade fez dos negros seres confusos, pois a perda da cosmovisão politeísta africana os deixou sem opções de salvação a não ser aceitar e se conformar com o novo modelo existencial proposto pelo branco. Modelo perverso, onde trabalhar até à morte sem remuneração, perder a posse dos próprios corpos, dos desejos e da ideia de sociedade, os levou à bancarrota da autoestima. Portanto aí residem os relicários da maioria das dores negras que ainda persistem na sociedade contemporânea.
O negro está condenado dentro da sociedade capitalista a sofrer de maneira continuada, pois assim, não reúne forças para se rebelar. São colocados no mercado de trabalho em subrepresentações laborativas. Engenhosidade do capitalismo para que não tenham tempo de pensar em rebelião. Desse modo, são atirados pelo sistema econômico da branquitude às periferias distantes dos centros de trabalho, onde coexistem com um ambiente degradado e eivado pela violência do narcotráfico. A branquitude e seu sistema capitalista olham o negro como um hamster correndo naquelas rodas onde o fim é o início e o início é o fim. A roda nunca para de girar e o negro corre eternamente sem nunca ter tempo para cuidar de sua família, estudar, progredir e se e rebelar. Por trás desse sistema perverso estão as religiões abraâmicas, insistindo carinhosamente que sofrer é o melhor caminho para um pseudo paraíso em uma vida fora da terra, após sua morte. Uma maneira inteligente de encapsular as dores com a promessa de uma vida venturosa no paraíso. O grande óbice para a construção de uma sólida convergência negra de construção de alteridade é que a opção da via do paraíso está vencendo de goleada.