Postagem em destaque

Eu Negro

terça-feira, 4 de junho de 2024

A Estranha Modernidade de Bauman e a Liquefação Identitária do Povo Negro

 O Brasil carrega em sua herança histórica a vergonhosa marca de 350 anos de escravidão contínua. Ainda vivemos o tempo em que passamos mais tempo sob a escravidão quedrf sob liberdade. Ainda faltam 214 anos para igualarmos o período que passamos sob escravidão ao tempo que estamos vivendo sem ela, ou seja, em liberdade. A modernidade líquida de Bauman sussurra em nossos ouvidos que população negra está como sempre correndo risco de extinção. Se refletirmos acerca da teoria da “modernidade líquida” de Zigmunt Bauman, poderemos constatar que o fosso social entre brancos e negros é ampliado cada vez mais. Por esse motivo a “liquefação identitária” do povo negro transmutada em conceitos como o colorismo e o pardismo, por exemplo, revela a ressignificação de pertencimentos líquidos, que são atendidos através de sistemas precarizados como saúde e educação públicas, mercado de trabalho volátil e fragilizado por leis trabalhistas que estão sob constantes ataques do neoliberalismo, como a invisibilidade social diante das novíssimas plataformas tecnológicas de produção e gestão de conhecimentos. São sistemas cada vez mais complexos que conectados com a assunção da ainda indecifrável e enigmática Inteligência Artificial, nos apresentam cenários aterradores no que concerne ao futuro laboral do povo negro no século XXI. A modernidade líquida surge, segundo Bauman, no pós Segunda Guerra Mundial, mas só passa a ser percebida na década de 80, quando o mundo era varrido pelos ventos da globalização da economia. O somatório da globalização com a crise do capitalismo e o desenvolvimento das novas fronteiras digitais, culminou com o fenômeno da Internet, que começa a flertar com a avançadíssima operação dos computadores quânticos, onde a humanidade percebe-se perdida, passando a substituir intrigantes posturas sociais como a lógica da moral pela lógica doentia do consumo irrefreável. Para saltar sobre esse abismo, a humanidade passa a relativizar construções sociais sólidas como a família, a cultura do coletivo, as tradições de uma forma geral, optando pela minimalização das decisões da vida, pelo consumismo, pelas relações fluidas e pelo culto às marcas ou grifes que pressuponham ostentação. A noção de trabalho e empregabilidade naufragou solenemente neste novo espaço contemporâneo, abrindo mão do coletivo para dar lugar ao individual, onde em um mundo distópico todos são instados a um tipo de empreendedorismo autofágico, pois ao se tornarem empreendedores de si mesmos, orgulham-se em serem tornados o que se convencionou chamar de “Influencers”. Antes o organizado trabalho sólido gerava alguma acumulação de renda através de um longo projeto de vida que compreendia capacitações e atualizações. Na modernidade líquida o valor maior do fruto do trabalho, além das compensações, são os “likes”, “engajamentos” e seguidores. O que definem o sucesso pessoal e a importância dos indivíduos líquidos na sociedade são os 50 milhões de seguidores da cantora Anitta e não os 150 mil seguidores do Físico e espiritualista Marcelo Gleiser. A modernidade líquida predomina de forma assustadora sobre todos os processos de transformação da sociedade, deslocando o povo negro para uma dimensão insólita, difusa e solitária, que talvez possa significar sua quase extinção através de uma construção social moldada nos ares rarefeitos do alto capitalismo, denominada “estoque étnico descartável”. Quanto mais a tecnologia avança mais os negros se distanciam dela na direção inversa, ficando cada vez mais para trás. É como colocar o negro em uma competição de corrida de 100 metros rasos com outros corredores todos brancos. A diferença é que o negro irá correr com sapatos de chumbo, configurando a desigualdade social e histórica que impede sua progressão natural. Visitando a “Alegoria da Caverna” de Platão, podemos observar que esse novo tipo de modernidade, naturalmente por ser líquida, adquire diversos contornos farsescos, como as chamas que são projetadas no interior da caverna. No caso dos negros, que metaforicamente estão dentro da caverna, o capitalismo através dos seus sistemas de mídia, emula as figuras que determina projetar nas paredes do fundo da caverna, onde vende e seduz a todos com a proposta de um modelo de sociedade, onde o consumo, a individualidade, o consumismo incontrolável e a sede de sucesso giram a roda da existência. Porém, esse modelo de sociedade não está sendo construída para incluir o povo negro. A força de sua gênese capitalista a faz de pronto excludente no nascedouro enquanto que ao mesmo tempo, através da doutrinação líquida, faz o negro estranhar o outro negro, faz o democrata agir despoticamente e o cristão caminhar nas pegadas de falsos profetas. A modernidade líquida se torna estranha ao povo negro, pois ao se basear no consumo arraigado, na individualidade e no empreendedorismo através de sistemas digitais, obviamente está excluindo o povo negro, que de acordo com sua cosmovisão comum, igualitária, cooperativista e solidária. A cosmovisão negra aliada a seus péssimos indicadores sociais e econômicos, não pode participar da grande festa que é a modernidade líquida. Dessa maneira resta-lhe viver à margem da sociedade moderna, sem qualquer tipo de oportunidade, tornando o estado e a lei em conflito com ele e não ao contrário como se diz. A modernidade líquida pode se transformar em mais uma onda de extermínio do povo negro, pois a necropolítica faz parte do seu cardápio de opções. Ao utilizar a pós verdade como fonte de disseminação de ideias, colabora também para o recrudescimento da intolerância com a tolerância, da naturalização do racismo, da criminalização dos direitos humanos e a assunção do nazi fascismo de maneira contundente como acontece nos dias de hoje. Com isso, essa estranha modernidade líquida, contrariando sua conceituação, pode estar levando o mundo do século XXI para a era pré sólida, ou seja, o período medieval. Encontro incompatível de eras que trará de volta ao planeta os momentos de barbárie há muito abandonados e condenados. O fenômeno das violência nas comunidades periféricas, onde a população negra está concentrada de forma majoritária, se manifesta cotidianamente através de todas as agruras da precarização imposta pelo racismo ambiental, pela necropolítica estatal e pelo abandono social que faz recrudescer a violência do narcotráfico e todas as mazelas sociais advindas desse processo aspérrimo e crudelíssimo. Na medida em que mantém o povo negro confinado nesses neo bantustões, a branquitude e o capitalismo garantem para os brancos todo o acesso necessário para o devido aprendizado, domínio e controle operacional das novas tecnologias contemporâneas de gestão. Aos negros e negras restritos ao subemprego, ao desemprego e à composição das fileiras do exército de mão de obra de reserva das bases produtivas do capitalismo, resta esperançar e se agarrar à metafísica ansiando por dias melhores que dificilmente virão. Os indicadores raciais da população negra brasileira são vergonhosos. O racismo estrutural que opera desde o “descobrimento” em 1500 no país, não permite e cria óbices de todas as maneiras, que impedem a promoção social e econômica da população negra brasileira. Em todos os espaços institucionais de poder o povo negro é mantido à distância, posição que se reflete em índices como a representação no Congresso Nacional, onde somente 24% dos parlamentares são negros, sendo que os negros representam 54% da população brasileira. As mulheres negras ocupam 8% do total de congressistas, sendo que representam 28,5 do total da população brasileira. Esses indicadores demonstram que o racismo estrutural procura impedir o avanço da população negra nos espaços de poder. Dados do IPEA demonstram que 18% dos jovens entre 18 e 24 anos estão nas universidades brasileiras, sendo que a representação desse contingente de jovens negros na população brasileira é de 56%. No mercado de trabalho, segundo dados do DIEESE, a população negra representa 9,5% de desocupação enquanto a população branca apresenta indicadores de 5,9%. Dados espantosos mostram ainda que apenas um em cada 48 trabalhadores (as) negros está ocupando cargos de direção. A proporção de negros empregadores é de 1,8% para mulheres negras diante de 4,3% para mulheres não negras. Entre os homens negros o percentual foi de 3,6% para empregadores negros para 7% para não negros. A informalidade dispara entre os negros onde 46% dos ocupados estavam em trabalhos desprotegidos para 34% entre os não negros. No Brasil uma em cada seis (15,8%) mulheres negras ocupadas trabalha como empregada doméstica, que carecem de reconhecimento e trabalham em situações extremamente precarizadas no que tange a direitos trabalhistas e proteção da Previdência Social. As trabalhadoras domésticas negras recebiam um salário médio de R$ 904,00 por mês que representavam um valor de R$ 416,00 abaixo do salário mínimo vigente. Os números demonstram que o estado brasileiro é o grande cúmplice e emulador da estruturação do racismo em nossa sociedade. A vida cotidiana do negro sempre colocado em posições desfavoráveis em relação ao contingente não negro, causa indignação, revolta e principalmente doença, pois o que fica guardado e sem solução, fica retido, gerando dores e sofrimentos, adoece físico e emocionalmente. A indignação da alma negra é fruto da observação cotidiana do racismo estrutural renitente que persiste em nossa nação preconceituosa e hipócrita, gerando desigualdade, desespero e miséria. Bauman descreve com precisão o caráter líquido da modernidade, que se fosse um trem onde os negros viajariam como pingentes. Os estados líquidos da modernidade são propícios e voltados para a branquitude que possui preferência na obtenção de privilégios e oportunidades pois controlam o capital e os espaços de poder . É como brincar de viver em um mundo onde tudo se faz e liquefaz num piscar de olhos: relacionamentos, empregos, espiritualidade, territórios, cultura, educação, saúde, amores, direitos e democracia. O povo negro ainda está atado aos conceitos sólidos da revolução industrial, do materialismo histórico e quiçá da luta de classes. A modernidade líquida, enquanto provocação histórica, é mais um movimento de marginalização da população negra, que não convive com as novíssimas e espertas abordagens sociológicas da branquitude. No fundo, essa estranha modernidade de Bauman, pode causar o aprofundamento do antagonismo das cosmovisões das etnias branca e negra, que seguem em refregas subsuperficiais, como placas tectônicas da alma nas profundezas do existir. Apesar de conter inúmeras boias de sinalização interessantes, no fundo são aspectos geradores de desigualdades, que chegam como vigorosos tsunamis nas praias existenciais do povo negro. As ondas da modernidade líquida chegam às praias da negritude varrendo todas as construções sólidas que encontram pelo caminho, causando mais desesperanças com a liquefação de suas estruturas emocionais. Com o aprofundamento da desigualdade há um aumento previsível da violência, onde se presume que se continuarmos a caminhar nessa direção jamais haverá justiça social e onde não há justiça social é impossível alcançar a paz necessária e da qual estamos tanto precisados.