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Eu Negro

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

VALEU ZUMBI!

A palavra correta é reparação. Finalmente a Câmara dos Deputados corrigiu uma enorme injustiça histórica ao decretar feriado nacional a data de 20 de Novembro, conhecido como “Dia da Consciência Negra”. A efeméride é uma homenagem ao que se convencionou comemorar como dia da morte de Zumbi dos Palmares, na Serra da Barriga em Alagoas.
O Quilombo dos Palmares foi um enclave negro, fundado em 1595 por escravizados africanos e brasileiros que fugiram de seus respectivos cativeiros. Organizado politicamente como uma pequena federação, o quilombo era composto por 16 “mocambos”, sendo “Macaco” o principal deles e considerado a “capital” de Palmares. Nele reinava Ganga Zumba, soberano de destaque que criou a forma de organização política e social, além da resistência militar do enclave, que em seus 100 anos de existência enfrentou cinco dezenas de batalhas contra os impérios português e holandês, além das milícias armadas particulares da época que eram os bandeirantes.
A importância e a possibilidade de viver em liberdade em Palmares era tão significativa e atraente, que o quilombo reunia cerca de 10% da população brasileira no século XVII. Sua expansão foi tamanha que o rei de Portugal ofereceu um armistício aos seus líderes, propondo uma área, ou reserva exclusiva na capital de Pernambuco, onde todos poderiam viver em liberdade sem a ameaça do retorno ao modelo escravista. 
Ganga Zumba já idoso e cansado pelas muitas e contínuas batalhas enfrentadas, aceitou a proposta de Portugal e depôs as armas juntamente com parte de seu exército e muitos habitantes, rumando com cerca de 2 mil palmarinos para a planície pernambucana, rumo a uma nova vida.
Zumbi que era seu principal general, havia sido capturado ainda criança em Palmares e entregue para um padre em Recife, que o utilizava como escravo e ao mesmo tempo coroinha nas atividades cotidianas da igreja. Ao atingir a maioridade o jovem Zumbi fugiu e retornou para respirar os ares livres de Palmares e compartilhar da cosmovisão africana da qual jamais havia esquecido.
Como excelente conhecedor do mundo dos brancos, Zumbi desconfiado, não atendeu o chamado de Ganga Zumba para depor as armas e retornar para uma planície onde estaria à mercê das ambivalências da cosmovisão eurocêntrica e escravista dos brancos.
Ganga Zumba assim que se estabeleceu com sua gente no local prometido pelo império português, foi assassinado e toda sua gente foi presa e entregue a novos senhores, sendo que muitos foram assassinatos junto com seu líder enquanto que o restante foi entregue a diversos senhores que os escravizaram novamente até a morte.
Zumbi havia assumido a governança de Palmares e dirigia o enclave dividindo o poder com líderes dos mocambos e com os habitantes que não concordaram com o armistício e decidiram continuar vivendo em Palmares.
A partida de Ganga Zumba com milhares de palmarinos e entre eles grandes e destacados guerreiros, diminuiu bastante a capacidade militar do enclave negro. Mesmo assim a resistência palmarina lutou dezenas de batalhas antes de sucumbir ao ataque derradeiro liderado pelo bandeirante Domingos Jorge Velho em 1695, que atacou Palmares com um exército de 15 mil homens e dezenas de canhões emprestados pelo império português.
Zumbi ao assistir a queda iminente e irreversível de Palmares atira-se em um precipício dando fim à própria vida, encerrando assim um dos mais valorosos exemplos de defesa da liberdade que se tem notícia no mundo.
Palmares caiu sob uma montanha de milhares de corpos negros, como uma Tróia Negra, que escreveu com o sangue de seus guerreiros o mais bravo libelo de amor à liberdade que a historiografia branca e racista brasileira teimou em esconder e desqualificar através do tempo e da história.
O reconhecimento pelo estado brasileiro da importância da resistência legítima palmarina e da luta centenária pela liberdade, decretando feriado nacional, demonstra que a nação brasileira ficou maior, menos hipócrita e mais verdadeira.
A decretação do feriado nacional no dia em que se celebra a memória de Zumbi, um cidadão brasileiro, nascido livre em Palmares, aprisionado e escravizado pelo sistema opressor, é motivo de grande comemoração para os que sentiam um certo sentimento de injustiça ao ver Tiradentes ser comemorado nacionalmente como o geande herói da liberdade do Brasil. O herói que nunca lutou nenhuma batalha emancipatória, que jamais deu um tiro sequer que justificasse tamanha honraria e que tinha como pares senhores escravistas.
Os milhares de guerreiros mortos em Palmares, assim como os que foram massacrados na planície junto com Ganga Zumba, estão em festa no Orum. Comemoram pela reparação, pois de agora em diante serão lembrados para sempre pelas gerações brasileiras como guerreiros e guerreiras da liberdade. Estão felizes e orgulhosos, sabedores que tantas lutas e sacrifíficios por liberdade não foram em vão.
Valeu Ganga Zumba! Valeu Acotirene! Valeu Aqualtune! Valeu Dandara! Valeu Zumbi!

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

O Amargo do Cisne

"...Como é que eu posso por ela trocar/A emoção de ver Vilma dançar/Com o seu estandarte na mão"
(O Conde - Jair Rodrigues)
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A gente tenta não sentir a força do ódio, nem que seja por uns instantes, mas às vezes fica difícil. Estou na histórica cidade de Paraty, no litoral sul do Rio de Janeiro, participando da Feira Literária Internacional de Paraty, contribuindo em uma série de palestras sobre a questão racial brasileira.
Acordo bem cedo, ainda insone, custando a acreditar no que leio sobre o ocorrido com Dona Vilma da Portela no aeroporto de Brasília.
Vilma Nascimento, a maior porra-bandeira da Portela de todos os tempos, imortalizada como “O Cisne das Passarelas”, que junto com Neide e Mocinha da Mangueira, Irene do Império Serrano, Maria Helena da Imperatriz Leopoldinense, Juju Maravilha e Selminha Sorriso da Beija Flor, Rita Freitas do Salgueiro e Tuca da Vila Isabel e Lucinha Nobre entre outras beldades do bailado.
Vilma foi a escolhida pelo universo para ser a melhor. Durante anos encantou a passarela nos desfiles da Portela, seguindo fielmente a tradição de Dodô, a primeira porta bandeira da Portela.
Dona Vilma estava no aeroporto de Brasília, voltando para o Rio de Janeiro. Estava orgulhosa e feliz, pois havia sido homenageada pela Câmara dos Deputados na Semana da Consciência Negra.
No aeroporto de Brasília, na loja de conveniência Dutty Free pode entender que a homenagem havia sido apenas uma encenação do Brasil ideal, mas que na verdade, o Brasil real é outro bem sujo e opressor.
Humilhada publicamente por uma funcionária da loja, teve sua bolsa devassada, revirada, como se fosse uma meliante, uma ladra, acusada de furto.
Após o pérfido constrangimento, ainda pudemos assistir Vilma catando umas coisinhas da bolsa que caíram no chão, mostrando a falência moral dessa sociedade racista e hipócrita que é a sociedade brasileira.
O escândalo explodiu a Internet. A loja emitiu o tradicional pedido de desculpas, informando que tomará providências para que eventos do gênero não voltem a acontecer, enquanto que a funcionária racista e etarista, permacece “afastada”.
Dona Vilma viu toda sua glória desvanecer, atingida por um gesto cruel cometido por uma funcionária de uma loja de conveniência, que sequer deve saber sambar, mas sabe operar com eficiência os mecanismos estruturais do racismo. Famosa e reverenciada no mundo da cultura brasileira, Vilma para aquela funcionária desconhecida era apenas um mulher velha e preta que estava tentando surrupiar furtivamente umas coisinhas na loja.
Retornando ao Rio de Janeiro, onde é respeitada como uma deusa, Vilma sentiu a “ficha cair”. A glicose disparou e o estado de saúde preocupa a família e ao mundo do samba. Vilma sempre driblou os jurados e certamente vai se sair bem dessa, assim esperamos.
Fica então a pergunta: Quantas vilmas desconhecidas passam pelo mesmo constrangimento nas lojas do país? Quantas funcionárias e funcionários submetem negros e negras em todo o Brasil à mesma situação humilhante pela qual Vilma foi submetida?
A coisa tá feia, no Brasil e no mundo, tá piorando cada vez mais. As escolas precisam de maneira expedita começar a trabalhar com nossas crianças os fundamentos básicos do letramento racial para a partir de então podermos constituir uma nova sociedade, livre do racismo estrutural, da homofobia, da LGBTfobia, do etarismo, do capacitismo, e tantos outros “ismos” que adoecem nossa vocação de nação soberana e democrática.
Também podem ensinar samba nas escolas, pois diz a sabedoria popular que quem não gosta de samba bom sujeito não é, ou é ruim da cabeça ou é doente do pé.