O povo negro desde o século XVI, quando aportaram aqui os primeiros navios negreiros, sempre esteve à deriva no inóspito mar da branquitude segregadora e eurocêntrica.
Durante os mais de 350 longos anos pelos quais perdurou a escravidão no Brasil, a população negra nunca recebeu por parte do estado brasileiro, qualquer aceno positivo referente à intenção de reparação pelo crime de lesa humanidade cometido contra o povo negro.
A barbárie teve seu início com o sequestro e a escravização de seres humanos no continente africano para trabalhar nas Américas e Caribe. O segundo momento de horror pelo qual os africanos passavam era a separação das famílias, que eram “capturadas” nas aldeias em horrendos safáris humanos. A empresa colonial separava as famílias para evitar conflitos entre eles e pela possibilidade de sedições ou por atos extremados por conta de violações. A mãe vinha para o Brasil, o pai para os Estados Unidos e os filhos para o Caribe, em uma dolorosa separação perpétua. A metodologia escravista avaliava que agindo assim seria a melhor maneira de retirar do escravo qualquer possibilidade de estímulo anímico para a rebelião ou organização social.
Depois havia o terceiro momento de terror que era a travessia transatlântica. Somente por si assustadora, em condições normais, a situação piorava para os africanos já na condição de cativos, quando viajavam entre 2 e 3 meses cruzando o Oceano Atlântico, acorrentados em porões fétidos e insalubres. Durante a viagem eram ameaçados e humilhados, relegados às piores e degradantes condições humanas, que antecipavam como seriam suas vidas até a morte.
A captura do futuro escravo em solo africano, era geralmente precedida de ataques fomentados pelo europeu entre várias etnias do continente. O colonizador fornecia armas, pólvora e rum, uma combinação explosiva que convulsionava a normalidade do cotidiano dos povos africanos.
Dados empíricos mostram que durante esse período deixavam o Continente Africano em torno de um a tres navios, praticamente todos os dias. Essas embarcações possuíam as mais diversas configurações e traziam em seus porões cerca de 200 a 1 mil cativos por viagem, isso durante mais de 350 anos.
O tráfico negreiro era de longe o mais lucrativo empreendimento colonial das metrópoles e através dele foi possível a consolidação da estrutura produtiva no Novo Mundo pelos europeus. A empresa colonial exercia o que designou-se chamar de Comércio Triangular, que consistia em trazer os escravos para o Novo Mundo, levar açúcar e pau-brasil para a Europa e de lá armas, pólvora, rum, e equipamentos para o continente africano.
Muitos dos cativos se atiravam ao mar quando tinham oportunidade, cometendo suicídio. Apelavam para ato extremado diante da perspectiva do futuro de sofrimentos que os aguardavam, preferiam morrer, interrompendo a triste sina que estavam vivendo.
Outros cativos eram atirados ao mar pela tripulação por motivo de doença, motim ou mesmo para garantir a subsistência do coletivo, quando a embarcação se deparava com longos períodos de calmaria. Nesse caso, a ração e a água que alimentavam o contingente do navio deveriam ser preservadas. Eram calculadas para o tempo normal da travessia e quando encontravam um período de calmaria no mar os alimentos e a água potável começavam a rarear com o navio parado. Os longos períodos estacionados no mar sem vento para impulsionar as velas, eram inversamente proporcionais ao planejamento do volume de água e alimentos necessários para a longa travessia. Caso o cenário de calmaria persistisse por mais tempo que o normal tolerado, alguns escravos eram selecionados por prioridade econômica e atirados vivos ao mar, para garantir que as provisões e a água potável fossem suficientes até a chegada aos portos de destino.
Os escravos escolhidos eram lançados pela borda da embarcação nas águas profundas do Oceano Atlântico. O ato bárbaro também servia como demonstração de castigo para que os mais rebeldes não estimulassem possíveis motins ou rebeliões.
Calcula-se que durante esses 350 anos, foram trazidos de África para Américas e Caribe um contingente que orbita entre 10 e 20 milhões de africanos escravizados, onde pelo menos 10% desses seres humanos perderam a vida nessas jornadas de horrores que foram as travessias transatlânticas. A quantidade de corpos atirados ao mar era tamanha que chegou a alterar a rota migratória milenar dos tubarões, que passaram a seguir os navios negreiros aguardando o “descarte” de carne humana fresca.
O custo humano pelo trabalho de construção das sociedades coloniais do Novo Mundo será sempre impagável. O negro contemporâneo traz a marca visível da tragédia humana que se abateu sobre sua história e ancestralidade. As dores físicas não são mais sentidas, pois foram se desvanecendo nas brumas do tempo. Porém o sentimento de degredado permanece, enquanto que a sensação de não pertencimento é presente e o prazer de ser amado por seus concidadãos não existe. O negro herdou o pior que a escravidão poderia lhe oferecer, a repulsa, a desconfiança permanente do branco, além da invisibilidade perpetrada pelo racismo estrutural. O legado recebido como compensação pelo holocausto de seus ancestrais foi o instituto do racismo, a condenação eterna pelo racismo e o lugar que o capitalismo lhe reservou depois que a escravidão teve seu fim, as periferias e favelas onde oferece péssimos sistemas de saúde e educacionais. Para o negro que sobrevive ao genocídio cotidiano restam-lhes os piores postos de trabalho e sobreviver em locais inseguros e ambientalmente deteriorados. Também lhe foi vedado a isonomia para exercer o poder político que é um espaço privilegiado que pode transformar realidades.
O povo negro não foi convidado para sentar à mesa do banquete da festejada república recém proclamada após a Lei Áurea. Não foi convidado a compartilhar do evento e nem pode sentir o doce sabor da democracia que foi servida somente para as pessoas brancas em um lauto e eterno banquete antropológico.
O Brasil é governador desde então como uma república presidencialista, mas na verdade é quase parlamentarista, pois, o Congresso Nacional é quem decide os rumos do país, tendo poder inclusive para interromper o mandato do presidente eleito através de um processo de impeachment. Os negros (pretos e pardos) brasileiros representam em torno de 60% da população e no parlamento são apenas 30% do total de parlamentares. A política no parlamento brasileiro é comandada pelos representantes das grandes corporações econômicas, do agronegócio, da indústria de armas, dos grandes conglomerados pecuaristas, grupos de educação e saúde privados, sindicalismo patronal e representantes conservadores das religiões neopentecostais. Nenhuma desses segmentos tem o povo negro como referência em suas demandas políticas. Pelo contrário, lutam aguerridamente contra as cotas raciais nas universidades, perseguem de maneira tenaz as religiões afro-brasileiras, criminalizam o funk, o samba e os ritmos negros, olhando o povo negro como bárbaros selvagens e até criminosos.
O país enquanto modelo de gestão política, segue a mesma metodologias das democracias ocidentais, onde a população escolhe seus representantes políticos através do escrutínio popular.
O modelo de organização do Estado moderno prevê a separação e autonomia entre os poderes da república, sendo que as leis são debatidas, criadas e aprovadas pelo Congresso Nacional, enquanto que a função de garantir o cumprimento dessas leis cabe ao Poder Judiciário.
O parlamento deve trabalhar e legislar para que cada vez mais haja o aprimoramento da democracia através de mecanismos de gestão pública possam ser criados e aperfeiçoados para que a sociedade possa evoluir cada vez mais na direção do conhecimento, do desenvolvimento, dos Direitos Humanos, do bem estar e da paz. O grande óbice que se apresenta perante esse avanço civilizatório é a qualidade intelectual da maioria das candidaturas aos cargos eletivos em todo o país.
A miríade de partidos políticos e candidatos apresentam ao eleitor plataformas eleitorais recheadas de proposições surreais e esdrúxulas, demonstrando profundo desconhecimento da gestão pública. Comprovam que o futuro projetado e previsto dentro dos limites da democracia será absolutamente discutível, caso dependa dos conhecimentos agregados pelos representantes eleitos.
A administração pública, destarte possuir conhecimento acumulado em algumas ilhas de excelência, apresenta uma complexidade enorme ineficiência no que concerne à governabilidade.
A elaboração e aprovação de leis pelo Legislativo, exige um profundo debate que depende do conhecimento histórico das mobilidades sociais, da legislação vigente e da articulação política das organizações sociais que colaboram com a estruturação da caminhada da sociedade na direção do futuro.
O entendimento dos primados da administração pública, prevê o domínio do funcionamento da máquina do estado, que se mostra cada vez mais moderna e estruturada. Gerir a máquina pública exige um mínimo de compreensão da separação dos poderes e da interação com a sociedade civil organizada. Essa construção deve ser o ponto de partida para a estruturação de políticas públicas que irão propiciar o bem estar da comunidade.
Um dos mecanismos de observação, mensuração e controle do bem estar da população é a Estatística. Através dela e de seus resultados, o estado promove e corrige os rumos necessários para o bom funcionamento da sociedade. Através dela podemos traçar panoramas, estabelecer movimentos de pesos e contrapesos e elaborar políticas que possibilitem a harmonia social e a execução da biopolítica.
Segundo Michel Foucault a biopolítica elabora e controla as políticas voltadas aos cidadãos e cidadãs que têm suas vidas compreendidas dentro de um determinado espaço geográfico. A leitura e análise de indicadores permite intervenções no sentido da correção de assimetrias sociais e econômicas que possam gerar impedimentos na vida daquela população.
Os principais óbices encontrados pela maioria dos parlamentares quando chegam ao poder é o absoluto desconhecimento do funcionamento do estado, da máquina pública, do império da lei, da independência entre os poderes e do ato de legislar na abrangência dos limites federativos estabelecido pela Constituição Federal. O conhecimento deve orientar o parlamentar ou o gestor público na direção correta, sem ferir legislações nas outras esferas como Estado e Municípios, sempre dentro do escopo das leis infraconstitucionais.
A diversidade e a força da sociedade civil através de seus movimentos sociais e mecanismos de controle pode e deve participar da elaboração, implantação e monitoramento das políticas que impactam a sociedade.
A compreensão das técnicas de tratamento da Estatística e a consequente construção de indicadores sólidos podem e devem servir de subsídios para a elaboração de políticas públicas consistentes, baseadas no método científico e não somente no senso comum.
A arte de legislar sem a compreensão da realidade e das técnicas administrativas torna-se um fatigante ato de enxugar gelo. Administrar a complexidade de um território vivo com sua população pulsante, exige conhecimentos teóricos e práticos multidisciplinares e transversais, que necessitam estar aliados à metodologias eficazes, criatividade e inovação tecnológica.
Ao analisarmos as campanhas políticas, observamos que as mesmas usam o velho e batido bordão “Tem que Mudar!”. Certamente nos últimos 50 anos aconteceram na maioria dos municípios algumas mudanças estruturais. Porém com raríssimas exceções promoveram mudanças significativas na realidade daquela comunidade. Vejam como as velhas elites locais se revezam e se perpetuam na carcomida instituição do poder paroquial. Pouco importa se possuem capacidade de gestão que possa garantir o bem estar para a população. Proporcionar bem estar para o povo é uma empreitada política gigantesca. São compromissos que devem ser e estar eivados pela democracia, assentados sobre o primado dos Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais, voltados para a promoção da cidadania e distribuição de renda.
O entendimento principal que deveria permear a gestão pública seria passar por uma reflexão sobre a necessidade de uma profunda transformação social, que exige vigorosos investimentos em diversidade, cultura, tecnologia, educação, saúde, meio-ambiente, trabalho e renda e inclusão social. Quando falamos em inclusão é mister frisar a importância da elaboração de políticas voltadas para mulheres, jovens, negros, deficientes e população LGBTQIA+. Essas políticas não devem ser implementadas como assistência social e sim como fator de desenvolvimento e geração de novos patamares civilizatórios. A miríade de candidaturas em todo território nacional traz sucessivas ondas de desesperanças, devido à indigência intelectual e política dos novos candidatos, que esperam enriquecer no poder, gerando decepção e infortúnio nos que lhes legaram seus votos.
No caso da população afrodescendente, a política que é controlada pelos brancos, não está preparada e nem mesmo deseja compreender e conhecer os mecanismos históricos de correção, comumente chamados de Ação Afirmativa. Ao nos debruçarmos sobre o conjunto de leis do Brasil voltadas para a população negra, desde a chegada dos primeiros colonizadores até os dias atuais, não se observa uma linha sequer que vise a promoção da população negra enquanto política de reparação histórica. Pelo contrário, as leis que comumente fizeram parte do cotidiano do povo negro sempre foram voltadas para a repressão, castigo e encarceramento. Por isso os negros respondem a cerca de 70% dos apenados do país e também por isso o Brasil possui a terceira maior população carcerária do planeta.
Mesmo nos tempos atuais os brancos lutam contra a lei que permite a adoção das cotas para negros nas universidades públicas. Não permitiram que os negros estudassem durante 350 anos e agora tentam impedir instrumentos de correções visando reparações históricas, que possam reduzir a vergonhosa desigualdade ocasionada pelos 350 anos de escravidão.
A elite brasileira é avessa ao conhecimento. Pelo contrário, é cafona e ignorante. A prova disso é que insistem no equívoco da meritocracia. Está equivocada, pois, em nossa primeira constituição, a de 1824, o negro foi proibido de estudar e de votar. Por conta dessa perversidade, o estado brasileiro, promoveu mobilidade social para o contingente branco, enquanto o negro permaneceu estacionado de maneira compulsória na escravidão durante centenas de anos, sem poder avançar e estabelecer qualquer tipo de isonomia com outros grupos raciais de nossa sociedade.
Quando um político ocupa a tribuna para ofender o instituto das cotas nas universidades, está demonstrando ignorância histórica e absoluta ausência de compreensão da gestão do estado, pois, as cotas raciais, constam no documento final, no Plano de Ação da Conferência Mundial contra o Racismo das Nações Unidas, realizada em 2001, na cidade de Durban, na África do Sul. A conferência, foi um marco importante para estabelecer marcos civilizatórios nas relações raciais no planeta. Foram construídas inúmeras pontes virtuosas que propiciam viabilizar a elaboração de ações viáveis e concretas, que orientem a caminhada dos países membros da ONU no que tange às políticas de inclusão de africanos e afrodescendentes da diáspora global em ações eficazes de combate ao racismo.
Ao ser signatário do plano de ação da conferência, cuja relatoria ficou a cargo da brasileira Edna Roland, os termos assentados no documento final se tornaram compromissos assumidos pelo Brasil. Conforme decisão das Nações Unidas, esses termos tomam força de lei dentro do país após ele ser signatário do Plano de Ação. Por força desse marco jurídico, além de outros dados censitários históricos e humanitários, o Supremo Tribunal Federal – STF, julgou as cotas raciais para o acesso às universidades como matéria constitucional, para desgosto e derrota dos falsos meritocratas.
Apesar de todo o horror que a ancestralidade negra foi submetida para que fosse possível a construção da nação brasileira, a quase totalidade da população não negra não se levanta contra o racismo estrutural que insiste em perpetuar a desigualdade e o preconceito contra o povo negro no país. Mesmo depois de 120 anos da promulgação da Lei Áurea, que extinguiu a escravidão no país, ainda podemos assistir cenas cotidianas de racismo e movimentos neonazistas, destilando ódio aos negros. O racismo estrutural também atua através dos aparelhos de repressão de estado, promovendo um verdadeiro genocídio da juventude negra nas comunidades periferias e comunidades vulneráveis.
Onde estão os que decidem por nós? Não estão em lugar algum, pois os negros, desde 1525 aqui no Brasil sempre estiveram por sua própria conta. Todas as políticas de bem estar e de promoção social e econômica são destinadas aos brancos. Aos negros é destinado desde sempre o quartinho dos fundos das empregadas e os serviços degradantes e mal pagos para os homens. A responsabilidade sobre a precariedade do contingente negro é sempre apontada como falha meritocrática antropológica e não como mecanismo projetado e estabelecido pelo racismo estrutural.
Aqueles que decidem através do voto popular quais os candidatos que serão alçados ao parlamento para legislar para todos, no fundo apenas perpetuam e aprofundam o racismo estrutural e a desigualdade que toma conta do nosso país. Muitos dos que se elegem não projetam seus olhares sobre as vulnerabilidades do povo negro por puro desconhecimento histórico e outros porque são racistas consolidados e se utilizam do instituto da imunidade parlamentar para desfilar seu racismo e ampliar o fosso da desigualdade.
É importante lembrar que a naturalização da precariedade do povo negro também é uma forma de racismo. Quando a polícia mata um jovem negro, matou porque era um bandido, então matou certo, dizem. Mas por que ele se transformou em um bandido? Quais as políticas que o falecido jovem negro recebeu por parte do estado para que pudesse ao menos ter uma chance de possuir uma vida normal? É muito mais cômodo julgar e matar um negro que pensar e desenvolver políticas que lhe garantam segurança desde a vida uterina, onde a começa a sentir a desigualdade ainda na violência obstétrica, comum no serviço público de saúde. É o primeiro sinal que a criança negra recebe, do mundo exterior que a aguarda após seu nascimento.
Os que decidem por nós não estão no cotidiano das áreas conflagradas onde vive o povo negro. Estão nas mansões e apartamentos de frente para o mar, no ar condicionado, cercados de serviçais que lhes acenam continuamente com humilhantes rapapés. Em seus ambientes de trabalho, cercam-se de benesses pagas com o dinheiro do povo sofrido, para legislar sempre em favor dos bem nascidos, dos que possuem e controlam o poder. Em seus espaços materiais e espirituais não cabem o sofrimento do povo negro. Desses só lhes interessam os votos, que geralmente são calçados em falsas promessas e abraços constrangedores. Os que decidem por nós negros, não estão nem aí para as nossas agruras e nossos sofrimentos. Não estão nem aí para o holocausto dos nossos ancestrais, na verdade estão sim, perpetuando o racismo estrutural que nos oprime cada vez mais e os enriquece mais ainda.
Pesquisas das agências da ONU mostram que entre 100 países o Brasil está entre as 5 mais desiguais nações do planeta. Segundo dados da Câmara dos Deputados, a configuração do parlamento brasileiro nas eleições de 2022 mostra a grande assimetria racial brasileira, quando os negros são 60% da população brasileira e compõem somente 26% do Congresso Nacional. Ampliando nossa observação para os estados, nenhum estado brasileiro é governado por negros ou negras e nas capitais brasileiras nenhum prefeito é negro ou negra.
Somos uma nação composta majoritariamente por pretos e pardos mas governados por uma minoria branca, mostrando que as marcas do colonialismo e escravidão ainda estão latentes em nosso DNA sociológico.