A história humana é pródiga em nos mostrar que através do mercantilismo, e
depois com a expansão capitalista pelas grandes
navegações, foi gestado um processo avassalador de conquistas de novos territórios,
que consolidou o estabelecimento de poderosos
projetos coloniais nas novas paragens encontradas.
A chegada em territórios antes desconhecidos como os do Novo Mundo, da
Ásia e do Continente Africano, provocou um grande impulso nas redes de
comercialização europeias, que ansiavam por commodities como açúcar, café, madeiras, minerais, pedras
preciosas e todo o tipo de especiarias, que abasteciam as manufaturas e
entrepostos comerciais do velho continente.
A expansão do sistema mercantilista gerou uma economia pujante, que
transformou os principais países da Europa em grandes potências internacionais.
O período de grande enriquecimento
europeu impôs um fardo muito pesado em seus territórios coloniais, causando a deterioração
e até extinção do modo de vida de inúmeras
sociedades milenares, como as de vários países africanos e de populações autóctones
nas Américas e Caribe principalmente.
A invasão e colonização do Continente Americano e Caribe pelos europeus,
ocasionou um dos maiores genocídios de populações originárias da história da
humanidade.
Para que pudessem obter sucesso comercial e financeiro em seus
empreendimentos coloniais, as nações européias utilizaram o instituto da escravização de seres humanos,
inaugurando o pérfido recurso do tráfico transatlântico de africanos escravizados
para o Novo Mundo.
Estima-se que entre os séculos XVI e XIX, foram trazidos entre 12 e 20
milhões de africanos escravizados para o
Novo Mundo. Foram levados principalmente para as Américas, com ênfase para o Brasil,
Estados Unidos, colônias da América Espanhola e Caribe. Desses milhões de africanos escravizados,
estima-se que entre 1 e 2 milhões perderam a vida durante a travessia transatlântica,
quando tiveram as águas escuras e gélidas do Oceano Atlântico como última
morada.
Durante mais de 300 anos, países como Brasil, Portugal, Espanha e Estados
Unidos, retiraram do Continente Africano como escravos, os melhores corpos e
mentes, causando um enorme déficit de população economicamente ativa e apta intelectualmente
para a manutenção das instituições, das cosmovisões e das estruturas sociais
das nações africanas impactadas pelo colonialismo escravista.
Outro golpe profundo que esgarçou ainda mais o combalido tecido social africano, foi a partilha surreal do continente pelas potências europeias durante a Conferência de Berlim. A divisão de um continente composto por dezenas de nações independentes e milenares, realizada de maneira abusiva e aleatória, desrespeitou princípios básicos como fronteiras, identidades, religiões, e lideranças locais, ampliando e acirrando ainda mais o fosso político que existia entre diversos povos africanos.
A falta de capacidade de compreender a fantástica metafísica do sagrado africano
e a intrínseca cosmovisão de um mundo diferenciado, multicultural e pluriétnico,
levou os europeus submetidos ao monocórdio plúmbeo da Inquisição, exortar o povo
africano à penitência e à culpa por viver a constante alegria da convivência íntima com o politeísmo e uma liberdade existencial imanente e de certa maneira lúdica em seu paganismo.
Enquanto isso nas colônias americanas e caribenhas do além mar, a empresa
colonial europeia atuava ativamente na utilização de mão de obra escravizada na
tarefas de produção de commodities voltada para suprir o ávido e carente mercado
consumidor europeu.
O período colonial, tanto em África como nas Américas e Caribe, imprimiu marcas
centenárias que nunca foram sanadas e que persistem em existir no cotidiano da
sociedade atual.
As rebeliões quilombolas e urbanas, o processo abolicionista e as
pressões da Inglaterra para o fim da escravidão, tornaram o processo
emancipatório irreversível, ressaltando que o Brasil foi o último país das Américas
e Caribe a por fim em seu processo escravista.
Após a abolição da escravidão, o Brasil empreendeu um projeto
governamental de embranquecimento de sua população. O processo foi impulsionado
através do incentivo à imigração de europeus, que receberam do governo
brasileiro um conjunto de subsídios como cessão de terras agricultáveis,
sementes, fertilizantes, máquinas, equipamentos e empréstimos subsidiados pelo
Banco do Brasil e outras entidades estatais de fomento.
A prova mais evidente que confirma a intenção do Brasil de promover o
apagamento do povo negro de sua história foi o envio de dois representantes ao
Congresso Universal das Raças realizado em Londres no mês de julho de 1911,
onde o médico brasileiro João Batista de Lacerda que compunha a delegação,
previu que após três gerações, ou seja, dentro de um período de 100 anos, não nasceriam mais pessoas negras
no Brasil. Lacerda enfatizou que devido ao intenso processo de mestiçagem e a predominância da
etnia de origem europeia, teria fim o nascimento de negros no Brasil. Esse foi o projeto de embranquecimento de nossa
população que foi levado a termo pelo governo, que avaliava o ano de 2011 como o marco temporal para o nascimento do último negro brasileiro.
O fato inconteste da participação brasileira e a posição eugenista dos
nossos representantes nesse congresso, mostra que a população negra nunca foi
amada no Brasil. Na verdade os negros e negras sempre foram utilizados como objetos,
como seres inferiores e sem alma, recebendo tratamento inferior ao dispendido
aos animais. Nunca nos amaram e nunca nos desejaram enquanto seres humanos. Desde
o século XVI quando nossos ancestrais chegaram aqui acorrentados, só conhecemos
a exploração, a violência física, as sevícias, o ódio e a indiferença
governamental.
Deveriam ter tido um mínimo de decência após a decretação do fim da
escravidão e ao menos minorar o sofrimento que causaram ao povo negro durante
mais de três séculos.
Comprovando o asco que nutriam à população negra do país que lhes
enriqueceu, a elite branca virou as costas para o contingente negro
depauperado e investiu na imigração de europeus brancos com todas as benesses
possíveis. Enquanto isso, ao mesmo tempo, o povo negro que estava aqui trabalhando
escravizado há 350 anos, foi relegado à miséria absoluta, sem políticas
públicas de inclusão como geração de trabalho e renda, ensino profissionalizante,
programas habitacionais e garantia de direitos básicos fundamentais.
Por conta do abandono estatal, a população negra recém liberta se viu
relegada ao abandono, ficando sem qualquer tipo de apoio e vivendo por sua
própria conta, sem futuro, sem trabalho, sem cidadania e sem esperanças.
À população negra brasileira foi concedido o sabor amargo da vida precária,
vivendo descartada nas distantes periferias e favelas das cidades. O trabalho
urbano era estranho à maioria de negros e negras oriundos das lidas rurais de
onde vieram em busca de solução para a própria sobrevivência.
Restou então ao povo negro a submissão e resignação à segunda escravidão,
travestida de serviços domésticos, embutida no subemprego dos estabelecimentos
comerciais e industriais ou então descartado no fatídico e crônico desemprego
na jovem e imberbe república.
O fim da escravidão não interrompeu o ciclo da luta racial no país.
Enquanto que antes a luta era quase que exclusivamente por liberdade, com o
advento da Lei Áurea o movimento passou a adquirir novas configurações e
contornos, quando então a população negra passa a reivindicar por direitos como
integração social e econômica, melhores condições de trabalho, liberdade
religiosa e cultural e igualdade na diversidade.
Por mais que tenha havido um avanço significativo na integração da população
negra na sociedade brasileira, o país continua sendo um dominado pelo mito da
democracia racial enquanto é governado pelo racismo estrutural, que privilegia
a etnia branca no que concerne a estabilidade financeira, protagonismo social e
poder político. Por mais incrível que possa parecer, o projeto colonial
português ainda está vigente em nosso país, apesar da república e mesmo com a contemporaneidade
com seus avanços científicos e sociais.
Em pleno século XXI, negros e negras continuam relegados aos territórios precarizados
das cidades. Persistem sendo oprimidos nas periferias e favelas por grupos paramilitares,
pelo narcotráfico e através dos aparelhos de repressão de Estado. O povo negro
representa a grande maioria da população carcerária do país que é a terceira
maior do mundo, ficando atrás apenas dos EUA e China. A juventude negra é submetida a um verdadeiro genocídio,
onde a cada absurdos 23 minutos morre um jovem negro no país vítima da
violência.
No mercado de trabalho negros e negras ocupam a base da pirâmide laboral brasileira,
sendo que as mulheres negras recebem 1/3 do salário que recebem os homens
brancos para exercerem a mesma atividade. As universidades públicas continuam
sendo um grande feudo da elite brasileira e reproduzem diuturnamente o ensino
colonial, conservador e não inclusivo nos cursos de Medicina, Direito e
Engenharia, por exemplo.
Fica evidente que apesar dos avanços reconhecidos pela comunidade negra, o Brasil segue a doutrina neoliberal que orienta a gestão política e social dos países capitalistas do hemisfério norte. O povo negro historicamente sempre foi a principal vítima dos crimes humanitários cometidos pelo sistema capitalista, desde o século XVI até os dias atuais.
A cumplicidade entre a Igreja Católica e os impérios Português e
Espanhol, gerou uma bula papal denominada “Dum diversas”, emitida pelo Papa
Nicolau V, que autorizava a escravização dos povos africanos. A justificativa
para o cometimento do crime de lesa humanidade que é a escravidão, foi devido a
imputação ao negro a dolorosa condição de ser despossuído de alma, de ser um objeto falante.
As famílias que controlam a economia capitalista brasileira são em sua
grande maioria as mesmas que estão aqui desde as capitanias hereditárias. Essas
famílias foram beneficiadas e enriqueceram através da escravidão e do tráfico
negreiro, sendo que hoje controlam as terras do país, as indústrias, os bancos,
as corporaçoes de mídia, os parlamentos, o Judiciário e outras instituições de
Estado, inclusive o Alto Comando das Forças Armadas.
Ao povo negro foi destinado o carimbo da cidadania de terceira classe,
vivendo em habitações precárias, espremido no transporte público, recebendo
remunerações indignas e insuficientes, sendo oprimido pela polícia,
discriminado pela branquitude e atirado constantemente ao degredo do desemprego
e da invisibilidade.
Todo esse panorama deletério sempre foi e continua sendo ocasionado pelo
projeto neoliberal oriundo das economias centrais do mundo capitalista.
Portanto, fazer a luta antirracista desacoplada da luta anticapitalista, sem compreender
a luta de classes e a dialética marxista
pode ser um trabalho de Sísifo na organização social e mobilização da luta
racial.
É imperioso internalizar que o racismo é uma das inúmeras metástases de
um tumor maligno denominado capitalismo. Este tumor continua espalhando suas
extensões na sociedade em diferentes formas como o patriarcado, o machismo, a
homofobia, o capacitismo, a gordofobia e tantos outros malefícios sociais que
atentam contra a cidadania e contra os direitos humanos.
Para o povo negro torna-se paradoxal lutar contra o racismo sem lutar
contra o capitalismo e seus mecanismo de opressão.
O livro “Ideologia e Negritude na Luta Antirracista”, mostra a necessidade
da simbiose política entre ideologia e negritude como componente essencial na construção
da luta antirracista em nosso país erigido sob a égide do racismo estrutural e
institucional. A publicação traz inúmeras inquietações e desafios, enquanto se
propõe ao conjunto da militância antirracista como um subsídio adicional e reflexivo,
para que possamos construir através do entrelaçamento diaspórico um Brasil
verdadeiramente diverso, igualitário e sem racismo, para as gerações atuais e
para negras e negros do porvir.