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Eu Negro

terça-feira, 23 de maio de 2023

Somos todos primatas: negros, brancos e todas as cores, por toda a eternidade


Somos todos macacos, porque 98,7% do nosso DNA é exatamente igual ao dos chimpanzés. Mas mesmo assim som3nte o negro acorda com o terrível despertar de carregar o fardo de sua existência desvalida, que o faz inferior aos brancos em uma sociedade racista. Uma sociedade onde ser branco é o paradigma factual que detém a pena da história e o poder. O negro sabe que assim que bater a porta e sair de seu lar estará entregue aos leões, aos dragões da maldade. O racismo lhe espera e estará à espreita em cada quarteirão, em cada loja, no metrô, na lanchonete, na farmácia e em todos os lugares por onde ele passe. O racismo é parte de sua existência. É um protoestado de destruição de almas, de demolição de edpíritos e de dissipador de alegrias, afetos e amores.
O racismo não é obra de Deus. É uma contrução do humano que reverbera o desumano. No racismo a bondade divina fenece e há a assunção do pérfido, do mau, do abjeto. O racismo é como o narciso ao contrário, onde os seus agentes, os racistas, repelem a si mesmo ao se verem confrontados com seu ethos diferenciado, sua representação transformada por adaptações climáticas. O racista não consegue suportar seus eus gritando por outras vidas, outras culturas e outros mundos. Ele não tem força para compreender que não consegue compreender o mínimo do básico da constituição humana na ocupação do planeta. Sente-se superior ompulsionado pela igignorânciq, pela inabilidade social com o diverso e pela capacidade de amar o próximo como o Cristo nos ensinou.
Cavalgando em sua enorme ignorância e tendo às mãos arreios beócios e inescrupulosos, gera óbices existenciais e com fervor disciplina sua reduzida capacidade de compreensão para a sedição antropológica. O racista é por natureza um ignorante, pois, repele a só mesmo quando comete atos racistas. Ao chamar o negro de macaco enquanto gesto de pretensa degradação humana, abre a caixa de Pandora do preconceito contra si próprio, pois de maneira inequívoca também é descendente dos símios.
Nós aforismos de “Humano Demasiadamente Humano”, Nietzsche nos traz à reflexão da prática do mundo, sem um Deus imanente, onde tudo, a vida e a cultura se resumem à simplicidade de simplesmente viver. O racista não consegue viver desse modo, ele precisa se emaranhar em complexidades existenciais toscas lastreada por signos inexistentes.
Quando uma platéia enfurecida através de um transe psicótico passa a ganir impropérios contra um jovem negro que é protagonista do espetáculo pelo simples fato de ser negro é porque ela é morta. Sim é uma platéia morta, morta e composta por ectoplasmas redivivos que se recusam celebrar a vida com todos os seus encantos, pois só conhecem a escuridão e o pavor das tumbas.
A platéia racista não pode permitir o brilho da vida, a celebração, a dança e o sucesso daquele jovem negro. Ela não consegue se enxergar nele, também pudera! Tão cheio de vida, músculos fortes e elásticos como de uma pantera begra, Rico, muito rico, vitorioso e usufruindo o sucesso e a admiração de todo o mundo devido ao que faz de melhor que é jogar futebol. Aquele jovem negro é como Michelangelo criando o teto da Capela Sistina, como Da Vinci pintando a Gioconda e Gaudí em sua interminável catedral.
Porém o jovem negro impiedosamente atacado pela turba racista responde como Picasso construindo Guernica. Constrói sua obra nos gramados de maneira impecável e ao mesmo tempo a destrói em pedaços para mostrar ao mundo a fragilidade humana representada pela violência.
O cientista senegalês Cheik Anta Diop, para inconformismo e fúria dos racistas comprovou através de estudos científicos consolidados que a espécie humana surgiu no continente africano. Sua tese de doutorado aprovada pela Universidade de Paris, foi transformada no livro “The African Origin of Civilization: Mith or Reality”, comprova que os egípcios eram um povo negro.
No livro “Os Condenados da Terra”, o Psiquiatra martiniano Frantz Fanon descreve um panorama devastador sobre os efeitos que o racismo causa na psiquê humana do negro. Fanon jamais ousaria imaginar que um jovem negro pudesse sofrer ataques racistas oriundos de uma multidão ensandecida nas arquibancadas do estádio. Se as ações sutis do racismo causam danos mentais, imaginem uma gigantesca plateia em um estádio em furia, o que não está ocasionando em um indefeso e imberbe jovem negro, que somente precisa exercer sua profissão que é jogar futebol.
Os europeus sempre trabalharam incansavelmente na consolidação de sua superioridade em relação a outros povos. Atuaram em todas as direções possíveis para garantir a comprovação de teorias do eugenismo. Lançaram mão de pseudo ciências como a Frenologia e a Craniologia, por exemplo, que vaticinavam a superioridade caucasiana baseada em diâmetros e volumes de crânios das diversas raças.
No campo da economia, houve a potencialização do Mercantilismo ou expansão do Capitalismo através das grandes navegações. Essas empreitadas coloniais visavam a expansão dos impérios português, inglês e espanhol, que para que pudessem dominar, explorar e escravizar os povos originários receberam da Igreja Católica a permissão para essas ignomínias, através da Bula Papal Dun diversas, emitida pelo Papa Nicolau V em 1452. A bula autorizava as expedições ultramarinas a invadir, dominar, tomar os territórios e escravizar até à morte todos os povos sarracenos e não cristãos. Obviamente que estavam mirando nos continentes africano, americano e asiático. A Dum diversas foi o documento da Igreja Católica que forneceu as chaves que abriram as portas do inferno para os povos africanos e americanos para sempre.
A partir de então as religiões de matriz africanas passaram a ser demonizadas, judeus e ciganos perseguidos pela “Santa Inquisição” e inaugurou o pior dos crimes que a humanidade já sentenciou que foi o colonialismo e a escravidão em massa de indígenas e africanos. São cerca de 100 milhões de vidas envolvidas nesses massacres, desde a Idade Média até o Holocausto Judeu na Segunda Guerra Mundial cometido pelo nazifascismo.
Bertold Brech disse em metáforas que quando a cadela do fascismo entra no cio sua sede de vingança e poder é incontrolável. A Europa não é racista mas os nazifascistas europeus são. Eles não admitem, baseados em suas teorias etnocentristas e eugenistas, que um jovem negro brasileiro de origem humilde se torne milionário e mais do que isso, uma estrela nos esportes de alto rendimento como é o caso do futebol. Não admitem a superioridade do negro. Nunca engoliram Pelé mas reverenciam Cristiano Ronaldo, desdenham Lewis Hamilton mas endeusam Michael Schumacher e assim por diante
O caso Vinícius Júnior mostra que a ferida continua latente sob as cicatrizes históricas do processo de descolonização e extinção da escravidão de seres humanos. Esse processo preconceituoso somente chegou a esse ponto porque as Nações Unidas e as grandes potências estão voltadas para a circulação de capital e não para o bem estar da humanidade. Albert Einstein disse que é mais fácil quebrar o átomo que quebrar um preconceito. A ONU criou e incluiu em seu organograma o “Fórum de Afrodescendentes”, que pode ser um bom caminho para que se possa iniciar um processo global de educação antirracista e penalização dos atos de racismo.
Esse modelo neofascista europeu que nos assusta é o mesmo que erigiu o Terceiro Reich e a ascensão de Hitler ao poder. Ele também está aqui no Brasil, onde políticos se referem ao peso de negros em arrobas, como gado. Quando negros e negras são retirados de aviões sem um causa específica, quando um músico e sua família são metralhados por 80 tiros em uma tarde de domingo e quando um menino negro perde a vida ao cair do nono andar de um prédio, porque a madame que era responsável por sua segurança estava fazendo as unhas.
A tarefa para enviar os ratos de volta ao esgoto de onde vieram é enorme. Deve começar em cada casa, depois em casa esquina, bairros, cidades e países. Apesar do conceito biológico de raças ter caído por terra, o conceito social e político ainda é mantido. Precisamos nos organizar cada cada vez mais para que as futuras gerações negras não passem e não sofram a dor desse crime hediondo que é o racismo.

terça-feira, 16 de maio de 2023

A Importância do Letramento Racial Para a Construção de Uma Nova Sociedade


 


O conceito de letramento racial é oriundo da expressão inglesa “racial literacy”, criada pela socióloga estadunidense France Winddance Twine em 2003. Segundo Lia Vaine Schucman, doutora em Psicologia pela USP, que traduziu o termo, o letramento racial está relacionado com a necessidade de desconstruir formas de pensar e agir que foram naturalizadas. O letramento propõe a racialização das relações entre brancos e negros, visando a reeducação e o fim do estabelecimento arbitrário de direitos e lugares hierarquicamente diferentes para brancos e não-brancos, que legitima uma pretensa supremacia do branco.”

Nos anos 90 o jornal Folha de São Paulo publicou uma pesquisa que ficou marcada nos debates sobre a temática racial brasileira. A pesquisa apontou que 90% das pessoas entrevistadas afirmaram conhecer pessoas racistas e reconheciam a existência do racismo, afirmando porém enfaticamente que não eram racistas de jeito nenhum. Esse resultado aponta para uma falta de compreensão acerca do que seja o racismo e suas mais nuances mais sutis. O racismo é um sistema perverso que opera diuturnamente para a promoção de um contingente étnico em detrimento a outro. No caso brasileiro toda a estrutura do estado é voltada para a promoção da população branca, secundarizando em todos os aspectos os modos de promoção da população majoritária do Brasil que é a população negra.

A construção do racismo no tecido social brasileiro foi alinhavada na Europa quando tiveram início as grandes navegações do mercantilismo no século XIV e se desenvolveu mais ainda empurrada pelos ventos da Revolução Industrial em suas duas mais importantes versões. Apesar do Iluminismo ter colocado suas lupas estimulando o fim da escravidão, foi inevitável a divisão do mundo em raças, com a contribuição da antropologia física surgida no século XVIII, que focalizou seus estudos em esqueletos humanos. Essa nova perspectiva da ciência visava apresentar o resultado de observações fenomenológicas da evolução e da variabilidade humana. Após inúmeras descobertas de novos territórios e suas populações houve a necessidade de classificação pelos naturalistas desses seres humanos do passado em seus espaços geográficos.

As raças geralmente foram classificadas de acordo com suas localizações geográficas, devido aos fatores climáticos que produziram suas diferenças. Mas os europeus sempre se declararam diferenciados, baseados em sua cultura e em uma pretensa erudição em relação aos povos africanos e asiáticos, onde a escolástica, por exemplo, se referenciava a eles como gentios ou bárbaros, como os romanos se referiam aos povos saxões. Os europeus consideravam os traços africanos brutos e primitivos, e portanto, não atraentes, frutos de uma civilização bárbara e não civilizada. A partir desse ponto foi estabelecida uma hierarquia que privilegiou a ambição do colonialismo gerando teorias científicas que justificavam a invasão de territórios e dominação de populações autóctones.

O estudo morfológico e métrico do crânio através da craniologia, foi iniciado por Blumenbach (1752-1840) onde a morfologia do crânio começou a ser usada sistematicamente como parâmetro para determinar a raça de origem de um indivíduo.

Esse tipo de estudo foi o fator principal para que através de suas concepções, houvesse uma hierarquia social baseada em padrões como “crânio alongado” “globular” entre outras definições, que demonstravam a hipointelectualidade cognitiva dos povos africanos e asiáticos. A partir desse momento foi criada e consolidada pelos europeus a hierarquia social e cultural entre os grupos humanos.

A metodologia de Blumenbach transversalizou as características osteológicas do século XVIII e foi seguida por Franz Joseph Gall (1758-1828) que afirmava que as características cranianas correspondia a certas características cognitivas e intelectuais. A partir de então nasce a Frenologia, uma pseudo ciência que sugeria que a protuberância na cabeça dos seres humanos determinavam seus traços e caráter. Na era vitoriana inclusive, as cabeças eram usadas como modelos de leitura para aferição de personalidade. A Frenologia foi utilizada como forma de racismo científico para consolidar práticas e políticas opressoras contra povos originários.

A Frenologia foi contestada seriamente por grande parte dos pesquisadores da época. A ideia de raça também sofreu críticas devido ao imenso conjunto de parâmetros que combinavam inúmeras características e não somente à seleção ambiental que acentuava certas características fisionômicas como cor da pele, cabelos, olhos e formato do crânio. Em 1994 a Associação Antropológica Americana abandonou o conceito de raça por falta de embasamento científico. Para se afastar da conotação social da palavra "raça", a ciência precisou modificar sua maneira de se referir às populações humanas e aceitar a existência de uma única espécie que passou a ser designada como Homo Sapiens.

A definição biológica de raça passou por intensos estudos e testes no campo da antropologia molecular em 1972 por Richard Lewontin da Universidade de Harvard que fez um exame detalhado das proteínas do sangue de populações diferentes. Os resultados não apresentaram diferenças significativas entre todos os pesquisados. Também foram realizados estudos tendo como base a sequência base do DNA de diversas populações onde o resultado mostrou que 99,9% das amostras são idênticas. Esses resultados colocaram por terra o conceito biológico de raça e soergueram o conceito de ancestralidade que tem uma dimensão mais holística e social.

Com o conceito biológico de raças pulverizado, restou aos movimentos sociais de direitos humanos e de combate ao racismo apontar para as assimetrias sociais que essas teorias científicas eugênicas causaram às populações negras do continente africano e da afro diáspora. Consequências deletérias que proporcionaram terríveis genocídios e perpetuações de opressões durante muitos séculos. Há porém uma armadilha embutida no conceito de não-raças, pois, a assertiva em torno do termo ‘raça humana’ dilui e mascara as construções do racismo estrutural. Para um racista nada melhor que se trabalhar o conceito de raça humana, pois fica eliminado o “fator melanina” que incomoda demais os racistas e absenteístas do tema.

O Letramento Racial é a ferramenta que nos coloca de maneira crítica e empoderada entre o fator biológico e o fator social no que tange à luta antirracista e a promoção de populações negras. Não somente desconstruir o racismo mas também elaborar práticas antirracistas. O Letramento Racial é composto por um conjunto de práticas que propõem a capacitação de pessoas que possam avaliar e contestar as práticas do racismo estrutural e suas derivações contidas no âmbito da discriminação racial e suas manifestações no cotidiano da sociedade.  Apesar de ser um conjunto de práticas de fácil compreensão, o letramento adquire contornos complexos quando se depara com a subjetividade do racismo na sociedade brasileira. Há uma gama de estudos e reflexões sobre os processos históricos que culminaram com a construção social do racismo, a ancestralidade e cosmovisão da população negra, da diversidade étnica, da multiculturalidade africana e da afro diáspora.

O letramento pode ser considerado um processo de reeducação racial, fomentado com o intuito de promover a desconstrução da naturalização do racismo nas suas mais diversas formas de manifestações. Essa desconstrução passa pela clivagem tanto da população branca que opera em seu contexto de se imaginar uma raça superior, como pela população negra na direção de desconstruir a naturalização do cotidiano racista.

Denominou-se chamar branquitude à construção da identidade racial branca. Essas construções acontecem nas sociedades onde o racismo estrutural identifica as pessoas pela cor da pele com o conceito da superioridade da raça branca. Como é considerada superior, pode ser excluída do conceito de raça, pois, por ser superior é humana. Uma pessoa branca não pensa em conceito de raça pois não precisa dele. Nas sociedades contemporâneas ser branco é o paradigma natural e por ser assim podem ‘jogar’ com o axioma de que somos todos iguais. Então os brancos não se deparam com a qualidade de ser branco pois a tensão racial está sempre colocada sobre o contingente negro da população. Uma pessoa branca vive sem pensar em sua condição racial, enquanto que uma pessoa negra não se descobre negra mas é apontada por sê-la. Por isso o letramento torna-se necessário para que tanto pessoas brancas quanto negras saibam como podem conduzir suas ações compreendidas na complexa dialética racial.

O sistema capitalista é pela própria origem opressor e excludente. O sistema nasceu nas fraldas da Frenologia e no campo social não sofreu grandes alterações desde então, onde a etnia branca comanda os meios de produção sendo detentora do capital e do poderio econômico, enquanto negros e negras vendem sua força de trabalho por um valor simbólico, apenas suficiente para que possam sobreviver, sem as mínimas condições de poupança e de qualquer acumulação de bens ou capital. O capitalismo encontra sustentação na configuração patrimonialista do estado brasileiro, onde todo o sistema político é assentado nas bases do colonialismo e ainda comandado pelas mesmas famílias que ocuparam as capitanias hereditárias. O racismo estrutural criou um modelo de desenvolvimento somente voltado para a etnia branca e esse molde se reprograma e se reproduz, garantindo poder político e poder econômico a este contingente humano.

É uma falsa ideia de democracia, onde o pretenso modelo representativo, quer nos convencer que o povo decide os destinos da nação através de seus representantes. Pura ilusão, o poder econômico financia a maioria das campanhas políticas ao parlamento brasileiro e seus parlamentares eleitos são obrigados a seguir a cartilha do seu mecenas e financiador, que obviamente não pensa nos direitos constitucionais da população pobre, quanto menos da negra.

O racismo estrutural não permite que se aponte o racismo em nossas escolas. As aulas de História do Brasil, com raríssimas exceções, são eivadas de datas e vultos históricos, passando ao largo de todo o processo mercantilista europeu e sua invasão dos continentes africano, caribenho e sul americano, assim como a sofisticada tecnologia metodológica empregada no comércio triangular e no tráfico transatlântico de milhões de africanos escravizados. Esses eventos são ocultados e criam um limbo difuso nas cabeças de nossos estudantes acerca da ancestralidade de alguns e da formação da nação brasileira por todos. A negação da história sobre a violência sobre as mulheres negras e a designação dos africanos escravizados como seres sem alma, inclusive pela própria Igreja Católica. Caio Prado Junior em seu livro “Formação do Brasil Contemporâneo”, registra a situação de submissão a que eram submetidas as mulheres negras escravizadas. De acordo com Junior (1961, p .342): “...a outra função da mulher escrava era ser instrumento de satisfação sexual das necessidades sexuais de seus senhores e dominadores, não ultrapassando o nível primário puramente animal do contato sexual. Não se aproximando senão muito remotamente da esfera propriamente humana do amor”. (Junior, 1961, p.342)

A omissão desses fatos reais servem como um biombo antropológico que oculta a verdade histórica e garante a sobrevivência do sistema capitalista com suas opressões.

O conceito de letramento compreende um estágio superior à alfabetização. O Letramento Racial pode contribuir de maneira direta na Educação, promovendo o desenvolvimento cognitivo da comunidade escolar, criando um ambiente rico em assertividade no que concerne aos debates sobre a temática racial.

O Letramento Racial nos mostra como as relações raciais transformam a sociedade e como essas relações são transformadas por ele. Para que possamos estabelecer essa prática na escola é necessário compreender a necessidade de uma (re)educação antirracista. Segundopara tirar essa ideia do papel nas instituições de ensino. Segundo Rodrigues (2017): 

1. É fundamental que as escolas se comprometam com as leis n° 10.639/03 e a 11.645/08, abordando a história e as culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas de forma orgânica e sistemática – para além de datas comemorativas – em todas as esferas da vida escolar; 

2. Os currículos precisam ser discutidos e atualizados para colocar perspectivas pretas em evidência. É preciso incluir autores que representam a perspectiva africana e afro-brasileira em diferentes áreas de conhecimento. Também é urgente ler sobre distribuição de renda, escolaridade e moradia da população preta. Perceber que identidades raciais são construídas e conhecer a História são ações fundamentais para enfrentar o racismo e o preconceito; 

3. Como professores e gestores lidam com manifestações racistas no espaço escolar? Elas são explicitadas? Discutidas? A escola investe na formação dos docentes para abordar relações étnico-raciais? Pesquisas e estudos sobre essa temática precisam ser referenciais para toda ação docente; 

4 . Cabe à escola apresentar aos estudantes a diversidade não apenas de textos, de temas, mas também de concepções de mundo, de modos de fazer e de dizer. Assim, é fundamental que as escolas incluam autores e intelectuais pretos em suas bibliotecas e atividades de sala de aula. Qual o lugar destinado às práticas de oralidade, tão importantes para os povos africanos e para nós, brasileiros?

Os currículos precisam ser discutidos e atualizados para colocar perspectivas pretas em evidência. É preciso incluir autores que representam a perspectiva africana e afro-brasileira em diferentes áreas de conhecimento. Também é urgente ler sobre distribuição de renda, escolaridade e moradia da população preta. Perceber que identidades raciais são construídas e conhecer a História são ações fundamentais para enfrentar o racismo e o preconceito; 

Como professores e gestores lidam com manifestações racistas no espaço escolar? Elas são explicitadas? Discutidas? A escola investe na formação dos docentes para abordar relações étnico-raciais? Pesquisas e estudos sobre essa temática precisam ser referenciais para toda ação docente; 

Cabe à escola apresentar aos estudantes a diversidade não apenas de textos, de temas, mas também de concepções de mundo, de modos de fazer e de dizer. Assim, é fundamental que as escolas incluam autores e intelectuais pretos em suas bibliotecas e atividades de sala de aula. Qual o lugar destinado às práticas de oralidade, tão importantes para os povos africanos e para nós, brasileiros?

O letramento nos auxilia na medida em que demonstra que o racismo não é uma coisa do passado, que não terminou com a Lei Áurea. O sistema de exploração continua só que agora amparado na lei e sob o nome de democracia. A democracia que destinaram aos negros é um engodo, assim como na Caverna de Platão, onde sombras são projetadas nas paredes da caverna e aquelas sombras significam a verdade. Em nossa sociedade funciona mais ou menos assim, eles mudam as leis e os procedimentos para que tudo continue do mesmo jeito que sempre foi. Podemos citar como exemplo algumas leis de inclusão, onde os negros conseguem ocupar certos espaços mas está sob um teto de vidro, onde vê os andares superiores mas não consegue atravessar a barreira de vidro.

As pessoas não nascem racistas elas se tornam racistas. Ou por aprendizado ou por osmose situacional, onde a criança branca acostuma a naturalizar a presença de negros em posições de inferioridade profissional em seus ambientes sociais. Com o tempo torna-se estranho encontrar uma pessoa negra no mesmo patamar de uma pessoa branca e alguns casos, onde seus ambientes sejam mais conflagrados ela passa a odiar as pessoas negras, sem ao menos saber o porquê. Enquanto isso, nesse mesmo universo, a criança negra cresce com a subalternidade gerenciando seus olhares e suas percepções. Aos poucos vai cristalizando em sua personalidade que esta situação é natural, que deve ser sempre dessa maneira. E com o tempo passa a adotar a máxima que diz “eu sei onde é o meu lugar”.

Negros e negras são obrigados a conviver como referência do lado negativo das coisas e se tornarem indicadores negativos à sua própria origem como “caixa preta”, “passado negro”, “lista negra”, enfim, nada que possa elevar sua autoestima. Pelo contrário, ele pode se tornar um “negro de alma branca”, ou seja, uma pessoa negra obediente aos códigos da casa grande e ao sistema. Caso a pessoa negra se insurja contra essas expressões, os códigos racistas entram imediatamente em ação acusando-a de racista ao contrário.

Para organizar o conjunto de ações que podem compor o Letramento Racial é necessário que se faça algumas análises de cunho histórico, principalmente sobre a motivação da empresa colonial portuguesa em caçar africanos livres e trazê-los escravizados para o Novo Mundo. Pesquisadores apontam que o estopim que iniciou o tráfico negreiro em grande escala foi a Bula Papal Dum diversas, emitida em 18 de junho de 1452 pelo Papa Nicolau V, dirigida ao Rei Afonso V de Portugal com o seguinte conteúdo: (…) nós lhe concedemos, por estes presentes documentos, com nossa Autoridade Apostólica, plena e livre permissão de invadir, buscar, capturar e subjugar os sarracenos e pagãos e quaisquer outros incrédulos e inimigos de Cristo, onde quer que estejam, como também seus reinos, ducados, condados, principados e outras propriedades (…) e reduzir suas pessoas à perpétua escravidão, e apropriar e converter em seu uso e proveito e de seus sucessores, os reis de Portugal, em perpétuo, os supramencionados reinos, ducados, condados, principados e outras propriedades, possessões e bens semelhantes (…).  A bula autorizava os portugueses a conquistar novos territórios não cristianizados e consignar à escravatura perpétua todos os não-cristãos que fossem encontrados nas navegações lusitanas. Em 8 de janeiro de 1554, estes poderes também foram estendidos aos reis de Espanha.

Levando em consideração que nesse período a Igreja Católica possuía enorme influência sobre os governos, podemos aferir que ela tem grande responsabilidade no genocídio que foi perpetrado contra os povos africanos.

É ilusão acharmos que a simples configuração do letramento irá superar 500 anos de consolidação de um sistema institucional opressor. As raízes do racismos estão solidamente assentadas no seio da sociedade desde quando a igreja católica se uniu às coroas portuguesas e espanholas na escravização de indígenas e africanos na construção e exploração do Novo Mundo.

A luta contra o racismo é cotidiana. Nós o povo negro, somos o povo da migração forçada que constituiu a afrodiáspora. Somos o povo do banimento, quando nos empurram para as facetas mais sombrias da sociedade. Somos os Sísifos de ébano contemporâneos, que todos os dias precisam recomeçar a vida, lutando para encontrarmos nosso espaço, sermos reconhecidos, sermos aceitos, e amados, mas sempre será em vão porque o paredão da branquitude traz em si grafitado o estigma da frenologia, da bula papal Dum diversas, das construções eugenistas de Nina Rodrigues influenciadas pelo ideário do criminólogo italiano Cesare Lombroso. Somos reféns da teoria da democracia racial e da visão enviesada de Gilberto Freyre, que preconizava a interação virtuosa entre a casa grande e a senzala. Nós os negros que lutam somos invisibilizados, porque a casa grande quer o negro que dorme no porão e não e o negro que vive livre no quilombo. Querem que vivamos na Caverna de Platão sendo iludidos pelas chamas do capitalismo e da branquitude, nos querem contritos e de joelhos pedindo perdão por nossos pecados, sendo que os pecadores são eles.

O Letramento Racial não é apenas um conjunto de regras e normas operacionais. É muito mais que isso, é a chama da nossa ancestralidade clamando por justiça. São heróis e heroínas de Palmares e de todos os quilombos gritando por justiça, são os marinheiros de João Cândido mortos no cárcere, é Moa do Katendê e Marielle Franco tombados na urbe, são os malês revolucionários de Luiza Mahin.                                           

O letramento racial tem que viajar nos trens lotados, nas filas dos hospitais públicos, nos becos e vielas das comunidades. Deverá servir como instrumento emancipatório para o negro e civilizatório para o branco. Construirá com seus mecanismos um novo devir histórico, onde a paz, justiça Social e igualdade sejam as mais altas bandeiras de uma nova sociedade brasileira.

sábado, 13 de maio de 2023

O Colorismo Racial Brasileiro

O colorismo racial refere-se à discriminação e à preferência por pessoas com base em sua tonalidade de pele, geralmente dentro da mesma raça ou etnia. O colorismo pode ser percebido em diferentes contextos sociais, desde as relações interpessoais até as políticas públicas e as mídias. A preferência por pessoas mais claras de um mesmo grupo racial. Em outras palavras, a discriminação não é baseada na raça em si, mas na cor da pele dentro dessa raça. É comum que as pessoas mais claras de um grupo racial sejam valorizadas no sentido de terem mais oportunidades e serem vistas como mais atraentes e inteligentes, enquanto as pessoas mais escuras sofrem discriminação e são vistas como menos atraentes e menos inteligentes. Esse fenômeno é comum em todo o mundo e pode ser observado em diferentes culturas e grupos raciais. O colorismo racial é uma forma insidiosa de preconceito que pode contribuir para a desigualdade social e prejudicar a autoestima e o bem-estar emocional das pessoas que são alvo dessa discriminação.
O colorismo no âmbito da população negra funciona como um instrumento ideológico de assimilação, controle, cooptação e anti insurrecional. O capitalismo utiliza esse mecanismo diuturnamente contra a organização da população negra, visando seu controle e consolidando sua política de opressão.
E o sábio griot africano disse: “Os brancos chegaram em seus barcos que traziam a cruz de Cristo nas velas. Também trouxeram a Bíblia Sagrada e nos ensinaram a rezar de olhos fechados.
Nós tínhamos a terra, toda a terra, uma imensidão de terras. E então começamos a rezar com os olhos fechados. Quando finalmente abrimos os olhos, tínhamos então a Bíblia Sagrada e os brancos a terra.”
Assim começa a história do colorismo. Com os brancos convencendo os negros que o Filho de Deus é branco e sacrificou a própria vida para salvar a humanidade. Todos os santos mártires eram brancos e finalmente Deus também é branco. A ideia da divindade branca não considerou ao menos o sincretismo. O continente africano possuía sua própria cultura, sua própria religiosidade, seus deuses, seus orixás e o culto aos orixás.
Os brancos chegaram em suas embarcações trazendo um livro que diziam conter a salvação e através dele e em nome dele se apoderou de nossas terras com todas as riquezas contidas nelas e escravizou nosso povo.
Os brancos trouxeram tristezas e desgraças. Levou nosso povo embora em seus barcos, acorrentados nos porões de seus barcos, os pérfidos navios negreiros, transportadores de carga humana negra, escravizada até a morte para construir outras nações para os brancos que nos convenceram que aquele livro que contava a estória de um carpinteiro crucificado era a nossa salvação. Nós éramos 90% e eles 10% mas mesmo assim nos controlaram e nos dividiram em 10 partes de 9% e aos poucos, lentamente, os 10% passaram a controlar e comandar todos os 9%, fazendo-os inimigos uns dos outros, estimulando a sedição, as guerras tribais, o ódio e a morte.
Então o continente africano foi dividido pelos brancos entre eles próprios, que nós considerava bárbaros, povos bárbaros e selvagens. Através da Bíblia Sagrada e do Cristianismo, em nome deles, nos impuseram outras culturas, outros deuses, outras religiões e até outro jeito de amar.
Os brancos trouxeram em seus barcos o egoísmo. A propriedade privada individual, o fim do coletivo, pulverizando o umbuntu, onde tudo é de todos e todos somos um. Os brancos também transformaram nossa relação com a mãe natureza. Passou a destruí-la e levá-la embora em suas embarcações. A terra, nossa mãe terra, era violada, revolvida, escavada na busca insana por metais e pedras que constituíam riqueza e poder no mundo dos brancos, do outro lado do oceano.
Eles nos dividiram para que pudessem reinar, comandar e nos escravizar. Com a Bíblia Sagrada e outro modo de vida transformou a alegria em tristeza, o coletivo em individual, o compartilhamento em egoísmo e a liberdade em escravidão.
Os brancos nos aprisionaram em suas masmorras. Nos impuseram os mais duros castigos e violentaram nossas mulheres.Aprisionaram e venderam nossos filhos como escravos, pulverizaram nossa ancestralidade e sempre com a Bíblia Sagrada à frente, em nome do Filho de Deus branco, nos ensinou a nos dividir, a lutar entre nós mesmos, nos separar por pequenas diferenças, nos transformar em mensageiros das tormentas para então poder nos oprimir e nos escravizar em paz.
O branco considera o negro da pele preta, retinta, um fruto dileto e legítimo do amor mais puro entre duas pessoas negras. Enquanto que para o branco, o pardo é a mais direta representação do pecado, o fruto do pecado gerado pela lascívia da carne e do hedonismo sensorial que compõem o imaginário coletivo do universo afetivo entre brancos e negros.
O pardo é o fruto do pecado moral oriundo da cópula entre duas dimensões raciais e sexuais inconciliáveis. Os negros para os brancos são os filhos de Cam, os renegados por Deus e portanto não devem copular com brancos, pois assim causam a degeneração da raça adâmica. Nascer pardo é uma condição estranha de estar emparedado entre dois mundos que não o aceitam. Um pela degeneração racial e outro pela subjetividade existencial. Sim, subjetividade, pois, para o negro retinto o pardo pode ser um oportunista racial por conter componentes ibéricos em sua constituição racial.
O pardo se mantém atirado nos paredões do destino desses dois mundos, mesmo que amando os dois, nunca será reconhecido como parte dos dois. Ao nascer portando sangue negro já traz consigo o estigma da rejeição e por trazer sangue branco desperta entre os prováveis seus o alerta da competição desigual entre os desiguais.
O estigma da rejeição é o sinal que a civilização emite para o pardo invasor de etnias. Se a mulher é branca e o homem é negro o pardo é fruto de uma relação sodomizada e se o homem é branco e a mulher é negra o pardo é o resultado de uma relação de cama e mesa. Então se torna uma existência pária, de merda, onde não há o peito amigo de irmão de raça que ofereça acolhimento. O pardo na verdade é considerado um trânsfuga interétnico, uma falha atávica ou um processo natural de albinismo enviesado.
O capitalismo no intuito de controlar a maioria através de sua minoria, propõe uma parceria subjetiva através da construção de um espaço de tolerância subrreptício entre seus mecanismos de controle e opressão e os negros mais miscigenados. Esse contingente de pardos, que são mais de 40% de nossa composição demográfica, ou seja, 90 milhões de seres humanos, constituem o ponto de inflexão necessário para o estabelecimento da aliança interracial que estabelece a política da pigmentocracia, onde quanto menos retinta a pele mais benefícios podem ser alcançados por esse contingente étnico construído.
Ao consolidar a aliança com os pardos, o capitalismo opera intensamente através do materialismo dialético, gerando campos de progressão social antes sempre vedados aos negros retintos, enquanto que ao mesmo tempo despeja água fria no caldeirão racial que ameaçava entrar em ebulição.
 Não existe um meio branco mas existe o meio negro. Aquela estória do copo meio cheio ou meio vazio. No nosso caso o corpo meio cheio ou meio vazio de melanina define a alteridade social que a pessoa irá viver.
A pigmentocracia é mais conhecida como colorismo racial, ou simplesmente colorismo. Foi um termo cunhado em 1982 pela escritora norte-americana Alice Walker, em seu livro “In Search of Our Mothers’ Gardens”. O termo se refere à discriminação ou preferência no benefício ou preterimento de indivíduos referenciada na cor da pele. O colorismo é um tipo de racismo refinado onde negros de pele mais clara, fruto da miscigenação com a etnia branca, ou pardos, como são chamados, se tornam beneficiários dos restolhos sociais e econômicos que os brancos atiram no chão a partir do banquete antropológico da branquitude.
O processo é perverso, pois cria um cenário de transformação fenotipica com a utilização de processos químicos para alisamento de cabelos, cirurgias para afilamento de varizes e lábios e talvez o mais cruel que é o abandono da ancestralidade africana em detrimento de uma descendência europeia amaldiçoada e rejeitada pelos caucasianos. Os pardos beneficiados pelo colorismo se contentam com as migalhas que lhes são atiradas pela burguesia branca. O contentamento precisa ser visível, para que assim possam comprovar, que através de um machado epistemológico, cortaram para sempre as raízes de suas ancestralidades africanas.
Obviamente que a raça negra é o centro da autofagia colorista, pois é o grande centro emulador da rebelião. O processo ideológico do colorismo visa além dos cabelos alisados e lentes de contato verdes, a adoção de comportamentos culturaus alienígenas, onde a rejeição aos seus iguais passa a constituir um mosaico difuso, caótico e desagregador. Dessa maneira o capitalismo reproduz a mesma ideologia do colonialismo com os requintes das características diaspóricas.
No continente africano as mulheres utilizam cremes clareadores de pele, destarte a carga cancerígena que carregam. Na diáspora as mulheres negras beneficiadas pelo colorismo já possuem a pele mais clara, mas repetindo, se submetem a procedimentos cirúrgicos estéticos para se aproximarem ainda mais dos ideais da branquitude.
Talvez a face mais eficiente do racismo seja aquela que faz o negro não se amar. Além de eficiente é perversa pois causa tristeza e dor. É um remédio amargo que adoece em vez de curar nossas feridas ancestrais.
Ao não se amar por estar se referenciando em matrizes caucasuanas o negro destrói através dos tempos seu próprio ethos constitutivo, desamando a si e à sua comunidade negra.
É um processo violento pois passa por duas grandes calamidades antropológicas. A primeira é o corte epistemológico que ocorreu na sua ancestralidade genealógica, quando suas origens foram perdidas pela escravidão. O negro não sabe onde está a aldeia dos seus antepassados, não pode cantar as canções de glória e vitórias de seus antepassados. É um filho do nada, de uma África gigante com 54 países e centenas ou milhares de etnias, línguas e culturas. O negro jamais saberá de onde vieram seus ancestrais, é um ser sem passado ancestral definido. Por isso todos se referem ao continente africano de uma maneira geral, pois não conhecem a aldeia de onde seus ancestrais são originários. Está é a primeira violência, a retirada da origem, o apagamento do passado. Os italianos, alemães e japoneses, por exemplo, comemoram suas datas especiais, com canções e culinárias de suas aldeias. Comemoram seus ancestrais pioneiros e dançam alegres em homenagem ao passado. Ao negro não foi permitido esse tipo de comemoração. Restou-lhe uma África multifaceada para cultuar, é isso ou nada.
A segunda violência que o negro sofre é seu enquadramento em um modelo social onde ele sempre será a possibilidade de um crime, de uma ilicitude ou então de subcidadania. O negro ao nascer traz no verso da certidão de nascimento o carimbo de incapaz selado pela branquitude. Passará o resto da vida sendo vigiado pelos olhares sempre atentos dos brancos. Pode ser um menino negro no sinal, um pedinte nas ruas, um negro em situação de miserabilidade, sempre serão olhados com desconfiança. Mesmo os negros integrados social e economicamente ao modelo social vigente, sofrem discriminação nas portas de entradas dos bancos, nos embarques de aeroportos e nas blitzes policiais nas ruas das cidades.
O sistema capitalista e o racismo estrutural são cruéis com o povo negro. Por isso a grande maioria não quer ser parte desse drama existencial. Preferem aderir à branquitude mesmo que de maneira canhestra e às vezes até caricata quando alisam e pintam os cabelos de loiros e usam lentes de contato verdes ou azuis.
A utilização de terno e gravata é uma forma de capitulação ao modelo amalgamado pela branquitude. A negação às raízes culturais africanas em prol de um modo de cultura europeu, demonstra que a branquitude é mais forte que a ancestralidade. Óbvio que existem bolsões de resistência geralmente ligados ao movimento social negro organizado. Porém não refletem a grande maioria da população negra nacional.
Essas violações que o negro sofre desde o útero de sua mãe, fará com que se torne um ser inquieto e só mesmo tempo soturno, pois sabe muito bem que a sociedade não lhe ama, pelo contrário, a sociedade vigia seus movimentos.
O colorismo trabalha com essa inconsistência emocional do negro e procura se aproveitar da situação, tanto na continuação da opressão sobre os negros retintos como na cooptação dos pardos em um movimento ideológico de constituição de maioria demográfica voltado para a consolidação do poder político e também como construção de uma força contrarrevolucionária de opressão à minoria retinta.
O movimento ideológico do colorismo visa a fragmentação do povo negro. A branquitude repete o mesmo modelo colonial empregado em África e nas colônias onde eram minoria e para controlar a maioria precisavam dividir para reinar.
O colorismo é um grande malefício engendrado no seio da comunidade negra. Assim como foi feito na comunidade negra dos Estados Unidos quando o movimento dos Panteras Negras teve seu apogeu. A branquitude injetou drogas na comunidade negra visando seu enfraquecimento e por conseguinte conseguir atingir o controle absoluto que os Panteras Negras tinham da vida comunitária do povo negro.
Os negros precisam se organizar como não brancos, independente da cor da pele. Se não é branco, branco não é, então é negro. Negro faz luta de negro, pois o branco não precisa fazer luta racial na medida em que se tornou o padrão, o paradigma civilizatório de ser humano. Querendo ou não ainda sofremos os efeitos da bula papal “Dum diversas” de 1452, que nos considerou seres sem alma, brutos, bárbaros, gentios, pagãos e inimigos de Cristo.
Precisamos lutar juntos como fazemos todos os dias. O branco acorda e vai viver sua vida, enquanto que o negro acorda e precisa lutar contra o racismo todos os dias. Se não é uma condenação é uma expiação, pois a luta é eterna, até o fim da vida.
Vamos varrer de nossas vidas de negros e negras esse embuste denominado colorismo. Junto com outros grupos humanos como indígenas e asiáticos, coexistem brancos e negros. Branco é branco e negro é negro, o resto é pura imaginação capitalista.

segunda-feira, 1 de maio de 2023

O Quartinho de Empregada e o Sonho de Laudelina

A mulher negra passou a vida no quartinho de empregada. Chegou ainda jovem na família abastada para prestar serviços de doméstica. Durante quarenta anos viveu no confinamento do quartinho de empregada. Pelo menos três gerações daquela família receberam seus cuidados. Ela sabia dos seus desejos, das manias, das malcriações, dos amores, dos casamentos e dos filhos e filhas que surgiram em profusão com o passar do tempo. Nunca se casou, não tinha tempo para namorar e nem se animava para se enfeitar, quanto mais ter um homem para engravidar e deixa-la sozinha com uma criança de colo. Sua vida sempre foi servir com eficiência ao núcleo familiar que a contratara e exigia sua atenção diuturnamente.
A rotina era intensa, fritava com cuidado os pasteizinhos de camarão do patrão, cuidava com atenção dos vestidos de madame e divertia as crianças participando de suas estripulias. Quando não estava dedicada no fogão era vista cuidando da limpeza dos banheiros e dos cômodos da casa. Se não estava passando a roupa na área de serviço corria com as crianças para embarcá-las na condução do colégio, para logo depois fazer compras no supermercado, assim era sua vida.
Nasceu em uma família paupérrima, numa distante e violenta periferia abandonada pelo poder público. Cresceu sentindo as carências e necessidades básicas de uma família negra pobre dos subúrbios. A cada dois meses costumava deixar a rica zona sul da cidade, onde trabalhava, para visitar sua família. Quando anunciava que ia passar o fim de semana com os seus era um deus nos acuda. Madame fechava a cara e falava poucas palavras, o patrão se desesperava pois ficaria sem seus pasteizinhos e as crianças sabiam que pelos menos durante esse fim de semana não ouviriam canções de ninar ou estórias fantásticas de um distante passado entranhado pelas maravilhas da cosmovisão africana. As crianças adoravam as estórias da mula sem cabeça, do padre voador, da loura atrás do poste e do cachorro de olhos de fogo que surgia no meio da noite. Pelo contrário, a petizada ouviria os gritos de desespero de madame por ter queimado as torradas e lamentos do patrão por não poder sair com sua camisa preferida que não estava passada e madame jamais ousaria ligar um ferro de passar roupa.
Nas férias escolares de fim de ano da criançada, a família viajava para as região serrana fora da cidade. Nesse período dedicado ao lazer ela não iria ter com seus familiares, pois viajava junto com madame e a família para as montanhas. Na casa de veraneio também tinha seu quartinho de empregada, para onde se recolhia depois de tirar a mesa do jantar, ter lavado a louça e contado estórias de ninar para a petizada. As jornadas eram duras e extenuantes, para ela não significavam férias e sim mais trabalho, jornadas dobradas com a mesma remuneração. Seu parco salário mínimo era economizado para ajudar sua família paupérrima nas agruras da vida de sofrimentos e carências cotidianas. Essa mulher negra passou sua vida servindo a uma família branca, vivendo na solidão do seu quartinho, sem reclamar, sempre solícita, amorosa e obediente. Esse é o destino de toda mulher negra que decide trabalhar como empregada doméstica e viver num quartinho de empregada de uma família burguesa.
O quarto de empregada enquanto dependência voltada às trabalhadoras da família é uma prática comum na sociedade burguesa brasileira. Na verdade é uma prática quase que exclusiva da elite brasileira. Praticamente não existe esse tipo de construção nas sociedades evoluídas do mundo moderno. Não há nada parecido com apartamentos dotados de quarto de empregada e prédios com elevador de serviço. Esse cômodo segregador faz parte de um microcosmo simbólico que oprime e demonstra à usuária sua limitação social. É uma fronteira demarcada entre a riqueza e a pobreza, um espaço diminuto que é construído como uma proto-representação da antiga senzala do tempo da escravidão.
O quarto de empregada é minúsculo, escuro, abafado, não tem janelas e possui uma pequena latrina em seu interior. Não é construído dentro dos princípios da arquitetura atual, que é tornar a vida do ser humano mais agradável e confortável. Pelo contrário, é construído para humilhar, para ser habitado pelas mulheres geralmente negras, que são obrigadas a dividir o exíguo espaço com diversas bugigangas guardadas pelos patrões. O quartinho é oferecido como um prêmio para mulheres pobres e periféricas que necessitam desesperadamente de trabalho. A burguesia brasileira é uma das mais cafonas e atrasadas do mundo. Ainda uniformiza seus empregados e obrigam seus motoristas a abrirem as portas dos carros para que usuários possam entrar e sair dos veículos. A relação das empregadas domésticas com seus patrões e patroas são humilhantes e chegam a beirar o ridículo, quando são proibidas de utilizar as dependências “sociais” da casa. Fora do horário de trabalho são relegadas ao confinamento dos seus cubículos, a viver no silêncio e purgar a solidão entre quatro paredes, carpindo a vida sofrida da senzala contemporânea.
O quarto de empregada é parte de uma barganha esperta e cruel que a burguesia oferece à frágil e precarizada mulher negra. Disponibilizam o quarto para a trabalhadora em troca do fim do incômodo do vai e vem diário rumo a seu lar e sua família nas periferias distantes. O sufocante quartinho é a garantia que os patrões oferecem para que suas empregadas não gastem até seis horas diárias dentro de transportes coletivos insalubres e abarrotados. Ao optarem em conviver cotidianamente com suas famílias, essas trabalhadoras se obrigam a chegar em casa por volta das 22h, exaustas, para acordarem às 5h da madrugada e chegar ao trabalho em tempo de servir o café da manhã da família e colocar as crianças na condução da escola. É uma rotina penosa que estressa e adoece essas mulheres negras.
Muitas dessas trabalhadoras fazem a opção de "morar" no quartinho de empregada para ter mais paz e descanso, mais "qualidade de vida" e consequentemente mais saúde. Preferem a singularidade do confinamento forçado, da solidão programada ao sacrifício da logística cotidiana dos transportes públicos. No quartinho podem ver o mundo através de uma TV jurássica e ouvir notícias através de um rádio despertador. Quando o sono chega têm à disposição uma velha caminha de solteiro, herdada dos patrões há muitos anos. A chantagem patronal faz parte do jogo que elas são obrigadas a jogar. Para não ter que se despencarem pelas ruas escuras e perigosas das noites e madrugadas das periferias, existe a opção cruel do quartinho. Várias assim preferem pois mesmo que inadequado, viver no quartinho compensa evitar passar pela cansativa maratona diária, que além de drenar sua saúde também afeta sua segurança e seu orçamento.
Os patrões por outro lado aproveitam a precarização da situação dessas mulheres e malandramente transformam a jornada diária das trabalhadoras domésticas em um processo de exploração continua. Além da pesada jornada diária que um grande apartamento exige das domésticas, a mulher refém dos patrões fica responsável pela guarda das crianças, para que os pais possam cumprir suas concorridas agendas sociais. Acrescentando que as domésticas cuidam das crianças quando o casal decide viajar ao exterior sozinhos. A pessoa de confiança que sempre estará à disposição para o cuidar das crianças será a empregada doméstica, eternamente cativa em seu quartinho de dormir. É pessoa de confiança sempre disponível com quem os pais podem deixa-las em confiança. 
O quarto de empregada é uma troca injusta, uma forma de corrupção social, onde os patrões oferecem o quartinho como moeda de troca, garantindo o uso do chuveiro elétrico, o restolho da comida da família e um afago ou outro de vez em quando, como se faz com os cães da casa. Os apartamentos geralmente são muito bem localizados, em áreas nobres e seguras. Falando em cães, a trabalhadora também costuma sair à noite e dar um passeio com o cachorro de madame pelo bairro chique, para que ele possa espairecer e fazer suas necessidades fisiológicas. Muitas trabalhadoras domésticas aceitam e gostam de viver assim, por conta de uma história de vida precarizada a que historicamente foram submetidas. Outras não, passam por todas essas humilhações por ter filhos para criar que dependem da sua proteção. Filhos que são criados por vizinhas, irmãs, tias e avós para que suas mães negras possam servir e atender as necessidades cotidianas de famílias brancas da elite.
A sociedade brasileira é tolerante com o racismo. Para ela a situação da população negra está posta, é uma realidade e nada pode ser feito para modificá-la. Que os negros encontrem trabalho no subemprego, que estudem em escolas públicas precarizadas, que utilizem o sistema de saúde criminoso que o estado brasileiro oferece aos mais vulneráveis. A burguesia é a reprodutora de todos esses males ao trazer para si o imenso cabedal de privilégios que o capitalismo pode oferecer. Para ela, a burguesia, poder comer caviar e manter a trabalhadora negra confinada no quartinho faz parte do jogo antropológico da vida. E mais, a elite se sente benemérita por estar gerando um emprego para aquela figura quase ectoplasmática, que sofre a invisível solidão de sua senzala moderna que é o quartinho de empregada.
Mas a mulher negra não está mais entre nós. Após consumir sua vida se dedicando ao bem estar de uma família que nunca foi sua, morreu solitária, silenciosamente, na cama de uma enfermaria coletiva de um hospital público. Morreu onde morrem os pobres, os desvalidos, os deserdados da Terra como disse Fanon. Morta em uma enfermaria coletiva de um hospital público, longe da família, entre estranhos, na solidão dos miseráveis.
Depois de servir a três gerações daquela família como empregada. Depois de cuidar tão bem de tantas pessoas, crianças, jovens e adultos, jaz imóvel no caixão de terceira categoria. Imóvel e honesta por ter cumprido tão bem sua missão de se dedicar a cuidar daquela família com todo o amor desse mundo. É o fim silencioso de mais uma mulher negra trabalhadora em um país racista e segregador. Das dezenas de pessoas brancas de quem cuidou, apenas duas estão ao seu lado para a despedida final. Um final triste e melancólico onde seu destino foi a cova rasa do cemitério da distante periferia. Agora deve estar no céu das empregadas, longe dos sufocantes quartinhos, feliz e recompensada em belíssimos ambientes, onde nenhuma delas trabalha e gozam de todos os privilégios e mordomias que nunca puderam ter aqui na Terra.
O Brasil possui 6 milhões de trabalhadores e trabalhadoras domésticas. A luta pelo reconhecimento da atividade profissional das trabalhadoras domésticas é marcada pela intolerância e invisibilidade do racismo estrutural. Mesmo 80 anos depois da criação do movimento sindical que luta pela categoria, somente 3 em cada 10 domésticas possuem carteira profissional assinada por seus patrões. Se por um lado romantizaram a trajetória sofrida de Carolina de Jesus, para esconder o racismo e os efeitos deletérios do capitalismo sobre as mulheres negras, por outro lado invisibilizam uma mulher negra admirável, que deveria sua trajetória política debatida na academia e na sociedade com mais ênfase. Seu nome é Laudelina de Campos Melo, chamada pela ditadura militar de “O terror das patroas”. Laudelina dedicou toda sua vida à política, sendo militante da Frente Negra Brasileira e do Partido Comunista Brasileiro. Foi através de sua visão de mundo que criou em 1936 na cidade de Santos, em São Paulo, o movimento sindical que passou a exigir melhores condições de trabalho para todas as pessoas que exercessem atividades domésticas remuneradas.
Mineira como Carolina de Jesus, Laudelina nasceu 6 anos após a promulgação da Lei Áurea, em Poços de Caldas, Minas Gerais. Como quase todas as meninas negras daquele período, começou a trabalhar aos sete anos de idade e foi obrigada a abandonar os estudos para ajudar a mãe na criação dos de seus irmãos. Aos 16 anos passou a participar de reuniões do movimento negro. O sociólogo Joaze Bernardino-Costa, em sua tese de doutoramento, narra que no período mais próximo do fim da escravidão, o serviço doméstico era mencionado nas leis sanitárias para proteger os patrões de suas empregadas, que eram vistas como ameaças às famílias empregadoras. De acordo com Laudelina em entrevista à educadora Elisabete Pinto, publicada em sua dissertação de mestrado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp):
:
"A situação da empregada doméstica era muito ruim. A maioria daquelas antigas trabalharam 23 anos e morria na rua pedindo esmola. Lá em Santos, a gente andou cuidando, tratou delas até a morte. Era um resíduo da escravidão, porque era tudo descendente de escravo".

As entidades em que Laudelina militava à época, o PCB e a Frente Negra Brasileira, foram fechadas e colocadas na clandestinidade pela ditadura de Getúlio Vargas com a instalação do Estado Novo entre os anos de 1937 e 1946. A discriminação se tornou mais evidente quando a Consolidação das Leis do Trabalho que unificou as leis trabalhistas que existiam naquele período, não incluiu a categoria das domésticas em seu escopo de proteção. Laudelina se alistou na Força Expedicionária Brasileira e se juntou ao esforço de guerra para combater as tropas do Eixo, comandadas por Adolph Hitler. De acordo com Laudelina: 
"Hitler foi o maior carrasco que existia naquela época. Dizia no Livro Azul que ele eliminaria todas as raças que não fossem arianas, principalmente a raça negra seria eliminada. Então aquilo me levou, me trouxe uma revolta dentro de mim. Então resolvi me alistar para servir a pátria"

Laudelina trabalhou como empregada doméstica até meados dos anos 50 e vivia de uma pensão e da venda de salgadinhos no bairro em que morava.
Com o fim do Estado Novo sua associação voltou a funcionar mas continuou a ser perseguida pela ditadura militar com o golpe de 64, quando sua entidade, para não encerrar as atividades, se abrigou na União Democrática Nacional – UDN, que tinha como líder máximo o governador Carlos Lacerda.
Chegando aos 70 anos Laudelina afastou-se da entidade por motivos de saúde e após pedidos insistentes de suas companheiras voltou ao batente e após a promulgação da Constituição Cidadã de 1988 a associação finalmente se tornou um sindicato. Laudelina morreu em 1991 aos 86 anos de idade e não pode assistir a vitória da categoria que fundou ver aprovada a Emenda Constitucional nº 72 de 02/04/2013, a PEC das Domésticas. A PEC das Domésticas estabeleceu igualdade dos direitos como: Jornada de trabalho de oito horas diárias e 44 semanais; Pagamento de horas extras; Adicional noturno; Descanso de no mínimo de 1 hora e máximo de 2 horas; Obrigatoriedade do recolhimento do FGTS por parte do empregador; Seguro-desemprego; Salário-família; Auxílio-creche e pré-escola; Seguro contra acidentes de trabalho; Indenização em caso de demissão sem justa causa. Vale à pena registrar que somente dois congressistas votaram contra a PEC das Domésticas e um desses dois foi o Deputado Federal à época Jair Bolsonaro.
A atuação política dessa mulher negra e pobre foi fundamental para que essa enorme categoria conquistasse seus direitos a nível nacional. Laudelina também deixou seu nome registrado na luta contra o racismo e contra a discriminação das mulheres, já que sempre carregou consigo o estigma da cor e da origem. Uma mulher admirável que se rebelou contra o sistema e mesmo com sua luta invisibilizada pela sociedade e pelo racismo estrutural nunca abriu mão de seus princípios revolucionários.

*Amauri Queiroz é Escritor.