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Eu Negro

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Nessa estória de sal quem paga o pato geralmente é o sapo. Mas em Alagoas o sapo pulou fora e deixou o povo como pato.

Dizem que a história se repete ou melhor ainda, é repetida pela ação humana. A situação inacreditável que está acontecendo em Maceió está sendo repercutida em toda a mídia nacional, sem porém, questionar a raiz do problema, assim como aconteceu nas barragens de rejeitos que romperam em Minas Gerais.

Essas empresas investem no Brasil sabendo que aqui o marco jurídico é constantemente alargado, por conta da cada vez mais liberal composição do Congresso Nacional.

A imprensa neoliberal, por outro lado, insiste em repercutir as consequências sociais e ambientais ocasionadas pelas operações extrativistas das empresas, mas passam longe de apontar o verdadeiro causador desses desastres que é o capitalismo selvagem que no Brasil tem carta branca para operar sem ser incomodado.

Ao menor sinal de regulação e controle os segmentos empresariais desfraldar imediatamente velhas cantilenas como a inevitabilidade do progresso, a ameaça de desemprego em massa e a contribuição efetiva desses setores para o crescimento da balança comercial e consequentemente para o PIB.

O sistema neoliberal também atua de maneira política ao tentar retirar credibilidade dos movimentos sociais, desfraldando bandeiras anticomunistas e impondo força na agenda patriótica e de costumes.

Assim nossa soberania enquanto nação permanece vilipendiada, assistindo a absurda situação de um ou mais bairros serem evacuados devido ao risco de serem engolidos por um cratera gigante que está se formando.

Indenizações serão pagas, mas nem arranham os cofres dessas empresas, pois  os riscos já estavam incluídos nos planejamentos estratégicos dessas empresas. Essas indenizações diante dos lucros extraordinários obtidos pela extração ostensiva durante anos são praticamente ínfimas.

Fica para o povo a tristeza de ter que abandonar suas residências que carregam suas ancestralidades. Os mortos que nunca ficam para trás pois são chorados diariamente por famílias para sempre enlutadas.

A tragédia de Maceió é fundamentalmente agravada pois o salgema retirado do subsolo é utilizado para produção de amianto, soda-cáustica, PVC e outras manufaturas prejudiciais ao meio-ambiente.

Todas essas empresas operam em todo o território brasileiro com as licenças ambientais em dia, demonstrando claramente que a legislação do setor é produzida de maneira nítida por parlamentares que não servem e legislam em causa própria, voltados contra os interesses nacionais e aviltando nossa soberania 

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

VALEU ZUMBI!

A palavra correta é reparação. Finalmente a Câmara dos Deputados corrigiu uma enorme injustiça histórica ao decretar feriado nacional a data de 20 de Novembro, conhecido como “Dia da Consciência Negra”. A efeméride é uma homenagem ao que se convencionou comemorar como dia da morte de Zumbi dos Palmares, na Serra da Barriga em Alagoas.
O Quilombo dos Palmares foi um enclave negro, fundado em 1595 por escravizados africanos e brasileiros que fugiram de seus respectivos cativeiros. Organizado politicamente como uma pequena federação, o quilombo era composto por 16 “mocambos”, sendo “Macaco” o principal deles e considerado a “capital” de Palmares. Nele reinava Ganga Zumba, soberano de destaque que criou a forma de organização política e social, além da resistência militar do enclave, que em seus 100 anos de existência enfrentou cinco dezenas de batalhas contra os impérios português e holandês, além das milícias armadas particulares da época que eram os bandeirantes.
A importância e a possibilidade de viver em liberdade em Palmares era tão significativa e atraente, que o quilombo reunia cerca de 10% da população brasileira no século XVII. Sua expansão foi tamanha que o rei de Portugal ofereceu um armistício aos seus líderes, propondo uma área, ou reserva exclusiva na capital de Pernambuco, onde todos poderiam viver em liberdade sem a ameaça do retorno ao modelo escravista. 
Ganga Zumba já idoso e cansado pelas muitas e contínuas batalhas enfrentadas, aceitou a proposta de Portugal e depôs as armas juntamente com parte de seu exército e muitos habitantes, rumando com cerca de 2 mil palmarinos para a planície pernambucana, rumo a uma nova vida.
Zumbi que era seu principal general, havia sido capturado ainda criança em Palmares e entregue para um padre em Recife, que o utilizava como escravo e ao mesmo tempo coroinha nas atividades cotidianas da igreja. Ao atingir a maioridade o jovem Zumbi fugiu e retornou para respirar os ares livres de Palmares e compartilhar da cosmovisão africana da qual jamais havia esquecido.
Como excelente conhecedor do mundo dos brancos, Zumbi desconfiado, não atendeu o chamado de Ganga Zumba para depor as armas e retornar para uma planície onde estaria à mercê das ambivalências da cosmovisão eurocêntrica e escravista dos brancos.
Ganga Zumba assim que se estabeleceu com sua gente no local prometido pelo império português, foi assassinado e toda sua gente foi presa e entregue a novos senhores, sendo que muitos foram assassinatos junto com seu líder enquanto que o restante foi entregue a diversos senhores que os escravizaram novamente até a morte.
Zumbi havia assumido a governança de Palmares e dirigia o enclave dividindo o poder com líderes dos mocambos e com os habitantes que não concordaram com o armistício e decidiram continuar vivendo em Palmares.
A partida de Ganga Zumba com milhares de palmarinos e entre eles grandes e destacados guerreiros, diminuiu bastante a capacidade militar do enclave negro. Mesmo assim a resistência palmarina lutou dezenas de batalhas antes de sucumbir ao ataque derradeiro liderado pelo bandeirante Domingos Jorge Velho em 1695, que atacou Palmares com um exército de 15 mil homens e dezenas de canhões emprestados pelo império português.
Zumbi ao assistir a queda iminente e irreversível de Palmares atira-se em um precipício dando fim à própria vida, encerrando assim um dos mais valorosos exemplos de defesa da liberdade que se tem notícia no mundo.
Palmares caiu sob uma montanha de milhares de corpos negros, como uma Tróia Negra, que escreveu com o sangue de seus guerreiros o mais bravo libelo de amor à liberdade que a historiografia branca e racista brasileira teimou em esconder e desqualificar através do tempo e da história.
O reconhecimento pelo estado brasileiro da importância da resistência legítima palmarina e da luta centenária pela liberdade, decretando feriado nacional, demonstra que a nação brasileira ficou maior, menos hipócrita e mais verdadeira.
A decretação do feriado nacional no dia em que se celebra a memória de Zumbi, um cidadão brasileiro, nascido livre em Palmares, aprisionado e escravizado pelo sistema opressor, é motivo de grande comemoração para os que sentiam um certo sentimento de injustiça ao ver Tiradentes ser comemorado nacionalmente como o geande herói da liberdade do Brasil. O herói que nunca lutou nenhuma batalha emancipatória, que jamais deu um tiro sequer que justificasse tamanha honraria e que tinha como pares senhores escravistas.
Os milhares de guerreiros mortos em Palmares, assim como os que foram massacrados na planície junto com Ganga Zumba, estão em festa no Orum. Comemoram pela reparação, pois de agora em diante serão lembrados para sempre pelas gerações brasileiras como guerreiros e guerreiras da liberdade. Estão felizes e orgulhosos, sabedores que tantas lutas e sacrifíficios por liberdade não foram em vão.
Valeu Ganga Zumba! Valeu Acotirene! Valeu Aqualtune! Valeu Dandara! Valeu Zumbi!

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

O Amargo do Cisne

"...Como é que eu posso por ela trocar/A emoção de ver Vilma dançar/Com o seu estandarte na mão"
(O Conde - Jair Rodrigues)
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A gente tenta não sentir a força do ódio, nem que seja por uns instantes, mas às vezes fica difícil. Estou na histórica cidade de Paraty, no litoral sul do Rio de Janeiro, participando da Feira Literária Internacional de Paraty, contribuindo em uma série de palestras sobre a questão racial brasileira.
Acordo bem cedo, ainda insone, custando a acreditar no que leio sobre o ocorrido com Dona Vilma da Portela no aeroporto de Brasília.
Vilma Nascimento, a maior porra-bandeira da Portela de todos os tempos, imortalizada como “O Cisne das Passarelas”, que junto com Neide e Mocinha da Mangueira, Irene do Império Serrano, Maria Helena da Imperatriz Leopoldinense, Juju Maravilha e Selminha Sorriso da Beija Flor, Rita Freitas do Salgueiro e Tuca da Vila Isabel e Lucinha Nobre entre outras beldades do bailado.
Vilma foi a escolhida pelo universo para ser a melhor. Durante anos encantou a passarela nos desfiles da Portela, seguindo fielmente a tradição de Dodô, a primeira porta bandeira da Portela.
Dona Vilma estava no aeroporto de Brasília, voltando para o Rio de Janeiro. Estava orgulhosa e feliz, pois havia sido homenageada pela Câmara dos Deputados na Semana da Consciência Negra.
No aeroporto de Brasília, na loja de conveniência Dutty Free pode entender que a homenagem havia sido apenas uma encenação do Brasil ideal, mas que na verdade, o Brasil real é outro bem sujo e opressor.
Humilhada publicamente por uma funcionária da loja, teve sua bolsa devassada, revirada, como se fosse uma meliante, uma ladra, acusada de furto.
Após o pérfido constrangimento, ainda pudemos assistir Vilma catando umas coisinhas da bolsa que caíram no chão, mostrando a falência moral dessa sociedade racista e hipócrita que é a sociedade brasileira.
O escândalo explodiu a Internet. A loja emitiu o tradicional pedido de desculpas, informando que tomará providências para que eventos do gênero não voltem a acontecer, enquanto que a funcionária racista e etarista, permacece “afastada”.
Dona Vilma viu toda sua glória desvanecer, atingida por um gesto cruel cometido por uma funcionária de uma loja de conveniência, que sequer deve saber sambar, mas sabe operar com eficiência os mecanismos estruturais do racismo. Famosa e reverenciada no mundo da cultura brasileira, Vilma para aquela funcionária desconhecida era apenas um mulher velha e preta que estava tentando surrupiar furtivamente umas coisinhas na loja.
Retornando ao Rio de Janeiro, onde é respeitada como uma deusa, Vilma sentiu a “ficha cair”. A glicose disparou e o estado de saúde preocupa a família e ao mundo do samba. Vilma sempre driblou os jurados e certamente vai se sair bem dessa, assim esperamos.
Fica então a pergunta: Quantas vilmas desconhecidas passam pelo mesmo constrangimento nas lojas do país? Quantas funcionárias e funcionários submetem negros e negras em todo o Brasil à mesma situação humilhante pela qual Vilma foi submetida?
A coisa tá feia, no Brasil e no mundo, tá piorando cada vez mais. As escolas precisam de maneira expedita começar a trabalhar com nossas crianças os fundamentos básicos do letramento racial para a partir de então podermos constituir uma nova sociedade, livre do racismo estrutural, da homofobia, da LGBTfobia, do etarismo, do capacitismo, e tantos outros “ismos” que adoecem nossa vocação de nação soberana e democrática.
Também podem ensinar samba nas escolas, pois diz a sabedoria popular que quem não gosta de samba bom sujeito não é, ou é ruim da cabeça ou é doente do pé.

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

A Branquitude, o Colorismo e o Flautista de Hamelin

 


A branquitude historicamente sequestra os protagonismos e as histórias pertencimento da humanidade. Os gregos assim fizeram com as grandes produções intelectuais africanas. Os estadunidenses, por exemplo, sequestraram, se apropriaram e consolidaram para si o termo “América”, se apropriando indevidamente das designações “americano e americana”, como representantes universais do continente. O contexto de apropriação histórica é tão poderoso que os americanos do hemisfério sul não se dizem americanos e utilizam o gentílico de suas nacionalidades. Nós americanos do sul nos designamos brasileiros, assim como argentinos, chilenos, uruguaios e peruanos. Os estadunidenses não utilizam essa correta designação e se dizem americanos, colocando um ponto final no assunto, onde se recusam a discutir qualquer polêmica acerca desse assunto, definindo que está posto e será sempre assim.

Na questão racial, a branquitude luta para sequestrar nossas raízes, nossa ancestralidade e nossa capacidade de organização étnica e social, apresentando sistematicamente novos cenários conflitantes que visam a divisão e a desagregação social do povo preto. Designações como parditude e colorismo talvez tenham vindo mais para confundir que para explicar.

Os termos criados nesses contextos de desarmonização e assimetrias raciais, servem tão somente para nos manter ocupados com nossos próprios medos, proto conflitos gestados em nosso efervescente quintal racial, enquanto a branquitude segue imponente gerindo nossos destinos e por conseguinte os destinos da humanidade.

A branquitude criou um modelo de sistema racial diversionista, que podemos concebê-lo como uma imagem metafórica do teclado de um piano. Esse sistema é o colorismo, onde como nos teclados, os tons estão compreendidos entre os grave em um extremo e os agudos em outro. A branquitude se posiciona à direita dos tons agudos, enquanto que os pretos retintos estão agrupados nos tons mais graves, à esquerda e extrema esquerda.

A branquitude exerce interruptamente a sedução a cooptação e o recrutamento do máximo possível de teclas do teclado racial, para que possa compor com a tessitura média dos pardos suas próprias sinfonias e apresentá-las exclusivamente como suas. Dessa maneira, com a pulverização e desedentificação da totalidade do conjunto racial negro, pode isolar e impedir o avanço do povo preto retinto, que historicamente sempre foi o contingente étnico revolucionário desse país, junto com a valorosa resistência indígena.

Personagens como Dandara, Ganga Zumba, Acotirene, Aqualtune, Maria Felipa, Luiza Mahin, Maria Firmina, João Cândido e Teresa de Benguela entraram para a historiografia oficial como pretos e pretas que construíram e participaram de movimentos revolucionários que são exemplos universais incontestes de combate à branquitude.

A branquitude é filha dileta do capitalismo. Um conjunto poderoso de ações organizadas mas que não passa de uma das inúmeras metástases geradas pelo tumor principal que é o capitalismo. Através dele são geradas incongruências como o patriarcado, racismo, homofobia, etarismo, gordofobia e capacitismo, entre tantas outras. São as metástases de um tumor irrigado pelas elites internacionais, pelas burguesias imperiais e imanentes que sustentam o regime de horror denominado capitalismo.

É através da branquitude que o capitalismo organizou e construiu o maior sistema imperial de dominação universal. Foi através dela que foram realizadas grandes navegações pelo globo terrestre, que promoveram invasões, conquistas, grandes genocídios e a escravização mercantil de dezenas de milhões de africanos e indígenas, utilizados como mão de obra escrava na construção do Novo Mundo.

A consolidação desse sistema perverso de opressão tem como matriz principal a égide da dominação pela divisão. A partilha do Continente Africano pelas potências coloniais europeias propiciou e aprofundou as diferenças étnicas e tribais entre os povos africanos através da implantação forçada de diferentes cosmovisões eurocêntricas que desfiguraram o modo de viver africano. A divisão pela cooptação foi uma estratégia basilar para a construção de uma barreira praticamente intransponível formada por brancos e reforçadas pelos designados “pardos”. O recrutamento desse contingente étnico miscigenado sempre foi considerado como uma “promoção melanínica” que ocasionalmente pode gerar pequenos privilégios periféricos nos espaços políticos, culturais e econômicos na base produtiva do capitalismo.

O sequestro de grande parte desse contingente de pretos não retintos, com fenótipos miscigenados, gera como na doutrina jurídica o mecanismo denominado “Síndrome de Estocolmo” ou “Vinculação Afetiva de Terror”, onde o cativo, o sequestrado, se envolve emocionalmente com seu sequestrador. De posse da mente do oprimido, o opressor o instrumentaliza para que o oprimido lute contra os seus iguais, defendendo uma doutrina exógena que visa sua exploração, desumanização e dominação eterna.

O capitalismo e sua filha dileta a branquitude seguem se aperfeiçoando, gerando legislações, teses pseudo científicas e modelos tecnológicos avançados que lhes garantam cada vez mais benesses econômicas, lucros e poder. No piano racial da humanidade seguem executando maviosas sinfonias que encantam os mais desavisados. Agem como o flautista de Hamelin, conto do folclore alemão onde um flautista utiliza o poder da música saída de sua flauta para encantar pessoas e animais, levando-as a um destino cruel. Assim é o capitalismo que par a passo com a branquitude, que não é a designação de uma pessoa branca no grande concerto antropológico da vida. A branquitude que tanto nos impede de caminhar e avançar no processo civilizatório universal é um sistema perverso que se retrolalimenta e se fortalece com a desigualdade ocasionada por seus mecanismos.

 

 

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

O looping da epistemologia crítica e a disforia ontológica na (re)construção do ser social negro


Ser negro significa carregar não somente o próprio peso, o corpóreo, carbonífero, significa também transportar e sofrer o efeito gravitacional de uma vida pesada, das marcas, dos sofrimentos, da agonia de uma existência muitas vezes amargurada. O negro carrega o peso das sevícias sociais, mesmo que os grilhões do colonialismo escravizador tenham ficado para trás. Por mais que joguem para as calendas os horrores do cativeiro, existem os pesos invisíveis de diversos mundos invisíveis que impediram sua felicidade plena como ser humano. 
Do negro foi retirado tudo, a capacidade de sonhar, a vontade da rebelião e até o direito de amar. A ignorância perversa da branquitude a faz pensar, se é que pensa sobre isso, que os átomos que a constituem são mais elaborados que os átomos que constituem o povo negro. O povo negro é aquele povo bariônico, robusto e titânico que sobrevive a contínuos genocídios e atrocisades, desde os primórdios do infeluz encontro com os europeus colonizadores.
O povo negro sofre seu triste fado do alvorecer ao por do sol. Vive em sina contínua através do medo da violência, do desemprego, da fome, da miséria e da solidão. Paradoxalmente vive em um país onde nasceu, mas é tratado como um imigrante incômodo, como um africano perdido nas linhas do tempo, como entulho étnico descartável. 
Ao vagar pela urbe em busca de um sentido para sua vida, em busca de paz e prosperidade, é enxotado para os atalhos da invisibilidade e da indigência como um cão sarnento. Sofrendo as dores do pagamento atávico a que foi submetido, jamais cantará as canções de orgulho e glória das aldeias de seus ancestrais. O colonialismo cortou para sempre e de maneira cruel, como um machado epistemológico, todas as raízes das origens de seus antepassados. Onde estarão sepultados? No Alto Volta? Sudão? Daomé? Benin? Burkina Faso?Chade? Níger? Senegal? Angola? Congo? Somália? Etiópia? Madagascar?
O negro teve sua herança atávica destruída, vilipendiada e violada pelos colonizadores europeus que desrespeitaram a organização social e territorial de um continente milenar como o africano.
A África não é apenas um país. A África é um continente gigante colossal composto por 54 países diferentes, cada um.com suas próprias cosmovisões, incluindo entre eles o Egito, o supra sumo intelectual da humanidade, que a branquitude insiste em invisibilizá-lo
 como um país africano. 
As lágrimas de dor e sofrimento provocadas pelo colonialismo, pelo capitalismo e pela escravidão, que foram vertidas no passado, transbordariam de lamentos o Oceano Atlântico. Mar salgado e triste de tantos lamentos. Berço centenário de mortes antropológicas geradas pela opressão espiritual da cruz e pela ameaça do aço frio e inclemente da espada. 
Oh! Atlântico sem Deus! Mar de trevas, mar de solidão, mar de sofrimentos, crudelíssima e desvalida última morada de tantos inocentes que morreram horrorizados em suas águas enfrentando a pior das mortes onde não tinham onde se agarrar em seus últimos estertores. 
Atlântico mar de separação, mar dos medos, mãe de terrores. A calunga grande, a rota sofrida servindo de caminho da separação, do não-retorno, da condenação à eterna servidão em terras longínguas e aspérrimas. 
O cativeiro do povo negro mostrou a perfídia do humano (?) branco. A injúria e o crime da perversidade da escravidão transpuseram a última fronteira entre civilização e barbárie. A sanha monstruosa dos colonizadores violou os corpos, pulverizou as esperanças, violando corações e mentes, destruindo culturas e inúmeras cosmovisões africanas com suas maravilhosas diversidades.
O negro, brasileiro é a maior demonstração da resiliência e da esperança. Um povo que traz no corpo as marcas da vida e na alma as cicatrizes das dores ancestrais. Tataranetos de ninguém e filhos de um mundo imaginário onde perseveram aflitos por um dia em um esperançado futuro, em que um possível sol possa brilhar para todos. 
O povo negro viverá até quando não sabemos, nesse trágico e eterno looping existencial, vagando entre a agonia cotidiana do racismo e a esperança das quimeras ancestrais, como um renitente sísifo antropológico, que passa pela vida galgando as duras escarpas do destino, transportando rochedo acima um mundo que pesa suas dores em seus ombros, lhe forçando para o fundo do abismo, enquanto tenta chegar ao topo da vida.
O negro brasileiro é o que se acostumou com a indicação da entrada de serviço e com a senzalinha contemporânea que é o quartinho de empregada. Negro brasileiro que sofre nas noites agoniadas e duras sob as marquises da indiferença das cidades dos brancos. Jovens negros brasileiros que se humilham e se destroem nos malabarismos xotidianos
dos sinais de trânsito, ansiando por um mero descer de vidro acompanhado por um olhar generoso que lhes ofereça seus vinténs. Negro brasileiro que suporta a fome, a indigência e a solidão da cela do presídio, cheia de banzo e lamentos. Sofre o cativeiro contemporâneo de uma vida que nunca lhe sorriu verdadeiramente, que nunca foi sua, pois seu destino ficou emparedado ente uma África livre perdida nas brumas do tempo e um Brasil racista e cruel que nunca o amou.
A desumanidade e a barbárie trazida pela civilização branca o desumanizou com a incompreensão violenta da servidão secular em um cativeiro animalesco brutalizado por sevícias e tantas outras aberrações escatológicas. 
Negro brasileiro, filho da dor mais profunda, do mal mais doído, do ébano gerado e corrompido pelo lado mais sombrio e cruel da branquitude e do capitalismo predatório. Estamos juntos nessa luta meu irmão, minha irmã, negros e negras irmanados que não se curvarão ao neocolonizador, aos herdeiros das benesses geradas pelo crime imprescritível da escravidão. 
O tempo da escravidão mercantil passou, legando em seu rastro um vale de lágrimas e dor. Porém estamos aqui, vivos e resilientes, a chama de Palmares pulsa e grita em nossos corações, fazendo fervilhar em nosso sangue a herança guerreira que embalará milhões de novos Zumbis e Dandaras. Nossos olhos brilham diante da perspectiva do desafio e da vitória. Esperançamos como os malês, Maria Felipa, Marielle, Dragão do Mar, João Cândido, Aqualtune, Luiz Gama, Manoel Congo, Teresa de Benguela, Laudelina, Antonieta, Lélia Gonzales, Abdias, Maria Firmina e Luiza Mahin.
A divindade africana que une os deuses aos mortais, sem ameaças, sem culpas e sem sofrimentos, anuncia que nosso futuro será um lindo desfile da eudaimonia africana. Nossa cosmovisão repleta de cores, alegrias e sabores. Desfilaremos o êxtase do corpo com as mentes em axé sobre o asfalto frio das avenidas cinzentas e tristes da branquitude. Pobre branquitude preconceituosa e racista, que não conhece e não sabe a delícia de ser, saber e sentir a emoção de um samba rasgado e dolente, viajando na levada do tamborim e no alegre despertar rouco de uma cuíca.

sábado, 23 de setembro de 2023

Branquitude, raça e trapaça

Onde quer que esteja e na situação que esteja nesse Brasil, o branco médio estará sempre deitado em berço esplêndido, usufruindo das benesses estruturais, legadas pelo regime de escravidão mercantil, que durou mais de 350 anos, sendo extinto há menos de 150 anos. É sempre bom lembrar que além do império português houve uma sólida cumplicidade com a igreja católica, quando do sequestro e escravização de pelo menos 5 milhões de africanos trazidos para o Brasil,  sendo que chegaram vivos cerca de 4 milhões de cativos, pois o restante foi jogado nas águas gélidas do Oceano Atlântico durante a travessia, por morte, doença e em alguns casos raros por rebelião.
Muito se fala na escravização desses milhões de africanos trazidos para o Brasil, mas por vergonha ou por malandragem histórica, deixam de registrar que houve a escravização de muitos milhões de brasileiras e brasileiros, filhos desses ventres africanos e depois de ventres brasileiros, nascidos aqui em nosso território. Esses brasileiros que aqui nasceram foram condenados injustamente à escravidão perpétua, pois não estavam sob os ditames da Bulas Papais "Dum Diversas" em 1452 e "Romanus Pontifex", em 1445, ambas autorizando os reis de Portugal e Espanha a conquistar e escravizar todos os prisioneiros dos territórios não cristãos e sarracenos. O Brasil não estava sob a jurisdição das bulas papais, pois era considerado um país cristão com forte impulso de evangelização sob a responsabilidade dos clérigos da Companhia de Jesus, os jesuítas, que instalaram missões em várias partes do território brasileiro para evangelizar os povos indígenas e logo depois os africanos. 
Os seres humanos escravizados eram considerados propriedade privada de seus senhores, desde o momento de suas concepções, ainda nos ventres das mulheres negras africanas ou brasileiras.
É muito doloroso e assustador saber que esses nossos irmãos e irmãs nascidos aqui, brasileiros legítimos que eram, foram condenados à escravidão perpétua, mesmo sendo cidadãos brasileiros batizados pela Igreja Católica. Seres humanos marcados pelo destino antes de nascerem, concebidos através de estupros sistemáticos, onde os escravizadores submetiam as mulheres negras a terríveis e inomináveis situações brutalizadas. Os colonizadores visavam tão somente o ato bárbaro da satisfação sexual forçada, completamente despido do sentimento primordial do amor, onde visavam além da efetivação da bestialidade sexual, a previsão da venda da futura criança negra que viria ao mundo, condenada desde o ventre ao triste destino do cativeiro eterno.
A mulher negra era obrigada a abrigar em seu ventre, um feto que não foi desejado, que foi gerado pela brutalidade do estupro e da sordidez mórbida dos escravizadores. Não há destino mais cruel que sofrer o estupro, amamentar a criança e depois de crescida entregá-la para seu destino terrível que seria sua comercialização no mercado negreiro como um objeto qualquer, como uma mesa ou uma cadeira, aliás nem isso eram, pois cadeiras e mesas costumam ser cobiçadas como objetos de beleza refinada, olhadas com carinho e admiração.
A branquitude utilizava uma figura do direito denominada “strumento vocale”, ou seja, um objeto falante, um ser humano sem alma que falava. Foi através de espertezas como esta que a sociedade escravista  justificava a compra, venda e escravização desses seres humanos, sem confrontar os pilares básicos humanísticos do cristianismo. Assim o império português e depois da independência em 1822 o império brasileiro, fecharam os olhos para a degradante violação humana que se seguiria por séculos a fio em território brasileiro.
As mulheres negras pariam entre 5 e 15 crianças durante suas vidas de cativeiro. A maioria dessas crianças após uma certa idade eram sistematicamente vendidas para seus novos proprietários, quando então se viam perdidas em suas histórias de tristezas e sofrimentos pelos pérfidos fados do mundo. Filhos que nunca mais veriam suas mães e a dor maior que uma mãe pode sentir que é ter seu filho retirado de seu acalanto para sempre, para nunca mais poder vê-lo ou saber de seu destino.
O pesquisador Luiz Mott descreve que nos anais da primeira visitação do Santo Ofício à cidade de Salvador no ano de 1591, foram condenados 18 pessoas pelo crime de “sevícias”. Na época Salvador possuía 800 habitantes brancos e cerca de 3 mil negros escravizados que eram submetidos a estupros cotidianamente.
A historiografia oficial não é generosa e menos ainda transparente na quantificação desse contingente de brasileiros e brasileiras que vergonhosamente nasceram em terras brasileiras, sendo então brasileiros, já na condição de cativos, sem nunca terem respirado os ares da liberdade, em um país regido pela égide do cristianismo.
O branco brasileiro, rico ou pobre, vivo ou morto, de uma forma ou de outra, foi beneficiado direta ou indiretamente pelo instituto da escravidão, esse genocídio histórico de lesa humanidade que mostrou de maneira inequívoca o lado perverso e sombrio da branquitude racista e segregadora, ou seja, o lado demoníaco do ser humano, quando lhe é concedido através da força o poder de vida e morte sobre outros seres humanos. Poderes que lhes foram garantidos por leis e doutrinas pseudo científicas, que lhes propunha uma alteridade racial absolutamente inexistente no espectro da natureza.
Enquanto perdurou por aqui a prática da escravidão, houve intensa atividade comercial no tráfico negreiro, o maior da história humana. 
Trazer africanos escravizados para o Novo Mundo era um empreendimento de alto custo econômico para a empresa colonial. O “negócio” era uma odisseia que tinha início com a captura ou aquisição de africanos livres em seus países de origem, para logo depoi, na condição de escravizados, enfrentar a tenebrosa travessia transatlântica que sempre oferecia enormes riscos e possuía alto custo devido a utilização e manejo de embarcações de grande porte. A empreitada exigia a contratação de tripulação experiente e custos logísticos complexos como alimentação, medicamentos e equipamentos de marinharia. O custo financeiro para transportar um africano escravizado para o Brasil era muito grande para os valores da época, por isso havia o incentivo ou então a obrigação por parte dos senhores de escravos que as  mulheres negras investissem na procriação de filhos que seriam futuros cativos,  que mesmo nascidos aqui no próprio país, seriam vendidos como mercadorias, visando o lucro para seus senhores. 
A construção intelectual e a conceituação da branquitude, aflora nos anos 90 com o conjunto de estudos denominados “Critical Whiteness Studies”, que referenciaram os principais estudos sobre o tema. A teorização da identidade racial branca recebeu forte aporte intelectual de W. E. B. Dubois com a publicação "Black Reconstruction in the United States".
O psiquiatra e militante martinicano Franz Fanon discorreu em sua obra “Peles Negras, Máscaras Brancas” sobre a necessidade da abolição do termo “raça”, para enfim libertar tanto o negro de sua negritude como o branco da branquitude, que considerava verdadeiros cárceres de identidade racial.
Os “Whitenees Studies” definiram duas principais características para a branquitude: a branquitude crítica que convive pacificamente com os diferentes, tendo plena consciência dos privilégios que a beneficiam mas que porém nada faz para removê-los e a branquitude acrítica, vertente feroz que estimula a doutrina do confronto e radicaliza o movimento com a proposta inclusive de eliminação física de negros e negras, onde movimentos como a Ku Klux Klan e grupos neonazistas são a face mais visível desse tipo de branquitude extremada.
A branquitude conseguiu se invisibilizar na historiografia oficial brasileira como movimento opressor e constituinte de desigualdade. Segundo Guerreiro Ramos, as teorias das relações raciais no Brasil são um mergulho na sociologia do negro nativo. Elas não apontam uma dicotomia racial mas tão somente o lado do oprimido como se não houvesse um opressor.
A branquitude não é uma doutrina ou sistema de fácil compreensão. Não é somente ser branco, pois muitos brancos rejeitam o racismo e até formam fileiras para combatê-lo. A branquitude é um sistema de origem colonial, que determina o modo de funcionamento das estruturas das instituições, onde os espaços privilegiados sempre estão à disposição da raça branca em detrimento a outras raças.
A história do fim da branquitude e da dicotomia com a negritude foi objeto de uma forte bandeira de luta do Reverendo Martin Luther King, que era um ativista negro formidável e um dos principais líderes do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos.
 Em 28 de agosto de 1963 na capital americana aconteceu a "Grande Marcha por Emprego e Liberdade", também chamada de "Marcha de Washington" ou "A Grande Marcha", ato convocado por organizações religiosas, sindicatos e movimentos populares pelos direitos civis da população negra dos Estados Unidos.
Foi naquele dia que o Reverendo King proferiu o icônico discurso onde enfatizava que tinha um sonho. O sonho de que um dia nas colinas vermelhas da Geórgia os filhos de ex escravos e os filhos de ex proprietários de escravos pudessem sentar juntos à mesa da fraternidade. Até mesmo no Mississipi, um estado ardendo sob o calor da opressão seria transformado em um oásis de liberdade e justiça. A plateia em transe ouvia o reverendo e entre as centenas de milhares afro estadunidenses também estavam milhares de cidadãos brancos dos Estados Unidos. Eram milhares de brancos na plateia ouvindo emocionados as palavras de paz, justiça e igualdade que o líder negro proferia sem uma gota de ódio em seu sangue.
Martin Luther King não propunha uma nação negra. Ele lutava por uma nação multirracial e  pluriétnica  para que todas as pessoas pudessem sorver o doce licor da diversidade. Que não houvesse apartheid, que a diferença da coloração da pele não servisse de marcador racial definindo os que iriam sofrer e os que receberiam os privilégios de uma vida confortável e sem sobressaltos.
Naqueles anos difíceis para a população negra dos EUA, a separação racial por força da lei era quase que uma condenação ao sofrimento. Nascer negro sob o regime do apartheid significava ser cidadão de segunda classe, mesmo antes, ainda no ventre da mãe.
Mas o que aqueles milhares de brancos faziam na plateia do reverendo no 28 de agosto, naquela tarde em Washington, em plena vigência do apartheid? Certamente não eram racistas. Além de não serem racistas eram antirracistas, pois senão jamais estariam naquela posição de exposição enquanto pessoas brancas. Mas querendo ou não aquelas pessoas brancas eram beneficiadas pelo sistema perverso, segregador e excludente gerado pela branquitude. Eram privilegiados pelo sistema racial vigente, apesar da solidariedade que estavam prestando de maneira admirável e inequívoca aos negros do seu país. Aquelas pessoas brancas nasceram e cresceram tendo acesso aos benefícios e ao melhor conjunto de oportunidades civilizatórias que um ser humano não negro recebe ao viver em um estado segregador e opressor.
A emoção que ecoava naquele dia nos gramados de Washington, atingia a todos. Porém causava uma certa confusão nas mentes daqueles brancos. Muitos talvez não tivessem a compreensão do caráter universalista do protagonismo da raça branca, propalado em loas pelo país segregador. Os brancos ali presentes, mesmo sendo antirracistas, lutavam bravamente ombreados com os negros, mas em seus cotidianos sempre usufruíram do resultado construído pela branquitude, concordassem ou não com as ofertas e privilégios.
O Reverendo Martin Luther King era um ardoroso defensor da convivência pacífica entre todas as raças e talvez por esse motivo tenha sido cruelmente assassinado. Seu famoso discurso foi concluido com essas belas palavras: “...E quando isto acontecer, quando nós permitirmos o soar do sino da liberdade, quando nós deixarmos ele soar em toda moradia e todo vilarejo, em todo estado e em toda cidade, nós poderemos acelerar aquele dia quando todas as crianças de Deus, homens pretos e homens brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão unir mãos e cantar nas palavras do velho "spiritual" negro: Livre! Livre afinal”.
 A confusão da branquitude permanece circulando e operando até hoje, onde muitos brancos questionam sobre o porquê da não realização da “Semana da Consciência Branca”, ou então porque não o “White is Beautifull”.
Não compreendem que existe a negritude, que nunca utilizou a mesma régua da branquitude segregadora, pois é inclusiva e não exludente. A negritude é um modo de viver, uma doutrina consciente e empoderada que cria suas manifestações voltadas para a ancestralidade, para novas linguagens culturais e intelectuais, para o pertencimento. A branquitude é exatamente o oposto, vive operando nas sombras, planejando de forma contínua e consciente o próximo golpe que fortalecerá ainda mais a perpetuação de sua existência. Suas digitais estão diretamente ligadas ao projeto de poder do capitalismo e ao controle imanente das sociedades de todas as raças.
Negros e pardos, ou somente negros, como deve ser, apesar de constituírem a grande maioria da população não operam nem planejam um projeto de tomada de poder. Seguem desse jeito, sem esperanças, talvez devido as terríveis cicatrizes legadas pelos 350 anos de escravidão. Não é ao menos o espírito do negro cordial, é na verdade a ausência de espírito. É incompreensível que no parlamento brasileiro os negros sejam uma minoria insignificante, na medida em que são a maioria da população. Parecem ouvir uma linda música que os faz adormecer enquanto o racismo estrutural opera diuturnamente sem nunca cerrar os olhos.
O branco construiu através da história seu caráter universalista enquanto raça ou grupo étnico. Por esse motivo os comerciais e a programação da TV são recheados de brancos, talvez 95%, quando na composição racial brasileira os brancos representam menos de 50%. Esse é um exemplo evidente do universalismo branco, que também é gritante em outros espaços de poder como o Congresso Nacional, por exemplo, onde as mulheres negras que são  28% da população, são responsáveis por míseros 2% da composição das duas casas, Senado Federal e Câmara dos Deputados. No Judiciário é a mesma cantilena segregadora, onde no Supremo Tribunal Federal nunca houve a indicação para que uma ministra negra compusesse o pleno do tribunal.
No poder executivo há uma tênue flexibilização nas composições dos ministérios, onde colocam os negros nos comandos da Igualdade Racial e Direitos Humanos, onde não há verba e os partidos geralmente torcem o nariz para essas pastas descartando-as. Fica parecendo meio simbólico, tipo um “puxadinho das minorias”, um arranjo social e político da esquerda para marcar território, apontando para a sociedade o caráter progressista e humanístico do governo. Louvando a indicação de negros e negras para essas pastas, mas questionando enquanto negro, nota-se o incômodo da elite intelectual negra que argumenta o porquê da ausência de negros e negras no comando de ministérios importantes como Planejamento, Saúde, Justiça, Defesa, Educação, Desenvolvimento Social, Fazenda e Casa Civil. Esses ministérios atuam diretamente na estruturação do país, nas raízes do Brasil. O problema para entrar é que a porta de entrada é muito estreita, pois onde há dinheiro e poder poucos podem adentrar. São territórios próprios e exclusivos da branquitude e nessas portas os negros não podem entrar. Tudo isso soa muito mal, talvez seja uma versão mais envergonhada e cínica do regime de segregação estadunidense e sul africano. Um modelito à brasileira como um “apartheid moreno ou tropical”. Um modelo que despreza e humilha milhares de negros e negras Brasil afora, que possuem competência política e formação acadêmica para ocupar esses espaços de poder 
No Brasil a demonstração de consolidação da branquitude é escancarada. Mesmo em governos de viés de esquerda ou centro-esquerda, onde negras e negros continuam alijados dos centros de espaços de poder. 
No Brasil há uma enorme naturalização do racismo estrutural nesses casos, e podemos dizer até uma certa dose de hipocrisia, na medida em que bradam contra o racismo mas mantém os negros limitados em uma pequena bolha identitária, que nem mesmo arranha os debates políticos sobre investimentos estruturantes, orçamento público e programas sociais de alto perfil.
A branquitude através de seu sistema criminoso e perverso, utiliza o mimetismo político quando acena com algumas pequenas concessões ao povo negro. Geralmente projetos sociais com algum impacto midiático que costumam entregar excelentes indicadores de retornos de imagem. A branquitude pode até entregar um penduricalho ou outro para o povo negro, desde que seja mantida onde sempre se sentiu confortável, que é placidamente estabelecida sobre os ombros do povo negro.
A branquitude é um conjunto de mecanismos perversos que garante a perpetuação da riqueza e do poder para a raça branca. Quando garante os melhores empregos para os seus, garante diretamente ótimos salários que podem pagar ótimas instituições de ensino para seus filhos que ao se formarem garantirão os melhores empregos do mercado de trabalho e assim a perpetuação da riqueza e do poder permanecem asseguradas através desse looping social interminável.
Quando falamos em ótimas instituições de ensino estamos falando de pesquisa, acesso ao parque tecnológico avançado, aos centros de saúde e laboratórios de ponta, além do controle de todo o sistema financeiro como bancos, grandes fundos de investimentos e gigantes do mercado de tecnologia, comunicação e imobiliário.
O povo negro não faz parte desse jogo. Quando se esforça muito ou é detentor de alguma habilidade fora do comum, pode se acercar da mesa do banquete capitalista, porém sem nunca sentar à mesa, na medida em que é mantido na periferia do convescote, girando pelo entorno, recolhendo as migalhas e restolhos que lhes são atiradas pelos comensais brancos no grande banquete antropológico da vida.
A branquitude faz o jogo do ganha/ganha e impõe aos negros o terrível perde/perde ao obrigar esse contingente étnico desfavorecido a viver em territórios ambientalmente e socialmente degradados, sendo mal remunerados por seus trabalhos, vivendo apertados em desconfortáveis transportes coletivos de massa, dependendo da saúde pública precarizada e de um sistema educacional falido para seus filhos. É uma conta que não fecha nunca, são como eternos juros rotativos no cartão de crédito da existência, onde os sonhos natimortos de uma vida melhor fenecem no fechamento mensal da fatura da vida.
A branquitude em sua incrível capacidade de naturalização das desigualdades, considera essa situação perfeitamente normal, sendo que o pior, é não se sentir responsável por nada que acontece nessa roda viva de sofrimentos imposta ao povo negro, pois segundo sua lógica beócia a culpa é dos próprios negros, pois o instituto da meritocracia está disponível para todos e todas.
Muitos são como os brancos do discurso do reverendo King. Estão junto com os negros, na igreja, no candomblé, na capoeira, no samba, no estádio de futebol e até nas bebedeiras. Estão ali juntos, mas inconscientemente separados, sem a reflexão do porquê os negros vivem daquela maneira, com todas as dificuldades cotidianas que são intermináveis, sofrendo opressão da polícia, habitando territórios controlados por poderes paralelos e ameaçados pelas balas perdidas da violência  Saindo dali esses brancos, assim como os brancos do discurso do Reverendo King, vão para suas casas confortáveis em seus veículos caros, viver suas vidas de privilégios. A branquitude não os quer raciocinando, tanto o negro quanto o branco solidário ou não. Devem sim seguir em frente e cumprir a missão de fazer a máquina de moer negros girar. Não precisam refletir sobre o complexo e sofisticado modelo de predominância social que há muito está ajustado criando óbices cotidianos que impedem o avanço do povo negro. O sistema funciona assim e assim cada vez mais, vai se reproduzindo, se empoderando e se perpetuando.

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

PARDO! O camaleão racial do colorismo.

No início existia o nada e então do nada fez-se o ser negro, primeiramente a mulher negra. A mulher negra, a grande mãe primordial do universo, entregou ao mundo o homem negro, um ser lindo porém frágil e totalmente dependente do seu amor.
 A partir de então houve o povoamento do planeta Terra, um mundo absolutamente negro.
A inquietude natural do espírito humano fez o povo negro se espalhar pelos confins da Terra, buscando novos territórios, construindo futuros, sonhando utopias e conhecendo o desconhecido.
Enquanto caminhavam mundo afora com uma chama acesa no coração, esses grupos de africanos pioneiros foram adquirindo características fenotípicas peculiares aos climas onde se estabeleciam.
As diferenças se acentuavam na medida em que se movimentavam por diferentes ecossistemas e a principal característica de fenótipos que começou a diferenciar os habitantes do planeta foi a perda de melanina, um processo de albinismo lento e necessário posto em marcha pela natureza que visou garantir a sobrevivência dos migrantes negros em suas novas vidas. A opção em viver em territórios frios, cobertos de gelo, gerou a grande transformação que dividiria para sempre a humanidade, a pele branca sem melanina, profundamente desnecessária nós climas frios e sem grande incidência de luz solar, ou seja, o albinismo dos povos africanos deu origem ao que foi convencionado chamar de raça branca.
A ciência comprova através de diversos estudos, mecanismos e metodologias que o primeiro grupo humano surgiu no Continente Africano. Todos os seres humanos são afrodescendentes, pois de uma maneira ou de outra corre em suas veias o sangue do primeiro grupo humano africano.
Os dois grupos humanos, cada qual a sua maneira, constituiu suas culturas e seu modo de viver de acordo com suas vivências e conveniências. O crescimento da população mundial e a busca incessante por riquezas e novos territórios levou esses dois contingentes humanos a se encontrarem dezenas de milhares de anos depois.
O encontro não foi virtuoso para o povo negro. Os brancos motivados pela ambição e sede de capital e poder navegou da Europa onde viviam até o Continente Africano, dominando e conquistando os territórios negros, escravizando as populações nativas e destruindo o modo de viver daqueles povos.
O encontro deletério entre os dois grupos étnicos antagônicos gerou através de relações íntimas, consensuais ou não, um terceiro contingente que no caso do Brasil recebeu a alcunha de pardo.
A definição geral de pardo indica uma pessoa com diferentes ascendências, ou seja, multiétnicas, que são baseadas numa mistura de cores de peles principalmente entre brancos, negros e indígenas. Essa matriz indoafroibérica compreende um amplo espectro de descendentes de negros e brancos, de negros com indígenas, de branco com indígenas e de negros com indígenas.
A grande maioria dos pardos não possui referências históricas sobre a vida de seus antepassados. As sagas heroicas e comportamentais acerca da virtude, de intelectualidade, ou de conquistas nos mais diversos campos em um passado virtuoso, praticamente inexistem.
Os pardos constituem um grupo étnico que possui uma ancestralidade bastante diversificada. Uma avó branca de olhos azuis centenária aqui, um avô preto velho que mascava fumo ali. Uma tia negra rezadeira quase africana e um tio branco que gostava de jogo, bebida e mulheres.
O pardo principalmente é filho do branco e do preto, e traz consigo a contradição de dois mundos, sem sequer pertencer exclusivamente a nenhum dos dois realmente. Ao pardo foi legada essa equidistância estranha entre duas cosmovisões díspares onde um mundo mesclado pelo branco e pelo negro dentro de um caldeirão racial e antropológico gerou a complexa simbiose indoafroibérica que é o elemento humano denominado pardo.
Biologicamente o pardo é o resultado da fusão de dois mundos, duas culturas duas cosmovisões distintas, mas ao mesmo tempo é filho de mundo nenhum, é um exilado racial, pois não existe cultura parda, não existe cosmovisão parda. Existe a branquitude, a cosmovisão inequívoca do branco para a predominância e existe a negritude, a cosmovisão negra, forte e milenar, geradora da civilização humana. A cosmovisão negra tem o poder e a força transformadora de um furacão, e talvez por isso seja tão atacada pela branquitude, muito por inveja e por medo.
E onde podemos encontrar a cosmovisão do pardo? A cosmovisão do pardo é como um planeta que é atraído gravitacionalmente por duas estrelas que compõem um sistema binário. Essas duas estrelas, a branca e a negra, através do poder gravitacional de cada uma, exercem um enorme poder de atração sobre o planeta pardo simultaneamente, e o fazem coexistir em uma órbita hesitante e um tanto errática, como um cão instado a escolher entre o casal que o cria desde pequeno, para qual colo deve correr quando chamado pelos seus dois donos simultaneamente, uma escolha difícil.
O planeta pardo sente uma enorme atração pelo brilho da estrela branca. É uma estrela que controla os mecanismos de protagonismos, privilégios e poder. Ao lado dela e sob seu manto gravitacional a vida é mais segura e confortável, as grandes oportunidades são visíveis e as dificuldades sempre desaparecem. O planeta pardo tenta se aproximar sempre que pode da estrela branca, mas é repelido suavemente pela força, pelo brilho e pelos ventos solares da estrela, que de maneira inequívoca não quer correr o risco de ter seu brilho afetado e esmaecido por um corpo celeste pardo, que contenhaem sua composição a pigmentação escura das estrelas negras.
Então resta para o planeta pardo se aproximar e ser recebido pela estrela negra e seu fabuloso sistema de acolhimentos coloquiais. O planeta pardo percebe que a estrela branca com sua vocação egoísta e individual vai perdendo lentamente sua força de atração gravitacional e então entrega-se de vez ao mundo da estrela negra acolhedora, que o recebe de braços abertos em uma enorme kizomba universal.
No universo das galáxias das estrelas brancas não há espaço para os planetas pardos. São corpos celestes resultantes de mestiçagens consideradas ineficientes e sem brilho pelas estrelas brancas. Essas estrelas brancas porém, costumam utilizar os planetas pardos como uma barreira espacial para evitar qualquer tipo de contato com estrelas negras. Os planetas pardos nesses casos, servem como anteparos do colorismo para evitar a aproximação, a convivência e a ascensão de possíveis estrelas negras ao olimpo estelar.
O planeta pardo passa a viver em seu espaço/tempo viajando entre esses dois mundos no incomensurável espaço estelar. 
Com a compreensão de que as estrelas brancas querem se utilizar dele para impedir o empoderamento das estrelas negras, passa a conviver e aceitar a cosmovisão negra, admitir sua ancestralidade, passando a viver na gigante e acolhedora cosmovisão do Orum.
Apesar de se sentir acolhido na constelação das estrelas negras, o planeta pardo sabe que não é totalmente negro em sua constituição, em sua gênese primordial. No fundo sempre será observado pelas estrelas negras com reservas, até com.certa desconfiança, pois, há componente das estrelas brancas correndo em seus rios, mares e florestas. Não há o que fazer nesse aspecto, e assim o planeta pardo segue em sua existência confusa e difusa combinada em um universo preto e branco, com suas leis e códigos estelares bicolores, um pé em cada canoa.
 O planeta pardo vive em seu eterno conflito existencial no complexo tecido do espaço/tempo, que é onde vive. Parece um eclipse permanente e imanente, pois é o resultado de um choque geracional, da dualidade entre o preto e o branco e a impossibilidade do coexistir naturalmente entre esses dois mundos
Planeta pardos são como astros errantes no universo infinito da vida. Sabem possuir o branco em sua composição primordial, mas pertencem exclusivamente ao espectro magnético das estrelas negras. No complexo tabuleiro das relações raciais a cosmovisão branca, a débil branquitude, se utiliza dos planetas pardos como peões de sacrifício para desgastar e enfraquecer as estrelas negras em um jogo de atração denominado colorismo. As estrelas negras conscientes de suas poderosas magnitudes apenas observam a insegura corte insidiosa sobre os planetas pardos que sabem ser passageira, como a fugaz passagem dos cometas e asteróides que rasgam os céus do infinito.
No fundo os pardos tão despigmentados e semialbínicos, sobrevivem espremidos pelas suas ancestralidades antagônicas, desconhecem os limites das fronteiras étnicas que os compõem e em muitos casos, como borderlines raciais, renegam ambos os mundos em ataques de pânico e desespero: um e outro mundo, negro e branco.
Terminam por utilizar o único elevador social que lhes é permitido, aquele do mundo de Alice no País das Maravilhas, onde quando se pensa que está em cima está embaixo e quando se pensa que está embaixo está em cima, e mais ainda, nada é como deveria ser e nada está como deveria estar.
Já no elevador social dos apartamentos da burguesia ele não pode subir, pois são espaços privativos da branquitude. Sempre há uma ou outra exceção, mas a regra geral é o interdito e a repulsa.
A branquitude não cansa de ser ridícula em seus sistemas de segregação. Um dos maiores exemplos disso é assistirmos a um padeiro espanhol branco, desempregado e passando por dificuldades econômicas, ir ao estádio de futebol ironizar e ofender um jogador negro de futebol, chamando-o de macaco e fazendo gestualidades próprias dos símios. O detalhe é que o jogador negro é riquíssimo e recebe um salário milionário, possuindo diversos carros de alto luxo na garagem de sua mansão nos bairros mais nobre das cidades espanholas. O que faz um operário branco, desempregado, famélico agir desta maneira irracional e idiota? Certamente a falsa crença que por possuir menos melanina na pele é superior ao outro que é portador de mais melanina. Ao chamar o não-branco de macaco, demonstra profunda ignorância de diversas maneiras, como ser humano pregando o racismo, como ser cultural que desconhece a origem das espécies, pois ele mesmo é um afrodescendente de acordo com a comprovação da ciência, que comprova de maneira irrefutável que a humanidade surgiu no continente africano.
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, a PNAD Contínua do IBGE de 2022 aponta que no Brasil a composição racial tem os seguintes indicadores: pardos 45,3%, brancos 42,8% e pretos 10,6%. Esses dados apesar de serem oficiais, não representam a realidade, pois o critério do IBGE utilizado para o levantamento da composição racial junto à população é o sistema de auto declaração, onde o entrevistado diz qual é a sua cor, ou seja, a qual grupo ético pertence. O grande problema na metodologia de auto declaração é que a identificação acontece por meio de critérios subjetivos por parte dos entrevistados, que por pequenos detalhes oriundos da adaptação climática se declaram brancos como na verdade são pardos.
O colorismo é um conjunto de subjetividades oportunistas que altera de acordo com as situações apresentadas pela branquitude, os pardos em brancos.
Se fossemos considerar que a declaração raça/cor passasse a ser apontada na pesquisa por pessoal qualificado em heteroidenficação o coeficiente dos entrevistados pardos poderia saltar para mais de 60% da população. Os indicadores são gritantes e evidentes quando apontam que o contingente pardo da população é representado como um planeta gravitando em um sistema de estrelas binárias, quando na verdade é um grande planeta com duas luas, uma negra e outra branca, que giram em torno de seu eixo gravitacional. Quando adotamos a teoria de que possuir uma gota de sangue negro passa a ser considerado negro, a raça branca praticamente deixa de existir no Brasil.
A branquitude é um sistema tão poderoso e eficiente que convence a grande maioria parda a não ser negra enquanto que ao mesmo tempo a faz se sentir inferior e dependente do contingente branco, realizando cooptações oportunistas que fortalecem suas estratégias enquanto grupo social predominante.
O sistema racial brasileiro é complexo e emocional ao extremo. Existe uma intensa e silenciosa movimentação entre os três contingentes étnicos, cada um buscando seus interesses, seguranças e oportunidades, de acordo com as estratégias miméticas contidas no grande jogo do tabuleiro racial. Existem pretos se dizendo pardos e pardos se dizendo pretos ou brancos. O que não se encontra de forma alguma nessa grande feijoada racial 8nterppsnetária é o branco abrindo mão de seus privilégios de maneira voluntária e se dizendo orgulhoso em ser preto ou pardo.

quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Uma Rapsódia Africana

Sou um ser negro formado por imensos vazios de ancestralidade. Senão tantos vazios mas repletos de hiatos de atavismos. Minha sombra é um ectoplasma que se esquiva do real, na medida em que os sóis do meu universo não iluminam meus recantos, por estarem onde não deveriam estar.
Ser um homem negro é fingir não ver o abismo quando se vive dentro dele rodeado por todos os seres horrendos que o habitam. Sou um triste hiato africano consumido pela cruel diáspora global. Sou aquele que caminha pelos desvios que me são permitidos caminhar.
Posso mas não posso amar livremente. Sou um homem negro cujos passos são vigiados pelos olhos da branquitude, da sociedade perversa que somente permite amores ocasionais, interditos em gotas que usurfruo sofregamente em meu etéreo graal de esperanças.
Onde estará minha ancestralidade? Decerto nunca conhecerei as músicas e as danças da aldeia dos meus ancestrais, a comida, as estórias de assombrações; os cantos de glória e vitória dos meus antepassados, sou um pária atávico, um viajante sem-passado, a escravidão o tirou de mim.
Sou um homem negro em uma diáspora global hostil que não me ama e nunca me amará, pois represento na civilização parte do estoque étnico descartável, da sub-civilização contemporânea, da qual sou um mero personagem secundário e nunca  protagonista principal.
Existo em um labirinto antropológico onde a razão me faz evitar o minotauro eurocêntrico. Um labirinto de onde nunca sairei e que não se importa nem um pouco se sou feliz ou não em meu triste fado de não encontrar uma saída.
Sou um buraco negro existencial que consome todas as aflições do mundo em meu horizonte de eventos. Até a tênue luz da lua que teima em surgir nas noites estreladas é consumida pela voracidade da minha gravidade avassaladora.
Cruzo a vida como um velho veleiro navega em um mar de sargaços, lentamente, displicentemente, bamboleando na gávea, ansiando encontrar terra firme, um mundo livre diferente do mundo alvoroçado dos brancos. Sem a escravização do dinheiro, onde os lamentos de almas negras não sejam apenas meros sussurros desagradáveis, monótonos e dispensáveis.
Há um céu que me foi negado pela própria cristandade desde sempre. Não há céu para um negro pois o reino dos céus do cristianismo é branco. Me mostraram um Deus criador branco de barbas brancas, Seu filho que morreu para me salvar é louro de olhos azuis mesmo tendo nascido no Oriente Médio. Os anjos são brancos em um céu absolutamente branco. Para mim sobrou o mundo negro, a noite mais escura, o mal, a escuridão, a insídia e o purgatório na melhor das opções.
Nasci puro, com um sol radiante em minha alma, que aos poucos foi sendo esmaecido, apagado e trocado por um mundo plúmbeo, triste e sem luz, onde caíram mortas as estrelas vivas da minha felicidade.
Existo em uma diáspora africana que me permite não sonhar e me obriga a ser feliz para que possa ser visto como um ser humano servil, cordato e civilizado.
Mas não posso me prender nas lamúrias da egotrip. Tampouco me integrar ao motocontínuo da morte, caminhando em círculos afroferomõnicos, como as formigas, para enfim perder a vida pela exaustão. Talvez seja isso que o sistema quer que eu faça. Que fique girando em torno das questões cotidianas que o racismo estrutural nos apresenta e deixe de me organizar para lutar contra as estruturas de poder historicamente controladas pela branquitude. São sistemas que nós negros precisamos compreender cono a elaboração e execução do orçamento público, o controle dos aparelhos de repressão, o sistema educacional público, o funcionamento do parlamento nas três esferas de poder, a organização do Judiciário e o complexo arcabouço que rege o funcionamento dos partidos políticos. Enfim, são estruturas que permanecem imponentes enquanto nós giramos de forma messiãnica à sua volta, como os muçulmanos fazem na pedra negra de Meca. Os brancos nos permitem tudo, menos que ocupemos seus lugares privilegiados. O poder nunca é dado, tem que ser tomado. A via eleitoral se tornou uma quimera para os negros. Todo o ordenamento jurídico nacional é dirigido para privilegiar a branquitude. Continuamos a catar os miúdos dos porcos, os restolhos antropofágicos que nos são atirados  para fazermos nossa feijoada existencial. Continua tudo como sempre foi e como sempre foi resta-nos a rebelião e a revolução. 
A rebelião que grita em meu peito, me queima e me consome ao não sentir em meus irmãos e irmãs a chama lendária do espírito de Palmares.
Assim caminho na vida, solitário em meus anseios, sozinho em meus sonhos, tentando alcançar um horizonte reluzente que se afasta cada vez mais, quanto mais vou de encontro a ele.
Sou um homem negro que ouve os sons de uma rapsódia africana, extraída de uma sinfonia histórica imemorial, cujos acordes foram forjados pelos lamentos e pela tragédia colonial que os brancos nos impuseram
Passo pela vida catando os cacos de sonhos que encontro pelo caminho: uma companheira amiga, um lugar de paz, filhos felizes e um futuro que não seja marcado a ferro e fogo, calcinado pelo desterro, tatuado pelas marcas da opressão da branquitude na pele.
Não nasci negro, nasci com a pele preta, sem saber quem eu era realmente . Tornei-me refém de uma afrotautologia que me atirava inerte contra os paredões do destino, totalmente cego, sem saber por onde estava indo.
Enfim meus companheiros e companheiras de luta me resgataram de um mundo sem luz e retiraram a venda que cobria meus olhos. Venda que me impedia de enxergar e lutar contra as injustiças, o racismo e o preconceito.
Sem a cegueira antropológica que me impediu de enxergar a realidade gritante do racismo estrutural, pude enfim me erguer, virar as costas para a "síndrome do impostor" e me tornar um homem negro verdadeiro, livre das amarras do eurocentrismo e munido do escudo e da lanca para enfrentar o dragão do capitalismo.
Foram tantas lutas e refregas que jamais esquecerei do calor dos combates, do cheiro de suor dos companheiros e companheiras nas mais diversas trincheiras espalhadas mundo afora. Essas bravas pessoas negras me fizeram negro, pacientemente me tornaram negro, negro de verdade, alma de Zumbi, forjado no inconformismo, Xangô da rebelião, Ogum na revolução.
Muitos se foram e nós também iremos um dia. Assim como os heróis de Palmares, da centenária Tróia Negra também se foram. São Abdias, Lélias, Beatrizes, Mahins, Felipas, Benguelas, Marielles, Malês, Carolinas, Firminas, Antonietas, Dandaras, Aqualtunes, Solanos, Limas Barretos, Acotirenes,  Gangas Zumbas, João Cândido, Dragão do Mar, Manoel Congo e tantos personagens que lutaram incansavelmente pela liberdade, pela igualdade. Mas outros virão e orgulhosamente lhes passaremos os estandartes e as bandeiras de luta. São os negros mais importantes para nós, tanto quanto os que partiram são os que estão chegando, os negros do devir, afroguerreiros de um futuro que não tardará a acontecer. Corpos negros, esbeltos, fortes, sorrisos francos, com seus cabelos lindos, corpos cheios de energia, cantando canções de glória. Sim, são esses que continuarão a reverberar nossos gritos de liberdade com igualdade que nunca poderão ser silenciados.

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Se a espécie humana surgiu na África...

Diante da imensidão do universo somos mais fugazes que o tempo de existência de uma fagulha, ou seja, nada. Nosso tempo de vida é a coisa mais vã e desnecessária que se pode observar no universo. Ele, o universo, não se importa se somos brancos, pretos, pobres, ricos, felizes ou infelizes, cristãos ou muçulmanos. A única realidade inexorável é que iremos desaparecer definitivamente do planeta Terra enquanto que o universo continuará em sua magnificência infinita.

O tempo ínfimo que passamos aqui sobre este planeta, inexplicavelmente nos cobre de vaidades, soberbas, julgamentos, preconceitos, falsas verdades, egoísmos e desamores.

Não há uma explicação plausível para que esses sentimentos negativos nós preencham. Nesse aspecto somos mais defeitos que virtudes cotidianamente. A incapacidade de nos tornarmos perfeitos perante uma matriz existencial definida em um conjunto de possíveis virtudes nos exaspera.

Então criou-se o bem e o mal de acordo com as características de cada grupo humano. E assim a humanidade caminha referenciadas em verdades que determinam que a mulher é inferior, que negros e indígenas são inferiores, que a terra não pode ser de todos e que o amor pode ser comprado.

Para que possa existir em um cenário tão enigmático e opressor a espécie humana desenvolveu as religiões. Trabalhando com a metafísica do sagrado se consegue sobreviver nas turbulências da existência humana legando a uma divindade superior e imanente todos os momentos de felicidade ou infortúnio que perpassam nossas vidas.

A existência do dogma justificado pela metafísica faz da mulher um ser inferior. Impedida de comandar os ritos sagrados na maioria das religiões, segue sendo secundarizada pelo cristianismo dogmático por ter sido criada através da costela do homem, um subproduto do ser masculino dominante.

A merafísica determina que o que é sagrado tem que ser cumprido e não contestado. Então os homens baseados no princípio da dominação do sagrado criam leis, exércitos, processos de conquistas e opressões onde afirmam seus pseudo poderes.

Há uma desconexão proposital da efemeridade do ser humano com a infinitude do universo. Os livros que foram escritos narrando a existência de divindades não preveram os avanços tecnológicos e científicos que levam a humanidade casa vez mais distante no espaço profundo. Antes o planeta Terra era o centro de tudo e a Criação estava concentrada nele. Agora sabemos que nosso planeta é menor que um grão de areia na imensidão universal. Sabemos que existem mais estrelas no céu que grãos de areia na Terra.

São mundos infinitos em trilhões de galáxias que nunca chegaremos a descortinar. Nossa visão de centro do universo se estilhaçou e nós põe à prova quanto a imanência de um ser que tudo pode e que tudo vê. A incapacidade de entender ou saber qual o objetivo de nossa existência joga a resposta para o sagrado, pois somos incapazes de compreender o que viemos fazer aqui.

A incompreensão existencial gera por conseguinte os inúmeros desvios de caráter que permeiam a existência humana. Se o tempo de nossas vidas é tão curto, precisamos usufruir o melhor da vida. Então vivemos em uma sofreguidão por constituirmos bens, terras, imóveis, capital e outras formas de aquisição de poder.

O rótulo do sucesso prevê a acumulação de bens. O respeito civilizatório não se dá pelo conjunto de virtudes humanísticas de um ser humano mãe sim pela capacidade de constituir capital. A metafísica justifica essa posição ao afirmar que devemos dar à Cesar o que é de César e à Deus o que é de Deus.

Deus é a virtude, o amor, a solidariedade e a compaixão. César é o mundo difuso e plúmbeo do capital. Então vivendo entre esses dois mundos vamos tentando sair de um para entrar no outro sem porém abandonar um em detrimento ao outro.

Então a vida passa e os que estão perto do final analisam as batalhas interiores entre esses dois mundos que nos compõem. No fim pode parecer ridículo todo esse viver que nós atira constantemente nós paredões desses dois mundos que consideramos destino.

Em 200 anos no futuro ninguém que está vivo hoje nesse planeta estará vivo, terão desaparecido, transformados em cinza e pó. Enquanto isso o universo seguirá em sua marcha infinita, pouco se importando com nossas vaidades e arrogâncias que se foram envolvidas pelas cinzas.

 

O céu enquanto um local paradisíaco reservado aos que viveram uma vida dedicada a Deus não passa de uma meta e inteligente construção metafísica. A Bíblia diz que é mais fácil um camelo passar através de um buraco de agulha que um rico herdar o reino dos céus. Na luta de boxe chamam de golpe abaixo da linha de cintura. No popular se diz golpe baixo.

Sabemos que 1% dos mais ricos do planeta ficaram com 2/3 de toda a riqueza produzida no mundo, que sugnifica 43 trilhões de dólares, ou seja, seis vezes mais dinheiro que toda a população global estimada em 7 bilhões de pessoas.

Essas pessoas super ricas não poderão entrar no reino dos céus pelo simples fato de já estarem nele. As outras 99% lutam bravamente para não chegarem ao inferno, que na verdade está aqui na Terra e é muito fácil de entrar nele, basta perder o emprego e não conseguir outro ou depender da saúde pública em caso de doença.

Não conheço nada mais inteligente e eficaz que convencer o miserável a sentir pena do destino metafísico de um rico e se resignar com sua indigência, pois somente através dela alcançará o paraíso. Ao acreditar no excerto bíblico, o miserável jamais se levantará contra seus senhores, pois, a ele está destinado viver aos pés de Deus e da Virgem Maria em um ambiente puro, divino e livre de pecado. A ele foi apresentado um mundo invisível e fantástico como recompensa pelo seu comportamento resignado e servil aqui na Terra.


















 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 25 de agosto de 2023

O Caminho da Luz

 Os antigos afirmavam que existem dois lobos dentro de nós, um bom e outro mau. Eles estão em luta constante para se apoderar do nosso espírito, das nossas escolhas, da nossa vida. Qual deles vencerá? A resposta é simples, vence o lobo que você alimentar.

Se você optar por nutrir o lobo bom, seguindo por um caminho luminoso, reto e virtuoso, certamente ele vencerá a contenda e expulsará o lobo mau que insistia habitar seu interior. Agora, se ao contrário, o lobo mau for alimentado com hábitos destrutivos,  atitudes e pensamentos violentos, comportamento insidiosos e fazer seu cotidiano ser permeado por atos difusos e pejorativos, esse lobo mau vencerá e construirá, após a expulsão do lobo bom, um caminho de trevas e martírio em seu viver

Escolha sempre o caminho da luz. Esse caminho é como uma árvore frondosa que por muitas vezes nos oferece raízes amargas, causando-nos decepções e sofrimento, mas no final, se formos resilientes e mantivermos a fé, ela nos entregará doces frutos.

O caminho da luz é para todos indiscriminadamente. Nada tem a ver com posses ou riquezas materiais. A luz é interior e espiritual, sendo que muitas vezes, aliás, quase sempre, reside na simplicidade, na compreensão, na solidariedade e no amor verdadeiro, aquele que não exige nada em troca.

Muitos reis, milionários e poderosos, apesar de grande riqueza e conforto, vivem nas sombras, envoltos em um triste mundo frio e sem luz.

Por outro lado, podemos ver, que um humilde morador em situação de rua, pode viver feliz com seus cães, com seus amigos e com a vida simples, que o faz feliz em seu mundo repleto de calor e luz.

Nossa passagem pelo planeta Terra é efêmera. Uma simples fagulha no tempo imemorial da vastidão universal. O que nos cabe nesse diminuto lapso temporal nesse cantinho da galáxia é a escolha da forma como queremos viver, se nas trevas ou na luz. Seremos lembrados pelo que espalhamos de bom pela vida e não pelo que acumulamos em benefício próprio.

 A vida é simples e simples o caminho da luz que nos presenteia com a possibilidade de felicidade a cada novo amanhecer.

 

 

domingo, 20 de agosto de 2023

Guardiões da Humanidade

Segundo dados da ONU, os povos originários, ou indígenas sao 6% da população mundial, ou seja, 370 milhões de habitantes. Esse contingente humano fala 4 mil línguas, sendo que os territórios que ocupam representam 82% de toda a biodiversidade do planeta. Provavelmente sem esses formidáveis guardiões da natureza, a espécie humana não estaria caminhando hoje sobre a Terra.

sábado, 5 de agosto de 2023

Van Gogh Museum


O ambiente do Van Gogh Museum é canônico e grandioso. Um espaço dedicado à glória humana, onde se sente a atmosfera inebriante do espírito de Van Gogh e seu mundo caoticamente brilhante, cravejado por suas luzes que espocam em nossas almas como relâmpagos divinos.

No meu caso, não consegui descortinar um painel artístico definido diante da grandiosidade de sua obra, pois, me vi desconcertado diante daquele mundo salpicado de maravilhas que foram produzidas e até paridas sob sentimentos e momentos de intensa dor.

Talvez a grande arte seja assim, nasce como nascem nossos filhos, que encantam e iluminam nossas vidas , mas que para vir ao mundo rompem um mundo quente e confortável, infligindo uma dor profunda inesquecível e maravilhosa.

Somente o amálgama da dor com a inspiração pode parir luzes tão primordiais como as que vemos na obra de Van Gogh. Talvez seja um fado destinado aos grandes artistas, quando podemos constatar a mesma dor em Beethoven, Tolstoi, Ezra Pound e Ana Cristina Cesar.

O artista deixou mais que o legado artístico. Em sua vida atribulada, financeiramente trágica e mantida pelo irmão Theo, transmitiu um legado  às gerações futuras mostrando que a vida não pode e nem deve ser cativa ao dinheiro. Van Gogh é a mais completa representação da necessidade de se fazer arte por amor, puramente por amor e não por pecúnia. Quando dirijo meu olhar sobre suas obras, nunca esqueço que em seu desespero por afeto e talvez até por amor, retirou uma prostituta com seus filhos das ruas e os levou para morar consigo, construindo um arremedo desesperado de lar e família possível.

Todas as vezes que me detenho sobre sua obra, lágrimas afloram em meus olhos, diante de tanta magnificência construída na mais absoluta simplicidade. Van Gogh no meu entender é o que existe de mais próximo entre o píncaro da arte humana e a energia divina que rege o universo.

Uma Saga Africana

Negras e negros africanos livres
Sequestrados, escravizados, acorrentados
Levados para o Novo Mundo
Aquele novo governado pelo velho
Aquele velho fazendo trabalho imundo
Impuseram os seus deuses
Renegaram nossa fé
Fundamentos de Luanda
Zangbetos do Benin
Amazonas do Daomé
Negros afroinsurreptos
Winnie, Agostinho Neto
Impuseram santos brancos
Novos cantos de louvor
Nosso povo é Rás Tafari
Etiópia, Salvador
Haile Selassié
Lutou contra o opressor
Contra o colonialismo
Contra o dominador
Senegal lanca seu brado
Renegando o invasor
Atacaram a autoestima
O sonho de liberdade
Oprimiram as mulheres
Mas não a sororidade
Mil guerreiras geledés
Africanas de verdade
Colonizadores do mal
Mataram, pilharam, humilharam
Nossa ancestralidade
Mancharam a cosmovisão
Nossa ancestralidade
Restou nosso sentimento
De igualdade e irmandade
Lutamos o bom combate
Na ilha de Madagascar
Togo, Guiné e Mali
Cabo Verde, Zanzibar
Luta pela liberdade
Contra o colonizador
Sankara, Samora, Lumumba
Amilcar, Leopold Senghor
Angola, Benguela, Bahia
Uma só comunidade
Mia Couto, Agualusa, Abdias
Fela, Solano Trindade
Palmares! Soweto! Iansã!
Selma! Ogum! Haiti!
Luther King, Malcolm X
Garvey, Muhammad Ali
Graça Machel, Rosa Parks
Patrice Lumumba, Zumbi
O poder negro não é quebrado
Por nada que há nesse mundo
É guardado pelos orixás
Pelas Três Senhoras no Orum profundo
Pelas pretas benzedeiras
Por Xangõ pelas pedreiras
O grito de guerra se espalha
A rebelião na senzala
O fogo da noite faz dia
Angola Janga, Bahia
Ganga Zumba desce a serra
 Morre pela covardia
Confiou no invasor
Na palavra do traidor
A mulher negra é a mãe da Terra
Em seu olhar a vida brilha
Viajante das estrelas
Onde é mãe e sempre filha
Tem o poder das ervas santas
No Ifá o futuro vê
Sabedoria do astral
Príncipe Logunedê
Canto a glória de Oyá
Senhora do vendaval
Protegei os vossos filhos
Na diáspora global
Que esperam o chamado
Da reparação final
A chama acesa é o sinal
Forca revolucionária
Alma subsahariana
História de liberdade
Uma saga africana
Transformando a humanidade
Consagrando a união
Senegal, Gana, Nigéria
Congo, Angola, Sudão
É o chamado de Mandela
É o poder da favela
Negros heróis libertários
Fanon alma da Martinica
Bob Marley na Jamaica Moçambique terra rica
Steve Biko inquieto
Viva a lua de Luanda
Amor de Agostinho Neto
Lutando contra o racismo
Derrotando o apartheid
Pela ordem da história
Força da diversidade
Pela poder do amor
Pelo bem da humanidade
O destino do povo negro
Está escrito nas estrelas
Na herança dos Dogons
De poder viver e vê-las
Assim caminha nossa história
Nosso povo, nossa gente
É destino de guerreiros
De remar contra a corrente
Aimé Césaire, vive!
Kwane Nkrumah evoé!
Zangbetos do Daomé
Cabo Verde Pedro Pires
Trovoada em São Tomé
A grande África Mãe
Deusa da ancestralidade
A grande África Mãe
Berço da humanidade
Palmares! Soweto! Nanã!
Selma! Ogum! Haiti!
Congo! Sudão! Iansã!
Luther King! Sankara! Zumbi!
Palmares! Soweto! Nanã!
Saladino! Maleico Salam!

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Poeira de Estrelas

Aos jovens é concedido o prazer da experimentação da vida. A existência de um jovem pulsa forte como a energia de uma estrela de nêutrons. Tudo é muito intenso, os hormônios estão ocupadíssimos em seus processos de desenvolvimento químico e orgânico e nada, absolutamente nada, poderá detê-los em seus destinos construtores. Os jovens de Esparta ansiavam e eram preparados para a guerra, os jovens africanos para a caça e os indígenas para os rituais que o permitiam estar e conviver com os mais velhos. Os jovens do presente vivem a quimera da felicidade eletrônica, da justiça social, da igualdade, da democracia, da terra prometida em um mundo ideal e solidário que jamais conhecerão, enquanto que os jovens do futuro serão os defensores da Terra e em alguma escala de de tempo futura estarão aqui soluçando sobre os escombros gerados pelas guerras do capitalismo. Estarão empenhadíssimos na hercúlea tarefa de construir amorosidades e entrelaçamentos em um planeta plúmbeo e mortiço. A saga do renascimento da humanidade descortinará em um futuro próximo jovens expeditos brilhando nas brumas da incompreensão humana, como as flores perfumadas que vicejam em pântanos fétidos que nada mais é que o milagre da Criação nos mostrando o quanto devemos ser resilientes, persistirmos, mesmo que os pântanos da vida sejam os mais assombrosos e inamistosos possíveis.
Nossos jovens nos observam bem de perto, constatam que nós os adultos, estamos destruindo o planeta do futuro que não nos pertence pois não estaremos mais aqui. Sim, enquanto viventes pretéritos, estamos promovendo a destruição do planeta deles, que pertencerá somente a eles. Por isso a tristeza e a incompreensão dos jovens com a irracionalidade dos adultos. Por isso o choque geracional onde a revolta torna-se a face mais acentuada de um grupo humano e vívido, silenciado através do ageísmo cruel emanado pelos espíritos opressores das têmporas gris.
Enquanto fractais da criação, nossos jovens não podem perder o brilho nem a força da similaridade na energia em consonância com o vácuo estelar, da matéria escura que nos envolve, onde o universo repousa e ao mesmo tempo é o tudo e o nada, na qual estamos conectados e emaranhados, onde repousam as soluções de todos os enigmas e mistérios.
Uma única célula humana possui cerca de 220 bilhões de átomos, assim como as galáxias do universo que abrigam mais de 200 bilhões de estrelas cada. São universos em expansão, tanto na relatividade quanto no mundo quântico, jovens e galáxias, os dois rumando céleres para os braços do grande atrator, que não sabemos e ninguém sabe onde está e quando ou se será encontrado, para nos mostrar enfim qual a finalidade do milagroso balé quântico da vida.
A razão da existência de jovens, galáxias, estrelas e tudo que existe nos é inexplicável e não é nós permitido saber. Qual o sentido da exegese do fecundar, nascer, viver e morrer de uma borboleta em tão ínfimo período de tempo? Não há ao menos tempo para entender e muito menos para explicar o quão tudo é tão profundo e inexplicável ao se referir ao milagre da vida. Uma verdade mimética onde ao menos sabemos se estamos vivendo e porquê e para quê, ou se já morremos e estamos em uma outra dimensão paralela ou definitivamente não há explicação para estarmos vivos. A morte não existe no universo, é apenas o fim de um ciclo onde nossa estrutura de carbono, nossa matéria, deixa de existir e retornamos ao estado de energia. A matéria é um arcabouço temporal em escala desprezível perante a infinitude da energia em baixa intensidade que abrigamos. Somos a prisão de carbono dessa energia misteriosa e imortal. Átomos não morrem quando a vida corpórea termina. Na verdade muitos “voltam para casa”, para o insondável primordial do universo, para as estrelas, supernovas, pulsares, nebulosas e buracos negros. Dentro do caldeirão primordial do renascimento formam e se reformam como em uma forja infinita dos poderes da criação. Então a estrutura atómica que constituía os frágeis humanos, se tornam ao se libertarem do jugo do carbono, oceanos, árvores, animais, planetas, estrelas, outros seres humanos e as mais diversas configurações universais, representando o complexo jogral constitutivo, admirável, mimético, multidimensional e impenetrável da vida.
Enquanto que crianças são o graal da Criação, os jovens são os avatares, os dínamos orgânicos de algo superior onde o acaso não encontra abrigo. Espaço contrito onde o mistério da vida nos assombra com a consonância que há entre o farfalhar obsessivo de uma jovem crisálida no afã se tornar imago e o momento da vida dos jovens que como os pulsares agiganta os sentimentos nós corações dos jovens motocontinuamente, pulsando em uníssono como um inimaginável e fiel entrelaçamento quântico.Talvez a maior e mais evidente representação da singularidade do entrelaçamento dessas energias nos humanos seja o amor. Sim, o amor, sentimento inexplicável que acontece por si mesmo, independendo de seu hospedeiro. Como explicar o encontro entre duas pessoas estranhas quando então em uma simples troca de olhares as energias enlouquecidas bagunçam a matéria, fazendo os corações dispararem, criando nós nas gargantas enquanto que o tempo e espaço param o mundo para que os dois que se encontraram energeticamente possam embarcar na fruição prazeroza de endorfinas, serotoninas, dopaminas e oxitocinas.
O casal apaixonado ama-se loucamente e se for confirmado o entrelaçamento quântico que muitos chamam de encontro de almas, partem para dividir a vida sob o mesmo teto, gerando filhos que são o ápice e a consolidação do processo bioquímico e energético que completa a saga humana na grande jornada da vida.
A vida, ah! Esse sabor da vida! Ajustado na dimensão do espaço/tempo, avançando sem ousar ou temer recuar, pois a grande determinação não permite que aconteça. Avante Vida! Nas crisálidas, na natureza, nos jovens e no cosmos. Vida regida pelo tempo, sempre avançando inexorável rumo ao inexpugnável grande atrator, onde não o habitam nem o tudo e nem o nada. Existimos então para quê se nós é concedido viver em tão brevíssimo espaço de tempo ou agradecer por nos ser permitido viver essa tão espetacular experiência que é o milagre da vida?
Somos educados para não nos conhecermos. Sócrates morreu também por afirmar convicto que o ser humano deve conhecer a si mesmo antes de qualquer coisa. Sim, primeiro deveríamos ser instruídos a nos conhecer desde os primórdios, analisar nossas capacidades, nossa maneira de enfrentar a vida. Mas não, nós enfiam em crenças e religiões onde um Deus vingativo e cruel deve ser temido ao invés de amado.
Viver assim é estabelecer conssonância com qual objetivo existencial que não seja formação de mão de obra para o mercado de trabalho? O que deveria ser uma vida livre, feliz, serena e integrada com a natureza torna-se um martírio enfadonho onde passa-se a metade do dia nos apertos do transporte públicos, outro tanto no ambiente de trabalho, outro pedaço do tempo dormindo e praticamente nada para a fruição do lazer, da poesia, do teatro, da literatura e das artes e esportes de uma maneira geral. A Revolução Industrial foi uma adaga com dois gumes que decepou a convivência dos trabalhadores com a casa e a família ao construir os grandes espaços fabris. A partir de então fomos perdendo a essência e o brilho. A promessa de um mundo de luzes exarada pelo Iluminismo não se concretizou senão para poucos. A grande massa trabalhadora ao abandonar a manufatura manual e caseira assinou a pena capital de sua liberdade, tornando-se escrava do tempo Edo dinheiro.
Com a saída do lar para as fábricas, os individualismos e as solidões aumentaram e a humanidade ao viver e conhecer o capitalismo passou a conhecer a competição desumana e então passou a ser triste e melancólica, violenta, intolerante, desagregadora, punitiva e cruel.
A modernidade trouxe satisfação para os que fizeram fortuna explorando os trabalhadores. Não há um grande empreendimento sequer que não tenha em algum momento de sua história se beneficiado ou da escravidão ou da exploração análoga à escravidão de seres humanos. A pobreza, a fome, a desigualdade e a injustiça não vieram das estrelas onde tudo é ordenado para que tudo possa coexistir da melhor forma possível, comoa Terra e a Lua, eternamente enamoradas e sem nunca se acariciarem.
Ao negar aos jovens a reflexão sobre sua verdadeira origem e a complexidade que os constituem, a cátedra comete um desvio na jornada do conhecimento. Trocam o esforço e o método da ciência que caminha tecendo as redes de conhecimento por narrativas metafísicas de cobaras que falam e de uma humanidade gerada a partir de seres constituídos por homens-tijolos e mulheres-costelas. Maria Montessori dizia que nossas crianças são educadas para a competição e esse é o princípio das guerras. Precisam ser educadas para a cooperação, para a solidariedade e para o amor, que são os sentimentos basilares da paz.
A fé e as crenças pertencem ao âmago de cada um e devem ser solenemente respeitadas. Porém negar aos jovens o conhecimento da criação primordial continua ser a velha trucagem de trocar a mecânica quântica, a astronomia e a astrofísica pela metafísica, a evolução pela criaçao, empilhando crenças onde o mêtodo científico está consolidado. Perdidos dentro desse labirinto antropológico nossos jovens crescem sem saber nada de si, que são poeira de estrelas e que podem e devem brilhar hoje e para todo o sempre.