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Eu Negro

domingo, 18 de dezembro de 2022

OS QUE DECIDEM POR NÓS

O povo negro sempre esteve à mercê da vontade do homem branco, durante os quase 400 anos de escravidão institucional que aconteceu no Brasil. A população negra nunca recebeu por parte do estado brasileiro, qualquer gesto positivo na direção de reparação do crime de lesa humanidade que foi o sequestro no continente africano, a pérfida viagem sob correntes até às terras do Novo Mundo e ao chegar serem explorados e humilhados nas piores condições sub humanas e degradantes até o final da vida.
A captura do futuro escravo em solo africano, era geralmente precedida de uma guerra entre etnias, fomentada pelo homem branco, que lhes fornecia quinquilharias, dinheiro, armas, pólvora e rum. Combinação explosiva que convulsionou a paz na África Subsahariana e abasteceu o tráfico negreiro por mais de três séculos. Dados empíricos mostram que durante esse período saía um navio todos os dias trazendo acorrentados em seus porões entre 300 e 500 cativos, isso durante mais de 350 anos. O contingente de africanos capturados e escravizados, era composto por homens, mulheres, jovens e crianças.
O tráfico negreiro era o mais lucrativo empreendimento colonial, e através dele foi possível a colonização do Novo Mundo. A empresa colonial exercia o que designou-se chamar de Comércio Triangular, que consistia em trazer os escravos para o Novo Mundo, levar açúcar e pau-brasil para a Europa e de lá armas, pólvora, rum, e equipamentos para o continente africano. Para isso, cometiam as mais hediondas barbáries, com o intuito de preservar o lucrativo negócio.
Para quebrar a auto estima e arrefecer o sentimento de revolta dos cativos, os africanos e africanas aprisionados eram separados enquanto famílias. Os traficantes separavam os membros de cada família capturada, enviando-os para diferentes continentes. Uns vinham para os países da América do Sul, outros para os Estados Unidos e outros para os países caribenhos.
Os estupros das mulheres negras cativas era consentido e até incentivado pelos comandantes das embarcações, que viam com bons olhos a venda de escravas grávidas. Essas mulheres possuíam um enorme valor, pois, em um breve futuro, iriam parir uma criança que seria vendida, gerando bastante valor agregado à transação no mercado negreiro.
Muitos dos cativos se atiravam ao mar, cometendo suicídio, preferindo morrer a vivenciar o terrível futuro que os aguardava. Muitos eram atirados ao mar pela tripulação por motivo de doença, motim ou mesmo para garantir a subsistência do coletivo, quando a embarcação se deparava com longos períodos de calmaria. Nesses casos, a ração e a água que alimentavam o contingente humano no navio, começava a rarear, por conta dos longos períodos estacionados no mar sem vento para impulsionar as velas.
Então eram selecionados por prioridade econômica os que seriam atirados ao mar para garantir que as provisões e alimentos fossem suficientes para todos até a chegada nos portos de destino.
A tripulação utilizava uma comprida e grossa corda marítima, com um enorme peso de ferro na ponta. Atavam então os escolhidos ao martírio, que atados pelos pés eram lançados pela borda da embarcação. Era uma cena horrenda que também servia como exemplo para os mais rebeldes.
A seleção era por prioridade econômica, onde os que não tinham chances de completar a travessia por motivo de doença eram os primeiros selecionados. Depois eram os mais idosos e depois os que ensejavam atos de rebeldia e assim sucessivamente.
O cálculo é que durante esses 350 anos, foram trazidos de África um contingente que órbita entre 10 e 20 milhões de africanos escravizados. Se do que 25% perdeu a vida nas águas do oceano. A quantidade de corpos atirados ao mar foi tão grande que chegou a alterar a rora migratória milenar dos tubarões, que Oi assaram a acompanhar os navios negreiros aguardando o “descarte” de carne humana fresca.
O custo do desenvolvimento das colônias do Novo Mundo para o povo negro será sempre impagável. Cada negro que circule por esses territórios, traz a visível marca da tragédia humana em sua ancestralidade.
As dores físicas não são mais sentidas, foram se desvanecendo nas brumas do tempo. Porém, o sentimento de degredado permanece, a sensação de não pertencimento é presente e o prazer de ser amado por seus concidadãos não existe. O negro herdou o pior que a escravidão poderia lhe oferecer, a repulsa, a desconfiança e a invisibilidade. Recebeu como compensação pelo holocausto de seus ancestrais o instituto do racismo, o preconceito, o bloqueio aos sistemas de saúde e educacionais de qualidade, aos empregos bem remunerados, poder morar em locais seguros e ambientalmente salutares. Também lhe foi vedado a isonomia com outras etnias para exercer o poder político que pode transformar realidades. O povo negro não foi convidado para sentar à mesa do banquete democrático e assim poder sentir o doce sabor da democracia e da igualdade na diversidade.
Nossa sociedade é governada através do modelo democrático, onde a maioria dos votantes escolhe seus representantes. Dentro da organização moderna do Estado, são criadas leis e mecanismos de gestão pública, para que a sociedade possa evoluir cada vez mais na direção do conhecimento, dos Direitos Humanos e da paz. O grande óbice que se apresenta nesse avanço civilizatório é a qualidade da maioria das candidaturas aos cargos eletivos em todo o país. A miríade de candidatos apresenta ao eleitor plataformas recheadas de proposições esdrúxulas, demonstrando profundo desconhecimento da coisa pública. Provam que o futuro projetado e previsto dentro da democracia será absolutamente discutível se depender de suas iniciativas canhestras.
A administração pública, destarte o conhecimento de algumas ilhas de excelência dentro do estado, apresenta uma complexidade enorme. A elaboração e aprovação de leis pelo Legislativo, exige um profundo debate que depende do conhecimento da legislação vigente e da mobilidade política das organizações sociais que colaboram com a estruturação da caminhada da sociedade na direção do futuro.
O entendimento da administração da ‘polis’, do funcionamento da máquina do estado, preconizado por Maquiavel, e depois modernizado e estruturado por Montesquieu, prevê a compreensão da respectiva separação dos poderes e a interação com a sociedade civil organizada, que deve ser o ponto de partida para a construção de políticas na gestão dentro de qualquer território.
Um dos mecanismos de observação, mensuração e controle da população é a Estatística. Através dela e de seus resultados, o estado promove as políticas necessárias ao bom funcionamento da sociedade. Através dela podemos traçar panoramas, estabelecer movimentos de pesos e contrapesos e elaborar políticas que possibilitem a harmonia social e a execução da biopolítica. Michel Foucault consagrou que a biopolítica elabora e controla as políticas voltadas aos cidadãos e cidadãs que têm suas vidas compreendidas dentro de um determinado território. A leitura e análise dos indicadores gerados pela Estatística permitem intervenções no sentido da correção de assimetrias sociais e econômicas que possam atingir aquela população.
Os principais óbices encontrados pela maioria dos parlamentares quando chegam ao poder é o absoluto desconhecimento do funcionamento do estado, do império da lei, da independência entre os poderes e o ato de legislar na abrangência dos limites territoriais estabelecidos pela Constituição, sem ferir legislações na condição de leis infraconstitucionais. A diversidade dos movimentos sociais pode e deve participar da vida do município, porém, a apreensão das técnicas de manipulação da Estatística e a consequente construção de indicadores podem servir de subsídio para a elaboração de políticas consistentes, baseadas no método e não somente no senso comum.
A arte de legislar sem a compreensão da realidade torna-se um fatigante ato de enxugar gelo. Por isso, entra legislatura e sai legislatura e a situação permanece sempre a mesma. Administrar um território com sua população, exige conhecimentos teóricos e práticos multidisciplinares, aliados à criatividade e inovação tecnológica. Ao analisarmos as campanhas políticas, observamos que as mesmas usam o velho e batido bordão “Tem que Mudar!”. Certamente nos últimos 30 anos em seus municípios, com raríssimas exceções, aconteceram mudanças estruturais permanentes, que promoveram mudanças significativas na realidade daquela população. Vejam como as velhas elites locais se revezam e se perpetuam na carcomida instituição do poder familiar, onde pouco importa se possuem capacidade de gestão que possa garantir bem estar para a população daquele território. Bem estar eivado pela democracia, assentado sobre o primado dos Direitos Humanos, Econômicos, Sociais e Ambientais. Voltado portanto para a promoção de trabalho e distribuição de renda. O entendimento principal deve passar por uma profunda reflexão sobre a necessária transformação social, que exige vigorosos investimentos em diversidade, cultura, tecnologia, educação, saúde, meio-ambiente, trabalho e renda e inclusão social. Quando falamos em inclusão é mister frisar a importância da elaboração de políticas voltadas para mulheres, jovens, negros, deficientes e LGBTQ+. Essas políticas não devem ser implementadas como assistência social e sim como fator de desenvolvimento e geração de novos patamares civilizatórios. A miríade de candidaturas no âmbito nacional, traz novas ondas de esperança que espero sejam motivo de júbilo e não de decepção e infortúnio.
No caso da população afrodescendente, a pólis não está preparada para compreender mecanismos históricos de correção, comumente chamados de Ação Afirmativa. Ao nos debruçarmos sobre o conjunto de leis do Brasil voltadas para o segmento, desde a chegada dos primeiros colonizadores até os dias atuais, não se observa uma linha sequer que vise a promoção da população negra enquanto política de reparação histórica. Pelo contrário, parte da etnia caucasiana luta contra a adoção das cotas para negros nas universidades. Estão equivocadas, pois, em nossa primeira constituição, a de 1824, o negro era impossibilitado de estudar e de votar. Assim o estado brasileiro, promoveu mobilidade social para um contingente humano, enquanto o outro permaneceu compulsoriamente estacionado durante centenas de anos, sem poder estabelecer isonomia com outros grupos humanos de outras etnias. Quando um político ocupa a tribuna para ofender o instituto das cotas nas universidades, está demonstrando ignorância histórica e absoluta ausência de compreensão da gestão do estado, pois, as cotas raciais, constam no documento final, no Plano de Ação da Conferência Mundial contra o Racismo das Nações Unidas, levada à cabo em 2001, na cidade de Durban, na África do Sul. Nesta conferência, que foi um marco para as relações raciais no planeta, foram construídas inúmeras pontes que pudessem viabilizar a elaboração de diversas ações viáveis e concretas, que orientassem a caminhada dos países com mais segurança, no que tange as políticas de inclusão e de combate ao racismo.
Ao ser signatário do plano de ação da conferência, cuja Relatoria ficou a cargo da brasileira Edna Roland, os termos assentados no documento final se tornaram compromissos assumidos pelo Brasil. Conforme decisão das Nações Unidas, esses termos tomam força de lei dentro do país após ele ser signatário do Plano de Ação. Por esse motivo jurídico e outros censitários, históricos e humanitários, que o Supremo Tribunal Federal – STF, julgou as cotas raciais para o acesso às universidades constitucionais, para desgosto dos falsos meritocratas.
Apesar de todo o horror que a ancestralidade negra foi submetida para que fosse possível a construção da nação brasileira, a quase totalidade da população não negra não se levanta contra o racismo estrutural que insiste em perpetuar a desigualdade e o preconceito contra o povo negro. Mesmo depois de 120 anos da promulgação da Lei Áurea, que extinguiu a escravidão no país, ainda podemos assistir cenas cotidianas de racismo e movimentos neonazistas, destilando ódio aos negros. O racismo estrutural também atua através dos aparelhos de repressão de estado, promovendo um verdadeiro genocídio da juventude negra nas comunidades vulneráveis.
Onde estão os que decidem por nós? Não estão em lugar algum, pois os negros, desde 1532 sempre estiveram por sua própria conta. Todas as políticas de bem estar e de promoção sócio econômicas são destinadas aos brancos. Aos negros é destinado desde sempre o quartinho dos fundos das empregadas e os serviços degradantes para os homens. A responsabilidade sobre a precariedade é sempre apontada como falha meritocrática antropológica e não como mecanismo projetado pelo racismo estrutural.
Então aqueles que decidem, que através do voto popular são alçados ao parlamento para legislar para todos, no fundo apenas perpetuam e aprofundam o racismo estrutural e a desigualdade. Muitos por puro desconhecimento da história e outros porque são racistas e se utilizam do instituto da imunidade parlamentar para desfilar seu racismo.
É importante lembrar que a naturalização da precariedade do povo negro também é uma forma de racismo. Quando a polícia mata um jovem negro, matou porque era um bandido, então matou certo, dizem. Mas porquê ele se transformou em um bandido? Quais as politicas que o falecido jovem negro recebeu por parte do estado para que pudesse ao menos ter uma chance de viver uma vida normal? É muito mais cômodo julgar e matar um negro que pensar e desenvolver políticas que lhe garantam segurança desde a vida uterina, onde a violência obstétrica, comum no serviço público de saúde, é o primeiro sinal que a criança negra recebe, do mundo que a aguarda após nascer.
Os que decidem por nós não estão no cotidiano das áreas conflagradas onde vive o povo negro. Estão nas mansões e apartamentos de frente para o mar, no ar condicionado, cercados de serviçais que lhes acenam continuamente com humilhantes rapapés. Em seus ambientes de trabalho, cercam-se de benesses pagas com o dinheiro do povo sofrido, para legislar sempre em favor dos bem nascidos, dos que possuem e controlam o poder. Em seus espaços materiais e espirituais não cabem o sofrimento do povo negro. Desses só lhes interessam os votos, que geralmente são calçados em falsas promessas e abraços constrangedores. Os que decidem por nós negros, não estão nem aí para as nossas agruras, nosso sofrimento. Não estão nem aí para o holocausto dos nossos ancestrais, estão sim, perpetuando o racismo estrutural que nos oprime cada vez mais.

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